Responsabilidade contratual;
legitimidade processual*
I. O sumário de RG 10/7/2023 (1488/22.4T8BRG.G1) é o seguinte:
1- Mediante o pressuposto processual de legitimidade exige-se que para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelo autor na petição inicial, em regra, atenta essa relação jurídica delineada na petição inicial, autor e réu sejam as “partes exatas” dessa relação jurídica, isto é, que atentos os factos constitutivos do direito a que se arroga titula o autor na petição inicial e por ele aí alegados, de onde faz derivar/assentar o pedido, de acordo com a lei substantiva abstratamente aplicável a essa relação jurídica (independentemente de o autor vir ou não a fazer prova desses factos que alega), de acordo com as várias soluções jurídicas plausíveis que decorram dessa lei substantiva, o autor seja o titular do direito a que se arroga titular naquele articulado inicial e de onde faz derivar o pedido que nele aí formula, e o réu seja a pessoa que deverá opor-se à procedência do pedido por aquele formulado, por ser a pessoa cuja esfera jurídica será diretamente atingida pela procedência desse pedido.
2- Em ação intentada por condómino contra o vendedor de fração, em que o autor, com fundamento em incumprimento do contrato de compra e venda celebrado decorrente da fração que lhe foi vendida pelo réu apresentar defeitos ou desconformidades decorrentes de no interior dessa fração ocorrerem infiltrações de água provinda da parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, pede a condenação do réu a reparar os estragos causados no interior da fração e a executar as obras na parede exterior do edifício (parte comum), de modo a eliminar a origem de tais infiltrações e, bem assim, a compensá-lo pelos danos não patrimoniais sofridos, autor e réu dispõem de, respetivamente, legitimidade ativa e passiva para essa ação.
3- É que, de acordo com uma corrente jurisprudencial, a circunstância da compra e venda ter por objeto uma fração autónoma integrada em edifício constituído em propriedade horizontal, não isenta o vendedor de responder perante o comprador, a título de responsabilidade contratual, com fundamento no instituto de venda de coisa defeituosa, designadamente, nos termos do art. 914º do CC, ainda que os vícios apresentados na fração ocorram ou tenham a sua origem ao nível das partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal, não podendo o vendedor invocar contra o comprador quaisquer limitações quanto às decisões ou à execução de obras nas partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal que decorram do regime da propriedade horizontal, por forma a eximir-se à sua responsabilidade contratual perante o comprador da fração.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O apelante [comprador] instaurou a presente ação contra a apelada [vendedora] pedindo que se procedesse ou mandasse proceder, à custa desta, no prazo de sessenta dias, à realização de obras necessárias e adequadas à eliminação integral dos defeitos discriminados na petição inicial: reparação do teto do quarto, e pintura do mesmo, cujo preço estima em € 585,00; se condenasse a apelada a reparar, a expensas suas, e no mesmo prazo, os isolamentos exteriores, por forma a evitar que continuem as infiltrações em períodos de chuva, cujo custo, na parte que respeita à fração do apelante estima em € 3.300,00; ou, caso a apelada não proceda às obras referidas, no referido prazo, se condenasse esta a pagar-lhe a quantia de € 3.885,00, acrescidos de IVA, para que possa contratar quem faça as mesmas e pagar o custo destas e, bem assim, que, em todo o caso, se condenasse a apelada a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos.
Como causa de pedir de tais pretensões alegou o apelante ter celebrado, em 29 de julho de 2019, com a apelada um contrato de compra e venda mediante o qual esta lhe vendeu uma fração autónoma sita num prédio constituído em propriedade horizontal, destinada à sua habitação e onde este, desde então, reside efetivamente, e o incumprimento desse contrato por parte da última, decorrente da fração vendida apresentar defeitos ou desconformidades na parede exterior poente do prédio constituído em propriedade horizontal, que determinam que ocorram infiltrações de água pluvial nas paredes e teto de um quarto da fração comprada, vícios esses que já se verificavam à data da celebração do contrato de compra e venda, mas que a apelada (vendedora e Ré) lhe ocultou, tornando a fração destituída das qualidades normais de uma fração destinada à habitação e causando-lhe prejuízos não patrimoniais, cuja compensação reclama. [...]
Imputa o apelante erro de direito ao assim decidido, asseverando que “o tribunal a quo, na sua decisão, ignorou a responsabilidade contratual da ré invocada pelo autor, resultante do não cumprimento do contrato de compra e venda de imóvel, bem como o pedido da condenação da Ré na reparação dos vícios do imóvel, ou no pagamento dos respetivo custos, assim como a indemnização por danos morais” e, bem assim, que “ não tivesse o Tribunal a quo ignorado o que se alega, verificaria o interesse direto do autor em demandar e o interesse direto da Ré em contradizer, decidindo em conformidade pela improcedência da alegada ilegitimidade passiva da Ré”.
Vejamos se assiste razão ao apelante para os erros de direito que assaca à decisão recorrida. [...]
Mediante o pressuposto processual da legitimidade exige-se que, para que o juiz possa entrar na apreciação do mérito da relação jurídica material controvertida que lhe é submetida pelo autor a apreciação e a decisão, julgando a ação procedente ou improcedente, que naquele concreto processo figurem como autor e como réu as “partes exatas” dessa relação jurídica controvertida submetida pelo autor ao tribunal. [...]
De acordo com os n.ºs 1 e 2 do art. 30º do CPC, o autor é parte legítima quando tenha interesse direto em demandar, o que se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação; e o réu é parte legitima quando tenha interesse direto em contradizer, o que se exprime pelo prejuízo que da procedência da ação lhe advenha. E, nos termos do n.º 3, desse art. 30º, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Significa isto que, de acordo com os comandos legais que se acabam de enunciar, para que o juiz se possa pronunciar sobre o mérito da causa, terá, em sede de pressuposto processual de legitimidade, que considerar, exclusivamente e em regra (“na falta de indicação da lei em contrário”), a relação jurídica material controvertida delineada pelo autor na petição inicial, atentos os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) nela delineados por aquele e, bem assim, terá, em seguida, de recorrer ao direito substantivo para verificar se, em abstrato (isto é, independentemente da prova dos factos descritos na petição inicial constitutivos do direito de que o autor aí se arroga titular e de onde faz derivar o pedido), em função dessa relação jurídica material controvertida que delineou nesse articulado fundamentador da ação, o autor é efetivamente a pessoa a quem a lei substantiva reconhece o estatuto de parte legítima para discutir em juízo o direito a que aquele se arroga titular, atentos os factos constitutivos desse direito que alegou naquele articulado inicial (no pressuposto de os vir a provar), por ser o titular incontestado do direito em causa e, bem assim, se foi demandado como réu a pessoa que, de acordo com a lei substantiva, por referência a essa mesma relação jurídica delineada na petição inicial, detém essa qualidade jurídica, por ser a pessoa que tem interesse direto em contradizer, por ser aquele cuja esfera jurídica é diretamente atingida por essa pretensão caso esta seja deferida. [...]
Destarte e em suma, de acordo com o comando do n.º 3 do art. 30º do CPC, para se aferir do pressuposto processual de legitimidade passiva e ativa, tem que se atender, por norma – “salvo disposição da lei em contrário” -, exclusivamente à relação jurídica material controvertida tal como esta vem delineada, subjetiva e objetivamente, pelo autor na petição inicial e indagar se, no pressuposto dos factos que por aquele aí vêm alegados como sendo constitutivos do direito a que se arroga titular e de onde faz derivar o pedido, de acordo com a lei substantiva aplicável em abstrato, o autor é o titular do direito que pretende exercer na ação e de onde faz derivar/assentar o pedido, caso em que se concluirá pela respetiva legitimidade ativa; e, por outro lado, verificar se a pessoa por ele demandada, ou seja, contra quem formula a pretensão que pretende que o tribunal lhe reconheça (pedido), é de facto a pessoa que, de acordo com a lei substantiva aplicável em abstrato, é aquela contra essa pretensão deve ser dirigida por ser aquela cuja esfera jurídica é diretamente atingida em caso de deferimento dessa pretensão. [...]
Significa isto que o legislador nacional, na esteira do que já era o entendimento jurisprudencial dominante, mediante a consagração do n.º 3 do art. 30º CPC, em que ordena que se atenda, em princípio, à relação jurídica material controvertida tal como esta é delineada ou configurada pelo autor na petição inicial, pôs termo à discussão clássica entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, optando pela tese deste último autor, ao estatuir que ao apuramento da exceção de legitimidade ativa e passiva apenas interessa, por regra, a relação jurídica material controvertida desenhada pelo autor na petição inicial, independentemente da prova dos factos que a integram [Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, 4ª ed., Almedina, pág. 93. Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, Almedina, 2014, págs. 69 e 70, onde se lê: “… a legitimidade consiste numa posição concreta da parte perante uma causa. Por isso, a legitimidade não é uma qualidade pessoal, antes uma qualidade posicional da parte face à ação, ao litígio que aí se discute. (…). Conforme resulta da redação que a Reforma de 1995/96 deu ao n.º 3 do art. 26º do CPC de 1961 – redação mantida agora no art. 30º -, foi adotada a teoria que faz corresponder a legitimidade das partes à titularidade da relação controvertida descrita pelo autor na petição inicial”.].
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, compulsada a petição inicial, as pretensões que o apelante nela formula contra a apelada consistem na condenação judicial desta a realizar, no prazo de sessenta dias, as obras necessárias e adequadas à eliminação dos defeitos discriminados na petição inicial, consistentes na reparação do teto do quarto, e pintura do mesmo, da fração que esta lhe vendeu em 29 de julho de 2019, por via das infiltrações de água pluvial que se introduzem nesse quarto, através da parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal onde se situa essa fração, bem como, a realizar as obras de isolamento dessa parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, por forma a evitar que essas infiltrações se continuem a introduzir nesse quarto da fração, bem como, a condenar a apelada a pagar-lhe as quantias necessárias à execução dessas obras caso não as execute dentro desse prazo de sessenta dias e, bem assim, a pagar-lhe a quantia de 1.500,00 euros, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos, fundam-se, de acordo com a facticidade alegada pelo apelante na petição inicial, no alegado incumprimento pela apelada, na qualidade de vendedora, do contrato de compra e venda celebrado em 29 de julho de 2019 com o apelante, mediante o qual vendeu ao último a dita fração, mais concretamente, no instituto da venda de coisa defeituosa, a que aludem os arts. 913º e ss. do CC e o regime jurídico do D.L. n.º 67/2003, de 08/04, na redação que lhe foi dada pelo D.L. n.º 84/2008, de 21/05, por ser o que se encontrava em vigor em 29/07/2019, data da celebração do contrato de compra e venda mediante o qual a apelada vendeu ao apelante a fração objeto dos autos, fundando-se, portanto, as pretensões (pedido) deduzidas nos autos pelo apelante no instituto da responsabilidade contratual.
Dúvidas também não subsistem [de] que a fração que o apelante alega ter comprado ao apelante se situa em prédio que refere expressamente, na petição inicial, encontrar-se constituído em regime de propriedade horizontal e que as infiltrações que o mesmo alega verificarem-se no quarto dessa fração provêm da parede exterior desse edifício constituído em regime de propriedade horizontal.
Conforme decorre do art. 1420º do CC, na propriedade horizontal concorrem dois direitos distintos, um de propriedade singular, na medida em que cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence, e um direito de compropriedade, o qual incidente sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal (n.º 1), sendo ambos esses direitos incindíveis, de modo que nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem sendo lícito aos condóminos renunciar à parte comum como meio de se desonerarem das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (n.º 2). [...]
O direito de compropriedade dos condóminos sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal no qual se situa a fração de que é proprietário exclusivo encontra-se sujeito ao regime jurídico da compropriedade enunciado nos arts. 1403º a 1413º do CC, com as especialidades próprias previstas nos arts. 1421º, 1424º, 1427º e 1430º a 1438º-A do CC. [...]
Entre as partes de edifício constituído em propriedade horizontal com natureza imperativamente comuns contam-se, além do mais, “as paredes mestras e todas as partes restantes do edifício que constituem a estrutura do prédio”, de que fazem parte as paredes exteriores do edifício constituído em propriedade horizontal, dado que essas paredes exteriores integram naturalmente a estrutura do edifício constituído em propriedade horizontal, ou seja, tal como decidido pela 1ª Instância, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, a parede exterior do edifício de onde provêm as alegações infiltrações que se infiltraram, e continuarão a infiltrar-se enquanto essa parede exterior do edifício não for reparada, no quarto da fração que comprou à apelada é uma parte imperativamente comum.
Quanto às partes imperativamente comuns, onde, reafirma-se, se integra a parede exterior poente do prédio constituído em propriedade horizontal de onde, de acordo com a alegação do apelante, provêm as infiltrações de água pluvial que se introduzem no quarto que integra a fração comprada à apelada, nos termos do disposto no art. 1430º, n.º 1 do CC, a administração das partes comuns compete à assembleia de condóminos e a um administrador. [...]
Quanto às obras de conservação das partes comuns, cabe ao administrador realizar tais obras e diligenciar pelo respetivo pagamento (al. f) do art. 1436º), sem prejuízo de qualquer condómino poder realizar as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do prédio, na fala ou impedimento do administrador (art. 1427º do CC).
Deste modo, como bem ponderou a 1ª Instância, nas relações propter rem estabelecidas entre, por um lado, o condomínio e, por outro, os condóminos ou terceiros, é pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial segundo o qual as obras necessárias à fruição e conservação das partes comuns de prédio constituído em propriedade horizontal cabem ao condomínio, isto é, ao conjunto dos condóminos, os quais, conforme antedito, são comproprietários dessas partes comuns, pelo que, salvo disposição em contrário, têm de pagar as despesas inerentes à conservação dessas partes comuns e, bem assim, à respetiva fruição (v.g., despesas com a limpeza) na proporção do valor das suas frações (n.º 1 do art. 1423º), e cumpre ao administrador do condomínio, em representação deste, realizar essas obras (al. f) do art. 1436º), apenas podendo qualquer dos condóminos substituir-se ao administrador na execução de tais obras de conservação das partes comuns, na falta ou impedimento do condomínio, e caso se trate de executar obras de reparações indispensáveis e urgentes (art. 1427º do CC).
A partir do que se acaba de dizer, entendeu a 1ª Instância que, no caso de incumprimento contratual por parte de vendedor perante o comprador decorrente da fração objeto dessa compra e venda apresentar defeitos ou desconformidades, nunca poderia condenar o vendedor a reparar a fração quando essas desconformidades decorrem de vícios que provêm de parte comum do prédio constituído em propriedade horizontal, como é o caso dos autos, em que segundo a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, a origem das infiltrações que se fazem sentir nas paredes e teto do quarto que integra a fração que lhe foi vendida pela apelada reside na parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal, isto porque, constituindo essa parede exterior do edifício parte comum deste, compete ao condomínio, representado pelo administrador, realizar as obras de conservação dessas partes comuns, pelo que nunca poderia condenar a apelada, vendedora dessa fração, por via do alegado incumprimento contratual em que incorreu, nos termos do instituto da venda de coisa defeituosa, a reparar essa parede exterior, eliminando as invocadas desconformidades alegadamente ocorridas na parede exterior desse edifício, por onde se processam as infiltrações da água pluvial no interior da fração vendida pela apelada ao apelante, dada a natureza de parte comum dessa parede exterior do edifício.
Adianta a apelada nas alegações de recurso que além disso, o apelante não disporia de legitimidade ativa para lhe exigir a reparação de tais desconformidades ocorridas nessa parede exterior do edifício constituído em propriedade horizontal, por essa legitimidade ativa competir, ope legis, ao condomínio, representado pelo seu administrador, e não aos condóminos individualmente considerados, como é o caso do apelante a quem confirma ter vendido a fração objeto dos autos.
Note-se que a posição adotada pela 1ª Instância na decisão recorrida e a que vem propugnada pela apelada nas contra-alegações de recurso que se acabam de enunciar tem sido aquela que tem sido defendida por parte da jurisprudência nacional, que tem sustentado ser “o administrador do condomínio, enquanto representante deste, e não o condomínio que goza de legitimidade ativa para pedir judicialmente a eliminação dos defeitos do prédio verificados nas partes comuns, devidamente mandatado pela assembleia de condóminos” [Ac. R.C., de 01/02/2022, Proc. 2281/20.4T8LRA.A.C1, in base de dados da DGSI, onde constam os acórdãos que se venham a enunciar, sem menção em contrário.].
Contudo, já uma outra corrente, defende que sendo o condomínio absolutamente estranho ao contrato de compra e venda celebrado entre vendedor e condómino tendo por objeto fração sita em prédio constituído em propriedade horizontal que padeça de vícios ou desconformidades em partes comuns do prédio, é ao condómino comprador que assiste legitimidade ativa para instaurar ação contra o vendedor reclamando a reparação da fração objeto daquela compra e venda e das partes comuns do edifício, por forma a eliminar a fonte desses prejuízos na fração objeto da compra e venda e, bem assim, a indemnização do comprador pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência desse incumprimento contratual, nos termos do art. 914º do CC, ainda que a fonte dessas desconformidades resida nas partes comuns do edifício.
Neste sentido expende-se no acórdão do STJ. de 24/09/2009 que os “Autores instauraram ação contra vendedor pedindo a condenação a pagar-lhe a quantia necessária para reparar a fração eliminando as infiltrações de água proveniente das chuvas que caem sobre a cobertura de prédio constituído em propriedade horizontal. Recorreu o réu invocando não lhe ser aplicável o regime da venda de coisas defeituosas afirmando mesmo que a ré não vendeu aos autores uma coisa defeituosa, sustentando que, sendo parte comum do edifício, a cobertura não constitui, nem poderá ter constituído, objeto da compra e venda celebrada entre as partes. Em seu entender, o que a ré vendeu foi uma fração autónoma de um prédio em regime de propriedade horizontal e, por arrasto, o seu direito de compropriedade sobre as partes comuns, incindivelmente ligado ao direito de propriedade sobre a fração autónoma. O ligado ao direito de propriedade sobre a fração autónoma. O que apresenta deficiência não é a fração autónoma alienada, mas sim uma parte comum, que não foi objeto (nem podia ser) do negócio celebrado entre as partes. Daqui retira que não é a responsabilidade contratual da ré, que não existe, mas a responsabilidade extracontratual dos demais condóminos que está em causa”.
A propósito do enunciado argumentário do aí recorrente, conclui o STJ “não ter qualquer fundamento tal alegação. A circunstância de a coisa vendida ser uma fração autónoma de um prédio urbano – a não a cobertura do prédio, ou parte dela – não isenta o vendedor de responder, perante o comprador, pelos vícios que a desvalorizam ou que impedem a sua utilização normal. Diferente seria se a fração tivesse sido alienada como fração carecida de reparação, por sofrer infiltrações na cobertura, ou seja, como fração por essa razão não apta a servir de habitação, em termos normais. Mas não foi este o caso (…). Não podem ser invocados pelo vendedor de uma fração quaisquer limitações que o regime da propriedade horizontal imponha às decisões que afetem as partes comuns, ou à execução de obras nas mesmas, para se exonerar, perante o comprador, da responsabilidade pela existência de defeitos na coisa vendida. A coisa vendida, em tal caso, é manifestamente constituída pelo incindível que foi alienado, não tendo cabimento a separação entre a fração autónoma e a quota nas partes comuns. Neste contexto, coisa sem defeito significa coisa apta a desempenhar a sua função; e é em função desse todo que a aptidão terá de ser aferida” [Ac. STJ., de 24/09/2009, Proc. 09B0368. Em igual sentido Acs. R.P., de 12/03/2013, Proc. 306/11.3TJVNF.P1; RE. de 18/12/2007, Proc. 2642/07-3; R.L., de 01/11/2008, Proc. 2552/2008-1, em que se lê: “A administração de prédio constituído em regime de propriedade horizontal tem poderes para reclamar do construtor/vendedor os defeitos existentes nas partes do prédio; mas já não tem legitimidade para reclamar em nome dos condóminos os defeitos que existam nas frações autónomas do prédio. O mesmo não sucede com os condóminos: estes, por serem comproprietários nas partes comuns do prédio, podem denunciar ao vendedor defeitos nessas partes e reclamar a eliminação dos mesmos (arts. 1420º, n.ºs 1 e 2, 1452º, n.º 1 e 1427º do CC”; R.L., de 02/06/2016, Proc. 3941/14.4T8SNT: “Numa ação intentada contra o construtor/vendedor do prédio, o proprietário de uma fração autónoma tem legitimidade ativa para exigir a reparação dos defeitos das partes comuns que estão na origem dos defeitos existentes na sua própria fração”; R.C., de 12/03/2019, Proc. 190/15.8T8CNT.C1.]
Decorre do que se vem dizendo que, em função desta corrente jurisprudencial, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, em que funda as diversas pretensões que formula contra o apelante e que pretende lhe sejam reconhecidas pelo tribunal com base no incumprimento contratual em que sustenta encontrar-se constituída a apelante perante si decorrente da fração que lhe vendeu apresentar vícios ou desconformidades decorrentes da parede exterior poente do edifício constituído em propriedade horizontal onde se situa essa fração deixar infiltrar a água pluvial no interior dessa fração, causando estragos no teto e nas paredes de um quadro da mesma, o apelante dispõe de legitimidade ativa para demandar o vendedor solicitando a reparação desses vícios (quer os verificados no interior da fração objeto da compra e venda, quer os verificados na parede poente exterior do edifício constituído em regime de propriedade horizontal) nos termos do art. 914º do CC, assim como esta, na qualidade de vendedora de tal fração, dispõe de legitimidade passiva para o efeito, não podendo invocar quaisquer limitações que o regime de propriedade horizontal imponha às decisões que afetem as partes comuns do edifício ou à execução de obras nas mesmas para se exonerar da sua responsabilidade contratual decorrente da existência de defeitos na coisa vendida, a qual é constituída por um todo incindível formado pela fração e pelas partes comuns do prédio constituído em propriedade horizontal onde aquela se integra.
Ora, versando a exceção de ilegitimidade ativa e passiva sobre um pressuposto processual que se traduz em saber se, em função da relação jurídica material controvertida delineada pelo apelante na petição inicial, estão presentes as partes certas na ação para que ao tribunal seja consentido entrar no conhecimento do mérito dessa relação jurídica, e carecendo o juízo para o efeito de ser feito tendo presente os elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) delineados pelo autor (apelante) na petição inicial, verificando se, à luz do direito substantivo, em abstrato e de acordo com todas as teses jurídicas suscetíveis de serem aplicáveis a esse direito substantivo, o autor é o titular dos direitos de reparação e indemnização que reclama da pessoa por si demandada com fundamento em responsabilidade contratual (ré e apelada) e se esta, de acordo com esse direito substantivo e em função de todas as teses jurídicas suscetíveis de lhe serem aplicáveis, é a pessoa que se encontra constituída nessa responsabilidade contratual e sobre quem impende a obrigação de reparar e de indemnizar o primeiro (autor e apelante), é apodítico, perante as referidas posições jurisprudenciais distintas sobre a questão de fundo suscitada nos autos – a opção por uma ou por outra das soluções jurídicas supra identificadas quanto a essa questão contende com o mérito, ou seja, com a legitimidade substantiva -, que a apelada dispõe de legitimidade passiva para a presente ação, assim como o apelante dispõe de legitimidade ativa, impondo-se, por conseguinte, concluir pela procedência da presente apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade passiva e absolveu a apelada da instância, julgando-se essa exceção dilatória de ilegitimidade passiva suscitada pela apelada improcedente e ordenando o prosseguimento dos autos."
*3. [Comentário] Adere-se, sem problemas, à orientação defendida no acórdão sobre a legitimidade processual.
Importa, no entanto, ter presente o que foi pedido na acção:
*3. [Comentário] Adere-se, sem problemas, à orientação defendida no acórdão sobre a legitimidade processual.
Importa, no entanto, ter presente o que foi pedido na acção:
"AA, residente na Rua ..., ... ..., instaurou a presente ação declarativa, de condenação, com processo comum, contra N... – Investimentos Imobiliários, Lda., com sede na Rua ..., ..., ... ..., pedindo que se procedesse ou mandasse proceder, à custa da Ré, no prazo de sessenta dias, à realização de obras necessárias e adequadas à eliminação integral dos defeitos discriminados na petição inicial: reparação do teto do quarto e pintura do mesmo, cujo preço estima em € 585,00; se condenasse a Ré a reparar, a expensas suas, e no mesmo prazo, os isolamentos exteriores, por forma a evitar que continuem as infiltrações em períodos de chuva, cujo custo, na parte que respeita à fração do Autor estima em € 3.300,00; ou, caso a Ré não proceda às obras referidas nos n.ºs anteriores, no referido prazo, se condenasse esta a pagar-lhe a quantia de € 3.885,00, acrescidos de IVA, para que possa contratar quem faça as referidas obras e pagar o custo das mesmas.Em todo o caso, se condenasse a Ré a pagar-lhe a quantia de € 1.500,00, a título de compensação por danos não patrimoniais sofridos."
Não estando em causa a legitimidade da Ré quanto à responsabilidade contratual e à indemnização dos danos não patrimoniais, é bastante discutível que essa legitimidade se verifique no que se refere à reparação de uma parte comum do prédio. O correcto teria sido que o Autor tivesse proposto a acção contra a vendedora e, ao mesmo tempo, contra o administrador do condomínio, na qualidade de substituto processual deste último (na melhor interpretação do incompreensível art. 1437.º, n.º 1, CC).
MTS