"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/04/2024

Jurisprudência 2023 (144)


Audiência final;
justo impedimento; "nulidade superveniente"*

1. O sumário de RG 10/7/2023 (359/21.6T8PRG.G1) é o seguinte:

I Para que uma cirurgia oral a que foi submetido o mandatário de uma das partes, no dia anterior ao da realização da audiência de julgamento, e impeditiva do exercício da prática profissional por um período de 5 dias, conforme requerimento e atestado médico juntos no próprio dia, dê lugar ao adiamento da audiência por justo impedimento, é necessário que sejam alegadas as circunstâncias que rodearam o acontecimento que se diz no requerimento ter tido carater de urgência.

II A falta de alegação e prova dessas circunstâncias impede de se considerar que estamos perante uma situação imprevista e por isso impeditiva da adoção das medidas necessárias a evitar o adiamento; sequer que o ilustre mandatário não pudesse ter diligenciado por subestabelecer.

III Desse modo, não afastou a sua culpa apreciada pelos critérios do artº. 487º, nº. 2, C.C., uma vez que cabe à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior –artº. 799º, nº. 1, do C.C..


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Dispõe o artº. 603º, nº. 1, C.P.C., que verificada a presença das pessoas que tenham sido convocadas, realiza-se a audiência de julgamento, salvo se (…) faltar algum dos advogados sem que o juiz tenha providenciado pela marcação mediante acordo prévio ou ocorrer motivo que constitua justo impedimento.

Considera-se “justo impedimento” o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato –artº. 140º, nº. 1, C.P.C.. E diz o nº. 2 desse artigo que  “A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou.”

De acordo ainda com o artº. 151º, nº. 5, do C.P.C., os mandatários judiciais devem comunicar prontamente ao tribunal quaisquer circunstâncias impeditivas da sua presença.

Dispõe o art.º 108º, nº. 1, do Estatuto da Ordem dos Advogados, quanto ao seu dever de diligência, nos termos do qual “O advogado deve, em qualquer circunstância, actuar com diligência e lealdade na condução do processo.”

Por sua vez institui o artº. 7º do nosso C.P.C. o princípio da cooperação, dizendo que “1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.

2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.”

De seguida o artº. 8º consagra o dever de boa fé: “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.”

Relativamente a esta figura do “justo impedimento” o Tribunal recorrido teceu comentários que se mostram pertinentes, com citação de doutrina e jurisprudência, que seria fastidioso aqui repetir.

Recorremos por isso apenas ao Ac. desta Relação de 8/4/2021, em que a aqui relatora foi 2º adjunto do mesmo (e sua relatora Anizabel Sousa Pereira, publicado em www.dgsi.pt, como todos os que se citam sem indicação de outra fonte), em que nos revemos e que diz o seguinte: “ Lebre de Freitas e Isabel Alexandre ( in CPC anotado, Vol I, p. 298) afirmam que, «à luz do novo conceito, basta, para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstaculizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção. (...) Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário. Um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão. Mas, tal como na responsabilidade civil contratual, a culpa não tem de ser provada, cabendo à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (art. 799-1 CC): embora não esteja em causa o cumprimento de deveres, mas a observância de ónus processuais, a distribuição do ónus da prova põe-se nos mesmos termos.»

Uma das situações que pacificamente vem sendo admitida como fundamento para a existência de justo impedimento é a doença súbita e incapacitante do Exmo. Mandatário de uma das partes, situação mais comum e corrente nos tribunais, mas que não ocorre no caso vertente.

Por aplicação das regras gerais do ónus da prova, cabe à parte interessada alegar e provar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo da prática atempada do ato processual.

O justo impedimento, tal como especificamente determinado pelo n.º 1 do art.º 603.º do CP Civil, aplica-se, também, no âmbito da audiência final, como forma de legitimar um direito subjetivo de adiamento da mesma.

Assim, deve entender-se que o justo impedimento capaz de justificar o adiamento da audiência final tem que ser feito em momento anterior ou, quando muito, coincidente com o do início aprazado para esta, através de comunicação ao tribunal com alegação do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado e apresentação da respetiva prova.

Na eventualidade de o justo impedimento não poder ser invocado em momento anterior ou contemporâneo com o da audiência final, já se tratará diversamente da invocação de uma nulidade processual.

Seguindo a explicação de Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro (Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2014, Almedina, pág. 571) : “Não tendo o justo impedimento sido invocado antes do momento em que a audiência teve lugar, deverá a parte reclamar da nulidade processual em que se traduz a prática de um acto que a lei não admite (art.º 195.º, n.º 1) – realização da audiência ocorrendo justo impedimento. O impedimento é aqui invocado como pressuposto constitutivo do direito de obter a declaração de nulidade do acto – relativa: art.º 197.º, n.º 1 – e não do direito de adiamento da audiência ou do direito de praticar um acto para além do prazo fixado.”

Nesta situação, a parte interessada terá que provar, para além da ocorrência do motivo imprevisto ou de força maior impeditivo da presença do advogado em audiência, igualmente a impossibilidade de o ter comunicado antes da audiência, apresentando a respetiva prova.”

Nesta ordem de ideias sumariou-se: “- A incapacidade ou impossibilidade do advogado se deslocar ao tribunal para estar presente na audiência de julgamento, declarada, através de atestado médico, dias antes da data da diligência e quando já resulta de um prolongamento de tal estado, causador anteriormente de uma alteração à data do julgamento, não constitui justo impedimento, se não está demonstrado que esse facto era impeditivo da adoção de providências necessárias à prática do ato, nomeadamente procedendo-se ao necessário substabelecimento.

- Não é impeditivo do substabelecimento a circunstância do advogado exercer em prática individual, nomeadamente quando, como no caso, se tinha tempo para adotar as medidas necessárias para impedir que os seus constituintes não fossem prejudicados.”

Neste sentido pode ver-se o Ac. da Rel. do Porto de 24/9/2019 (relatora Lina Baptista).

Diz-se ainda no Ac. da Rel. do Porto Acórdão de 15/10/12 (relator António Ramos): “A doença do advogado da parte só constitui justo impedimento se for súbita e tão grave que o impossibilite, em absoluto, de praticar o acto, avisar o constituinte ou substabelecer o mandato. O justo impedimento do mandatário tem de ser imprevisível, pois que se era de previsão normal e não tomou as necessárias cautelas incorreu em negligência. Não constitui justo impedimento um caso em que o mandatário, aquando do contacto da Ré para organizar a defesa, cujo prazo já decorria, já se encontrava na invocada situação de doença impeditiva de exercer o mandato e era previsível a manutenção daquela situação para além do prazo legalmente concedido para apresentação daquela defesa.”

Por último, recorremos às palavras do Ac. da Rel. de Lisboa de 14/7/2022 (relatora Isabel Salgado): “…na situação de o advogado pretender adiar o julgamento por motivo de doença súbita e inesperada que não lhe permita estar presente em audiência final, deverá, antes do início dessa diligência, requerer o seu adiamento justificando a verificação duma situação de justo impedimento; e essa prova deverá, em regra, ser aprestada no caso de doença, através do competente atestado médico, e junto com o requerimento de invocação de justo impedimento, como dispõe o artigo 140º n.º 2, 1.ª parte, do C.P.C..

Ao juiz competirá, por conseguinte, no quadro normativo indicado, recebida a comunicação e a justificação do impedimento e, eventualmente, o comprovativo da causa de justificação anunciada e descrita nessa comunicação pelo advogado, ponderar mediante um juízo casuístico sobre a seriedade e a verosimilhança do facto impeditivo da sequência da audiência final - artigos 140.º, n.º 2, 151.º, n. os 3 e 5, do CPC.”

De tudo o exposto cremos que a tónica da questão coloca-se na exigência a fazer quanto à alegação e prova do caráter subido, imprevisto e urgente, que origina a cirurgia oral; uma cirurgia pode ser algo previamente programado, mas também pode ser um procedimento de urgência.

Neste caso, o ilustre mandatário alegou no seu requerimento a urgência, mas não identificou ou relatou as circunstâncias dessa situação; tão pouco o atestado refere a necessidade de intervenção naquela concreta data. O seu requerimento refere o carater urgente (sem qualquer explicação), mas o atestado não, o que não basta para que se dê como apurada essa situação; não permite que o Tribunal emita qualquer juízo sobre a mesma (conforme última citação feita).  Alega a realização da cirurgia nesse dia, embora o atestado não diga a data da mesma, nem a hora –o que é diferente da hora de entrada do requerimento, sendo que também é óbvio que cirurgia e atestado são prévios ao requerimento em que de ambos se dá conta.

Mostram-se a nosso ver inteiramente acertadas as considerações a esse propósito apresentadas nas contra-alegações de recurso.

Cremos que não se mostra sustentada a ilação que o Tribunal tirou que desde outubro de 2022 o mandatário padecia desta situação; o facto de ter sido intervencionado em outubro não significa necessariamente que esta nova cirurgia fosse algo previsível ou sequente, ou ocorrida num quadro de doença prolongada.

Também não cremos, agora por outro lado, que os princípios da cooperação e da boa fé impusessem outras diligências ao Tribunal, que, como se refere nas alegações de recurso, no dia e antes da abertura da audiência contactou o escritório na tentativa de resolução da situação através de um substabelecimento. E, como já citamos, na falta de alegação de concretas circunstâncias que tornassem inconveniente a passagem do caso para um colega, porque de algum modo melindrava ou prejudicava a posição do cliente, não ficando devidamente assegurada a sua defesa, ou violava os deveres do profissional nomeadamente de lealdade, ou ainda a impossibilidade de o fazer ou de o fazer tempestivamente, a prática da advocacia individual não basta para justificar tal impossibilidade.

Igualmente não podemos questionar, face ao teor do atestado que não foi posto em causa, que o ilustre mandatário estava impedido de exercer a prática, por um período de 5 dias, contados da véspera da audiência; não se pode discutir se a gravidade era tal que a isso obstava ou não. Temos por assente que sim.

A questão aqui coloca-se na falta de alegação e prova das circunstâncias que rodearam o acontecimento, o que impede de se considerar que estamos perante uma situação imprevista e por isso impeditiva da adoção das medidas necessárias a evitar o adiamento; sequer que o ilustre mandatário não pudesse ter diligenciado por subestabelecer. Portanto, não afastou a sua culpa face aos critérios do artº. 487º, nº. 2, do C.C..

Ainda que se entendesse que o ilustre mandatário cumpriu os ditames da boa fé e da colaboração com o tribunal, avisando previamente da sua falta de modo a tentar evitar atos inúteis, possibilitando o adiamento, e se fosse o caso, podia requerer e remeter melhor alegação e prova para momento posterior, caso não estivesse em condições e na posse de elementos para o efeito. Não o fez, juntou logo o atestado naqueles termos, e nem quando suscitou a nulidade apresentou mais argumentos ou melhor prova, momento em que o poderia fazer.

Apenas uma ponderação podia ser aqui motivo de alteração por este Tribunal do decidido no sentido de aceitar a justificação do adiamento da audiência: o facto de, com base em atestado semelhante (em que no requerimento respetivo sequer se alegava urgência, e que reportava uma cirurgia realizada no dia anterior ao próprio requerimento), e na base da falência do argumento de que esta situação é o prolongamento da primeira e por isso previsível, estarmos perante o mesmo quadro que levou ao adimento na primeira situação. Poderá isto ser considerado uma espécie de violação do princípio da confiança?

Não podemos enveredar por esse caminho. Se assim fosse estaríamos por essa via a dar cobertura a decisões erradas, só porque transitaram. A primeira, ainda que incorreta (a nosso ver) transitou, logo impõe-se que em situações futuras idênticas se decida de igual forma (errada) –não pode ser, a nosso ver. Não se coloca a questão do caso julgado formal (artº. 620º do C.P.C.) porque são situações idênticas mas outro ato processual, que podem ser analisadas de diferente prisma (como foram, nomeadamente face á reiteração da conduta processual). E podem ser analisadas de diferente prisma não só porque o mesmo juiz as interpreta de forma diversa, como outro juiz pode ter um entendimento jurídico diferente sobre a mesma questão. Portanto, o Tribunal da Relação não está vinculado a decidir o requerimento apresentado em 25/01/2023 conforme se decidiu com trânsito em julgado o requerimento de 4/10/2022. Veja-se a propósito da atuação da Administração o sumário do Ac. do STA de 18-06-2003.

Este caso não tem paralelo, a nosso ver, com situações em que está em causa a apreciação do mesmo ato processual, conforme foi tratado no Ac. do STJ de 2/5/2019 (relatora Maria da Graça Trigo), em que se ponderou a violação dos princípios da cooperação e boa fé, prolação de decisão surpresa (respetivamente artºs. 7º e 8º, e 3º, nº. 3, C.P.C.) e inclusive o princípio constitucional da garantia de tutela jurisdicional efectiva (cfr. art. 20º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa)."


*3. [Comentário] Não havendo motivos para discordar do decidido no acórdão, ainda assim cabe referir que não se pode acompanhar a afirmação de que 

Na eventualidade de o justo impedimento não poder ser invocado em momento anterior ou contemporâneo com o da audiência final, já se tratará [....] da invocação de uma nulidade processual.

A nulidade processual só pode ocorrer quando, no momento da prática do acto, o acto não devia ter sido praticado, não quando, no momento dessa prática, nada impedia a realização do acto.

De outro modo, as consequências seriam verdadeiramente estranhas. Suponha-se que a audiência final ocorreu sem a presença do advogado de uma das partes e que o advogado justifica a sua falta depois da realização da audiência. A admitir-se a tese da nulidade, ter-se-ia de aceitar que um facto posterior origina uma nulidade processual, ou seja, que a proibição da realização de um acto pode resultar de algo que é alegado depois da própria realização do acto. Bem se poderia falar, neste caso, de uma "proibição superveniente" ou de um "acto supervenientemente proibido" e, portanto, de uma "nulidade superveniente" (!).

Mais até: para se ser coerente, ter-se-ia que impor que o advogado, ao invocar o justo impedimento, teria de invocar também a nulidade da audiência final decorrente desse impedimento e que o tribunal que reconhecesse esse impedimento teria de declarar na sua decisão, com efeitos retroactivos, a nulidade da audiência. 

MTS