"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/04/2024

Jurisprudência 2023 (154)


Litigância de má fé;
duplo grau de jurisdição


1. O sumário de STJ 11/7/2023 (10972/10.1TBVNG.P2.S1) é o seguinte:

I- É insusceptível de ser declarada a ineficácia de justificação notarial de aquisição de propriedade por usucapião se a respectiva actuação processual em juízo é contraditória com a conduta anterior dos autores na acção, vista na sua globalidade como atentatória da tutela da confiança do adquirente por essa via de aquisição, e, portanto, configurada como abusiva, ao abrigo do art. 334º do CCiv., na modalidade de “venire contra factum proprium” positivo (o agente abusador gera a convicção de que não irá praticar certo acto e depois, contra a legítima expectação de conduta, pratica o acto).

II- Não é admissível a revista do segmento decisório do acórdão da Relação que reaprecia e confirma a decisão de condenação em litigância de má fé proferida pela primeira instância, tendo em conta o regime especial de recorribilidade previsto no art. 542º, 3, do CPC para as decisões condenatórias (e não absolutórias) em primeira instância, não podendo, quando se trate de tais decisões, o recurso ultrapassar o patamar de impugnação junto da Relação.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Em ambas as instâncias foram os Autores condenados em litigância de má fé, dando causa ao pagamento de multa de 10 UCs e de indemnização no montante de € 10.000, em aplicação do art. 542º, 1 e 2, do CPC.

A Relação reapreciou a questão da condenação proferida em 1.ª instância em razão das Conclusões CCCLXVIII a CCCCLXXIII inscritas na apelação.

Trata-se de uma decisão autónoma em relação ao objecto da acção, tomada em incidente cujo julgamento e resultado correspondem a um segmento decisório cindível no dispositivo da sentença proferida em 1.ª instância. Enquanto decisão proferida em incidente sem estrutura e natureza de acção, estamos perante decisão interlocutória com incidência processual, recorrível para a 2.ª instância nos termos do art. 644º, 2, e), e, depois, submetida esta segunda decisão ao regime da revista “continuada” do art. 671º, 2, do CPC [Neste sentido, como regra no contexto da tipologia das decisões interlocutórias submetidas em revista por via do art. 671º, 2, do CPC, v. LOPES DO REGO, “Problemas suscitados pelo modelo de revista acolhido no CPC – O regime de acesso ao STJ quanto à impugnação de decisões interlocutórias de natureza processual”, Estudos em Homenagem à Professora Doutora Maria Helena Brito, Volume II, Gestlegal, Coimbra, 2022, págs. 475-476 e 482: “decisões que se pronunciam acerca de incidentes inseridos na causa principal, admitindo-os ou rejeitando-os”; cfr. ainda, na interpretação do art. 671º, 2, do CPC, LUÍS ESPÍRITO SANTO, Recursos civis. O sistema recursório português. Fundamentos, regime e actividade judiciária, CEDIS, Lisboa, 2020, pág. 283. Na jurisprudência do STJ, V. Acs. de 29/6/2017, processo n.º 2487/07.1TBCBR-C.C1.S1, Rel. TOMÉ GOMES, 16/5/2023, processo n.º 113/16.7T8VNC-I.G1-A.S, Rel. RICARDO COSTA, 31/5/2023, processo n.º 65/16.3T8VNC-B.G1-A.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, e de 28/6/2023, processo n.º 3080/17.6T8BCL-I.G1.S1, Rel. RICARDO COSTA; in www.dgsi.pt.] – o que, se fosse o caso, não foi cumprido pelos Recorrentes.

No entanto, a este regime geral acrescenta-se o regime especial do art. 542º, 3, do CPC, estatuindo que, «[i]ndependentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má fé».

Estamos perante uma previsão para a recorribilidade da decisão condenatória (e não para decisão absolutória) como litigante de má fé: só pode ser objecto de recurso em um grau – da 1.ª instância para a Relação ou desta para o Supremo (enunciativa, a contrario sensu); em contrapartida dessa restriçãoamplia-se a faculdade recursiva, uma vez que é sempre assegurada a admissibilidade do duplo grau de jurisdição sem dependência da verificação do art. 629º, 1, do CPC. [V. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 64-65 e nt. 96, ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 542º, pág. 594 (“Ainda que o valor da ação supere a alçada da Relação, a parte que tenha sido penalizada não pode interpor recurso de revista que abarque essa questão, regime que compatibiliza a tutela do visado (carecida, nesta parte, de um duplo grau de jurisdição) com a natureza marginal da questão.”), JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021 (reimp.), sub art. 542º, pág. 461 (aparentemente, atendendo à argumentação). Na jurisprudência consolidada do STJ sobre a não admissão do terceiro grau de jurisdição, entre outros, também antes do CPC de 2013, v. os Acs. do STJ de 4/5/2021, processo 2523/19.9T8PRD-E.P1-A.S1, Rel. FÁTIMA GOMES, 19/5/2020, processo n.º 5126/07.7TBSXL.L1.S1, Rel. MARIA OLINDA GARCIA, sendo o aqui Relator 2.º Adjunto (cfr. ponto II. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 28/11/2017, processo n.º 2398/11.6TBVLG-A.P1.S1, Rel. HÉLDER ROQUE (cfr. pontos II. e III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 19/10/2017, processo n.º 11262/79.0TVLSB-L.L1.S1, Rel. FERNANDA ISABEL PEREIRA (cfr. ponto IV. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 17/11/2015, processo n.º 2443/11.5TJVNF.G1.S1, Rel. SILVA SALAZAR (in www.stj.pt), 26/6/2014, processo n.º 2733/05.6TBAMT.P1.S1, Rel. TÁVORA VÍTOR (cfr. ponto III. do Sumário, disponível in www.stj.pt), 16/1/2014, processo n.º 1279/08.5TBGRD-N.C1-A.S1, Rel. SÉRGIO POÇAS, 29/10/2013, processo n.º 31038/96.0TVLSB.S1, Rel. FERNANDES DO VALE (in www.dgsi.pt), 21/11/2012, processo n.º 3365/04.1TTLSB.L1.S1, Rel. MARIA CLARA SOTTOMAYOR, 12/7/2011, processo n.º 2375/07.1YXLSB.L1.S1, Rel. GABRIEL CATARINO (in www.stj.pt), 27/5/2010, processo n.º 5387/05, Rel. SOUSA LEITE, e de 20/1/2010, processo n.º 45/04.1TTEVR.E1.S1, Rel. VASQUES DINIS; disponíveis, os sem local de proveniência, in www.dgsi.pt.] [Já não é assim se a decisão de 1.ª instância for absolutória e a decisão de 2.ª instância for condenatória: v. Ac. do STJ de 15/2/2022, processo n.º 1246/20.0T8STB.E1.S1, Rel. MARIA JOÃO TOMÉ, in www.dgsi.pt (“Admite-se assim o recurso [de] revista no caso de a Recorrente haver sido condenada por litigância de má fé apenas pelo TR, uma vez que o Tribunal de 1.ª Instância tinha julgado improcedente este pedido de condenação (…).”: ponto I. do Sumário); na doutrina, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Litigância de má-fé, abuso do direito de ação e culpa “in agendo”, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, pág. 68 (não assim no caso de “não-condenação, apesar de pedida”).] 

Tal significa que: (i) se a condenação provier da 1.ª instância, o recurso (e a garantia do duplo grau de jurisdição) é sempre admissível para a Relação sem dependência do art. 629º, 1 (seguindo o art. 644º, 2, e), CPC); (ii) se a condenação for decretada pela primeira vez pela Relação, admite-se recurso para o STJ, independentemente ainda do valor da condenação em relação aos critérios do art. 629º, 1, do CPC, assim como sem dependência do regime do art. 673º para as decisões interlocutórias “novas” (o que se encontra devidamente salvaguardado na respectiva al. b)); (iii) se a condenação for proferida em primeira mão pela 1.ª instância e reapreciada em recurso pela Relação, não é admitida a revista, seja qual for a decisão em segunda mão pela 2.ª instância (sem prejuízo de, estando aqui presente uma irrecorribilidade legal por «motivo estranho à alçada do tribunal», se poder ponderar a aplicação do art. 629º, 2, d), do CPC).

Assim sendo, tendo os Autores sido condenados como litigantes de má fé em 1.ª instância e tendo essa condenação sido confirmada pela Relação, encontra-se esgotada, uma vez não convocado qualquer regime de revista extraordinária, a possibilidade de tal questão ser objecto de revista, independentemente da sorte e resultado da impugnação (nos outros segmentos) do acórdão recorrido onde foi reapreciada e confirmada a condenação de 1.ª instância, não podendo aqui ser conhecido tal segmento decisório, correspondente à Conclusão 75. da revista."

[MTS]