"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/04/2024

Jurisprudência 2023 (156)


Acção judicial;
ofensa do direito ao bom nome

1. O sumário de RP 29/6/2023 (21209/20.5T8PRT.P1) é o seguinte:

I - A ofensa do direito à honra e ao crédito pode ser praticada nos articulados de uma acção judicial e não é o simples facto de isso constituir o exercício do direito de acesso à justiça que exclui, sem mais, a ilicitude da ofensa.

II - Todavia, o contexto da acção pode permitir concluir que determinadas afirmações não podem ser qualificadas como ofensivas e ilícitas.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O autor pretende através da presente acção obter da ré e da interveniente principal uma indemnização pelos danos que diz ter sofrido em consequência das ofensas ao seu direito ao crédito e ao bom nome perpetradas por aqueles nos articuladas de duas acções judiciais.

A regra básica de distribuição dos riscos e que constitui um dos princípios básicos da responsabilidade traduz-se na máxima casum sensit dominus. A imputação delitual dos danos a outrem pressupõe a lesão de direitos subjectivos, de posições jurídicas que mereçam ser protegidas de qualquer agressão.

Só porque ocorreu um dano e ele resultou de uma actuação voluntária do agente não se pode concluir de forma automática pela responsabilidade do agente pelo ressarcimento dos danos. Fora dos casos excepcionais em que o próprio legislador responsabiliza o agente por factos lícitos, para haver responsabilidade é necessário, desde logo, haver um acto ilícito.

A ilicitude pode resultar da violação de direitos subjectivos ou normas legais de protecção ou da violação de deveres de prestação de origem contratual.

Nos termos do artigo 483.º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”. Ao definir o âmbito da responsabilidade civil, este preceito distingue duas modalidades básicas de ilicitude: a violação de um direito de outrem e a violação de qualquer disposição legal destinada à protecção de interesses alheios.

No primeiro caso, a ilicitude advém da ofensa perpetrada a um determinado bem jurídico que a lei protege mediante a qualificação desse interesse como um verdadeiro direito da pessoa. No outro, a ilicitude provém de uma actuação desconforme com a regra de conduta que a lei impõe como forma de tutela de interesses de outrem. Ao lado dessas duas modalidades básicas de ilicitude para efeitos de responsabilidade civil, encontram-se várias outras previsões específicas de actos ilícitos.

Uma delas é o artigo 484.º do Código Civil, segundo o qual quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom-nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados. Aqui a ilicitude traduz-se na ofensa ao crédito ou ao bom-nome de uma pessoa singular ou colectiva, através da divulgação de factos susceptíveis de os prejudicar.

Este preceito é a concretização dos meios de tutela dos direitos de personalidade, consagrados no n.º 2 artigo 70.º. Segundo este preceito, a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, sendo que a pessoa ameaçada ou ofendida, independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.

Tal preceito visa cumprir o estabelecido no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, o qual reconhece a todos, entre outros direitos pessoais, o direito ao bom nome e à reputação, como expressão directa do princípio da dignidade humana. Este direito fundamental tem por objecto o tipo de representação que os outros têm sobre uma pessoa, abrangendo todos os aspectos relativos a uma projecção social positiva e à consideração daí resultante no seio da sociedade. [...]

A ofensa ao crédito da pessoa ocorre quando se atinge, diminui ou coloca em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade de uma pessoa para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que a pessoa não faltará aos seus compromissos, a imagem pública quanto à sua capacidade ou vontade de honrar e satisfazer os seus compromissos de natureza económica, a projecção social das aptidões e capacidades económicas dos autores (apud Capelo de Sousa, in O Direito Geral de Personalidade, Coimbra, 1995, pág. 304 e Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª edição, página 549). [...]

Não há, contudo, violação do direito ao crédito de alguém sem a publicitação do acto que pode afectar esse direito, sem se tornar pública a imputação a alguém de uma actuação que possa atingir, diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade da pessoa para satisfazer as suas obrigações.

Para haver ilicitude, consubstanciada numa violação injusta do direito ao crédito, é necessário que o agente tenha tornado pública a imputação da actuação que pode importar a lesão do direito, tenha transmitido essa imputação a terceiros levando-os a crer na imputação e a formarem uma convicção sobre a veracidade da imputação e a actuarem em conformidade com isso.

Já o bom nome de uma pessoa é ofendido quando se prejudica, diminui ou coloca em crise o conceito favorável que a pessoa tem na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ela logrou obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecida, o seu prestígio ou reputação. [...]

No caso dá-se a circunstância de as afirmações alegadamente ofensivas do direito ao crédito e ao bom nome terem sido feitas nos articulados de acções instauradas pelo aqui autor contra a aqui ré e a interveniente principal. Sabendo-se que a ilicitude é excluída quando há consentimento do lesado ou a actuação do agente corresponde ao exercício de um direito legítimo ou ao cumprimento de um dever, coloca-se a questão de saber como se relacionam o direito de acesso à justiça e à defesa e o direito ao bom nome e ao crédito.

O direito de acesso à justiça, tal como o direito à honra e à consideração pessoal, é um direito constitucionalmente garantido, dotado da tutela que é própria dos direitos fundamentais. Essa circunstância impõe algum cuidado na responsabilização da parte que toma a iniciativa do processo pelas consequências da sua instauração ou daquela que confrontada com um processo se vê obrigada a apresentar a sua defesa. Designadamente, não pode nunca permitir que da simples perda da demanda se conclua pela ilegitimidade da iniciativa processual ou que do simples decaimento da defesa se conclua pela ilicitude dos factos alegados como meio de defesa, e se retire o dever de indemnizar a parte contrária dos prejuízos sofridos em consequência da demanda.

Sucede, porém, que esse direito não é, como não são outros de maior relevo, irrestrito ou insusceptível de adequação prática e, portanto, não pode servir nunca para legitimar toda e qualquer postura processual. Seria inconcebível que o processo, enquanto conjunto de regras instrumentais destinadas a permitir a aplicação do direito substantivo ao caso concreto e a realização da Justiça, pudesse afinal permitir a violação impune de direitos materialmente consagrados. Se o processo serve, por exemplo, para que uma pessoa ofendida nos seus direitos de personalidade possa obter o ressarcimento dos danos que essa violação lhe causou, evidentemente que não pode servir para acobertar nova violação desses direitos no decurso do processo e através do processo e isentar de responsabilidade o autor do novo acto ilícito.

direito de acção, nomeadamente na acepção de direito de defesa é um direito instrumental, no sentido de que não consubstancia em si mesmo um direito subjectivo material, mas é somente o mecanismo através do qual se obtém a tutela dos direitos substantivos. Esse direito não compreende nem exige no e para o seu exercício qualquer carta branca para se poder dizer ou fazer tudo no processo, designadamente violar legítimos direitos de outrem.

A Constituição de República Portuguesa consagra no seu artigo 20.º o direito de acesso aos tribunais, dizendo que a todo o direito corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente. O mesmo consagra o legislador ordinário no artigo 2.º do Código de Processo Civil. Em ambos os casos a consagração é irrestrita, isto é, não exceptua as violações de direitos perpetradas no âmbito de um processo judicial, o que significa, precisamente com base nesses preceitos, que também a pessoa que viu os seus direitos violados no âmbito de um processo goza da faculdade de lançar mão dos mecanismos judiciais que tenham por objecto reconhecer os seus direitos em juízo, prevenir ou reparar a violação deles, realizá-los coercivamente.

Se mais não fosse alcançar-se-ia a mesma solução com recurso ao princípio da boa fé e ao instituto do abuso de direito, presente em todo o sistema jurídico e, como tal, também, no sistema de regras que é o caminho para a realização dos direitos materiais, isto é, o processo. O processo visa antes de mais a protecção, a defesa, a realização, o ressarcimento da violação dos direitos legítimos, dos direitos merecedores - quanto ao conteúdo ou ao modo de exercício - dessa tutela e, por isso, tem de ser ele mesmo inócuo, no sentido de que tal como deve ser garantia da efectiva tutela a que tende, não pode ser ele mesmo fonte de violação desses direitos. O contrário seria uma afronta flagrante do princípio da boa fé que nada justifica e, sobretudo, uma violação das próprias regras de direito material enformadas por aquele.

Assim, em regra, uma actuação processual que importe a violação de direitos materiais legítimos não pode deixar de constituir um acto recusado pela ordem jurídica, um acto ilícito quae tal. Por isso, desde que essa actuação corresponda a um acto culposo, não pode deixar de implicar responsabilidade civil pelos danos que forem consequência dessa actuação.

Havendo conflito, real ou aparente, entre direitos ou interesses igualmente protegidos pela constituição, a divulgação de factos desonrosos deve revelar-se adequada e necessária à salvaguarda do direito ao abrigo do qual a divulgação é feita, sob pena de a divulgação ser ilícita.

Lida e relida a matéria de facto não encontramos na mesma absolutamente nada que possa constituir uma ofensa ao crédito ou ao bom nome do autor.

Não há, desde logo, na matéria de facto nenhum facto que seja susceptível de diminuir ou colocar em causa a confiança dos outros na capacidade ou na vontade do autor para satisfazer as suas obrigações, a crença dos outros em que ele não faltará aos seus compromissos.

O facto de ter sido afirmado que numa determinada altura e num determinado contexto ele não teria meios de subsistência próprios e beneficiava da ajuda económica da ré é absolutamente anódino a esse respeito porque não é por uma pessoa num certo momento passar por uma situação dessas, a ser verdadeira, que o seu crédito é posto em causa.

Acresce que a situação é descrita como facto passado e não é objecto de divulgação pública porque as afirmações estão circunscritas ao contexto de uma acção judicial que sendo embora pública não é frequentada por um conjunto de pessoas suficiente para que a voz do processo se transforme numa voz pública ou conhecida do público.

Também o facto de se afirmar que o autor não desenvolvia actividade profissional no âmbito de uma empresa e que retirava benefícios desta sem contrapartida de trabalho ou actividade de relevo não é de modo algum algo que diminua ou coloque em crise o conceito favorável que o autor pudesse ter na comunidade, o reconhecimento público da imagem positiva que ele tenha logrado obter ou construir na comunidade com que se relaciona e onde é conhecido, o seu prestígio ou reputação.

Desde logo porque essa reputação é alcançada através da intervenção que ele alcança no espaço público e esta nada tem a ver com a circunstância de ele o fazer enquanto sócio, trabalhador ou colaborador de uma sociedade ou a qualquer outro título e por isso as afirmações feitas nos articulados das acções não têm qualquer capacidade de fazer reverter essa reputação.

Depois porque o contexto da acção não é um contexto de espaço público capaz de levar as afirmações nela feitas para o domínio público de modo a que as mesmas sejam susceptíveis de influenciar a opinião dos outros.

Acresce que as acções são notoriamente o espaço de discussão da relação pessoal entre o autor AA e a ré BB, aspecto que é notório para qualquer pessoa que com elas contacte, a qual apreende e compreende de imediato os excessos das afirmações ali feitas e que as mesmas não são para levar à letra por estarem influenciadas e perturbadas pelos sentimentos pessoais e o modo como cada um deles reagiu à ruptura da relação pessoal.

Em conclusão, a nosso ver, os factos provados relativos ao comportamento da ré são insuficientes para lhe imputar a prática de um facto ilícito, devendo, ao invés, concluir-se que nas concretas circunstâncias do caso se deve considerar excluída a ilicitude do comportamento da ré."

[MTS]