"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/04/2024

Jurisprudência 2023 (142)


Procedimento de injunção;
requerimento inicial; ineptidão


1. O sumário de RE 12/7/2023 (30531/22.5YIPRT-A.E1) é o seguinte:

I - Expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão no requerimento de injunção não significa uma simplificação ou incompletude na exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, mas sim ao resumo da sua essência.

II - É inepto por falta de causa de pedir, o requerimento de injunção em que (apenas) se alega, quanto ao facto jurídico concreto de que emerge o direito, que foi celebrado um contrato de crédito por escrito, que o pagamento devia ser feito em prestações e estas deixaram de ser pagas em determinada data e que ficou em dívida uma determinada quantia.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Escreveu-se na decisão recorrida:

«No âmbito do procedimento de injunção, o legislador introduziu – e aprovou – um modelo oficial de requerimento que, pela sua natureza, é avesso à concretização fáctica exigível em qualquer ação comum.

Ora, sendo esta opção do legislador, não pode a autora ser prejudicada com um entendimento que estenda as exigências do processo declarativo comum ao requerimento de injunção. Acresce que a alínea d) do n.º 1 do artigo 10.º do D.L. nº 269/98 exige que do requerimento conste a exposição sucinta dos factos que fundamentam a pretensão.
No caso concreto, a autora deduziu o pedido, assentando-o na celebração de um contrato de mútuo celebrado entre os réus e o Banco Cetelem, S.A., indicando a data da celebração do contrato [30/04/2007], o número do contrato, o capital em dívida.

Crê assim este tribunal que não existe ineptidão do requerimento de injunção, uma vez que a autora alegou factos que fundamentam a sua pretensão e que permitiam aos réus poderem defender-se com conhecimento de causa.»

Já o recorrente defende a ineptidão do requerimento injuntivo, por falta de causa de pedir.
Segundo o artigo 186º, nº 2, al. a), do CPC, a petição inicial é inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.

A causa de pedir, como decorre da definição legal constante do art. 581º, nº 4, do CPC, traduz-se no facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo, isto é, o facto jurídico concreto de que emerge o direito em que o autor funda o pedido [Cfr., inter alia, o acórdão do STJ de 25.09.2012, proc. 3371/07.4TBVLG.P1.S1, in www.dgsi.pt.], ou como referem Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora [Manual de Processo Civil, 2.ª edição, p. 245.], «[a] causa de pedir é o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido». [...]

Por isto que na petição, com que propõe a ação, deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir (artigo 552º, nº 1, al. d), do CPC), regra que, em substância, não se altera nos procedimentos de injunção e nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias com origem em tais procedimentos.

No modelo de requerimento de injunção, aprovado por portaria do Ministro da Justiça, deve o requerente expor sucintamente os factos que fundamentam a pretensão [artigo 10.º, n.º 2, al. d), do DL n.º 269/98, de 1/9], o que significa que também nestes procedimentos o requerente deve expor os factos que constituem a causa de pedir ainda que sucintamente.

Como refere Salvador da Costa [Injunção e as Conexas Acção e Execução, Processo Geral Simplificado, Almedina, 2001, pp. 145-156.], a exposição sucinta dos factos que à pretensão processual do requerente servem de fundamento assume particular relevância no contexto do normativo em análise, porque se trata, no fundo, da causa de pedir prevista em geral nos arts. 5º, nº 1 e 552º, nº 1, al. d), do CPC, suscetível de apreciação jurisdicional no caso de o procedimento de injunção se transmutar em ação declarativa, como ocorreu no caso concreto.

O requerente da injunção não está dispensado de invocar, no requerimento injuntivo, os factos jurídicos concretos que integram a respetiva causa de pedir, pois que a lei só flexibiliza a sua narração em termos sucintos, sintéticos e breves.

Como a pretensão do requerente só é suscetível de derivar de um contrato ou de uma pluralidade de contratos, a causa de pedir, embora sintética, não pode deixar de envolver o conteúdo das respetivas declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do seu incumprimento por parte do requerido.

Tem sido este o entendimento sufragado de forma uniforme pela jurisprudência, referindo-se, a título de exemplo, o acórdão da Relação de Lisboa de 10.11.2022 [Proc. 119177/21.9YIPRT.L1-6, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, inter alia, o acórdão da Relação de Lisboa de 16.05.2019, proc. 89078/18.6YIPRT-A.L1-6], com o seguinte sumário:

«I – Na injunção, sob pena de ineptidão do requerimento injuntivo, por falta de indicação de causa de pedir, o requerente deve invocar os factos jurídicos concretos que integram a respectiva causa de pedir, pois que a lei ao dispensar a pormenorizada alegação de facto, bastando-se com a alegação sucinta e não articulada dos factos, em termos de brevidade e concisão, não postergou, com tal agilização, os princípios gerais da concretização fáctica, embora sucinta, em termos de integração dos pressupostos da respectiva norma jurídica substantiva.
 
II - No procedimento para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos [Injunção] e nas acções especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias [AECOPs] com origem naquele procedimento, em que a pretensão do requerente/autor só pode emergir de uma transacção comercial fundada num contrato ou numa pluralidade de contratos, a narrativa da causa de pedir não pode deixar de conter o conteúdo essencial das declarações negociais e os factos negativos ou positivos consubstanciadores do incumprimento por parte do requerido.»

De igual modo, como se observa no acórdão desta Relação de 12.05.2022 [Proc. 59047/21.5YIPRT.E1, in www.dgsi.pt.], «(…), as sentenças proferidas nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias ainda que com origem nos procedimentos de injunção deverão ser sucintamente fundamentadas [artigo 4.º, n.º 7, do referido DL n.º 269/98], sem que tal signifique uma menor exigência na sua construção, designadamente, na especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão (…), a qual só é realizável se, a montante, os factos essenciais que justificam a pretensão houverem sido alegados.»

No caso, a Recorrida visa o cumprimento de um contrato de mútuo e depois de justificar a sua legitimidade para a causa (pontos 1 a 5 do requerimento de injunção) alega, quanto ao contrato, essencialmente o seguinte: (i) por documento particular foi celebrado com o/a Requerido/a um contrato de financiamento/mútuo, ao qual foi atribuído o nº 42020230269003_1506022236 (ponto 6), ii) o/a Requerido/a comprometeu-se ao pagamento de prestações mensais e sucessivas (ponto 7), iii) o(a) Requerido(a) deixou de efetuar o pagamento mensal das prestações (ponto 8) e iv) ficou em dívida o montante de 7.970,67 €.

Trata-se de alegação manifestamente insuficiente por menor que seja o rigor formal que se empregue.

Mútuo é o contrato pela qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (art. 1142º do Código Civil).

E o mútuo bancário, apesar das suas particularidades, designadamente quanto à forma, taxas de juro e prazos, mantém as caraterísticas do mútuo na sua expressão civilista, o que significa que a colocação do dinheiro à disposição do mutuário é um seu elemento constitutivo ou integrante [ Cfr., inter alia, os acórdãos da Relação do Porto de 24.11.2009, proc. 117/07.0TBSJP-A.P1 e da Relação de Lisboa de 13.09.2011, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.].

No caso em apreço, não se alega se a quantia mutuada foi colocada à disposição da Recorrida, não se alega o montante da quantia mutuada, as prestações pagas e respetivos juros, as prestações em dívida ou o plano de pagamentos acordado e violado, ou seja, não se alegam as cláusulas essenciais do contrato, nem as circunstâncias da mora e do incumprimento definitivo.

Os factos alegados, no pressuposto da sua plena demonstração, não permitem fixar os pressupostos de facto indispensáveis à procedência do pedido formulado, assim, obstando ab initio à construção do silogismo judiciário que a sentença deve representar [Assim, o citado acórdão desta Relação de 12.05.2022, num caso em tudo idêntico ao dos presentes autos.].

Assim, por falta de causa de pedir o requerimento de injunção é inepto, o que determina a nulidade de todo o processo e a absolvição do réu/recorrente [---] da instância [arts. 186.º, n.º 1 e 2, alínea a) 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), todos do CPC]."

[MTS]