Matéria de facto; impugnação;
poderes da Relação
1. O sumário de RP 26/6/2023 (2339/20.0T8STS-A.P1) é o seguinte:
I - A desconformidade ou insuficiência da prova indicada para sustentar a alteração da decisão de facto, não justifica a rejeição da reapreciação, pois apenas a omissão de prova nas conclusões ou na motivação do recurso, têm como consequência a rejeição do recurso.
II - Guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
III - As deslocações patrimoniais efetuadas com o dinheiro do inventariado para o património do filho com vista a realizar obras de adaptação da sua casa para permitir acolher os pais, constituem doações remuneratórias, por não existir qualquer vínculo jurídico que justificasse tal atribuição, subsistindo em tais deslocações o espirito de liberalidade.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
“[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador [ ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pag. 334-335].
Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais [ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pag.272.].
Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC.
Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “[…] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei” [JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol IV, Coimbra Editora, Coimbra, pag. 569.].
Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art. 607º/4 CPC ).
Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.
É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria da base instrutória que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância [Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.].
Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados [Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt].
Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido [ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, Coimbra, Almedina, Setembro 2008, 2ª ed. revista e atualizada pag. 299 e Ac. STJ 20.09.2007 CJSTJ, XV, III, 58, Ac STJ 28.02.2008 CJSTJXVI, I, 126, Ac. STJ 03.11.2009 – Proc. 3931/03.2TVPRT.S1; Ac. STJ 01.07.2010 – Proc. 4740/04.7 TBVFX-A.L1.S1 ( ambos em www.dgsi.pt ).].
Ponderando estes aspetos e procedendo à audição dos registos gravados no sistema Citius, face aos argumentos apresentados pela apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto, não se justifica alterar a decisão de facto pelos motivos que se passam a expor.
O apelante impugna a decisão do seguinte facto julgado não provado:
- Ponto 12: À data indicada em 3), o inventariado detinha 30 obras de arte.
Em sede de fundamentação, ponderou-se:
“Ademais, a depoente [AA] admitiu a existência da coleção de CD do falecido marido e mencionou encadeadamente que a coleção de quadros teria sido vendido numa galeria, inexistindo contraprovas fundadas. […]Sublinhe-se, igualmente, que o depoente [DD] se prefigurou incapaz de dimanar circunstâncias fundamentantes da existência do “sinal” e das obras de arte propugnadas na reclamação, atascando-se num manto de insubsistência, […]No que se refere aos factos 11) a 13), ante as declarações marcadamente claudicantes dos interessados DD, CC, EE nesta sede fática e à míngua de outras provas, naufragou ostensivamente a demonstração dos mesmos”.
Está em causa apurar se à data do óbito o inventariado possuía ainda em seu poder uma coleção de quadros e estatuetas.
Sustenta o apelante, com base no depoimento prestado pela testemunha JJ e declarações da cabeça de casal AA, que o facto julgado não provado deve passar a constar como facto provado.
Ouvida a prova gravada (com particular dificuldade o depoimento de DD devido ao ruído de fundo permanente) não se consegue obter uma conclusão segura sobre a existência dos referidos quadros e quanto às estatuetas, nenhuma testemunha falou em coleção de estatuetas.
A cabeça-de-casal explicou que marido, o inventariado, comprou um conjunto de quadros, que estão no apartamento que não venderam, situado em Oeiras. Entre janeiro de 2016 e 20 de maio de 2017 o filho munido da procuração que a cabeça-de-casal outorgou a seu favor, encarregou uma galeria de arte em Lisboa de proceder à venda e levaram um “x” número de quadros para serem vendidos. O valor atribuído era irrisório e não venderam. A galeria não vendeu e os quadros foram para a casa de Oeiras e ficaram ao seu cuidado e das filhas. O filho DD não queria os quadros. Quando veio viver com o marido para a casa do filho trouxe os quadros consigo, os quais ficaram armazenados num armário num vão de escada na casa do filho. O filho não queria os quadros nas paredes. A cabeça-de-casal referiu, ainda, que existia uma pasta com documentos na qual o apelante, o interessado DD, guardava o comprovativo das despesas e rendimentos obtidos nas vendas que “fazíamos”, mas que desconhece onde se encontra, por não ter sido facultada pelo filho.
A testemunha JJ, neta da cabeça de casal e filha do apelante, o interessado DD, confirmou que os quadros foram transportados para a casa dos pais, quando os avós se mudaram para o norte e ficaram depositados num armário num vão de escada. Posteriormente, saíram da casa dos pais desconhecendo o local onde se encontram. Referiu não conhecer os autores das pinturas e disse, ainda, que quando esteve a estudar em Lisboa, ficou a residir na casa de Oeiras, propriedade dos avós e nessa casa não existiam quadros.
Nenhuma outra testemunha ou interessado se pronunciou sobre a matéria, relacionada com o destino dos quadros.
Resulta admitido entre os interessados que o inventariado terá adquirido um conjunto de quadros.
Quanto aos quadros que foram transportados para a região de Lisboa (Lisboa ou Oeiras, não se apurou), a prova mostra-se muito frágil, porque não se apurou o concreto destino, nomeadamente, se chegaram a ser comercializados ainda em vida do inventariado, já que a cabeça-de-casal se reporta a um transporte realizado entre 2016 e 2017, ainda em vida do inventariado e quando já estava a viver na Casa de Repouso ...”. Acresce que não foi feita qualquer referência aos quadros que alegadamente estarão na casa de Oeiras – nome do pintor, tipo de pintura, cores, nome do quadro, data de aquisição ou local onde foram adquiridos -, o que impede que se possa fazer um juízo exato sobre os objetos em causa e a sua existência.
Conclui-se que a decisão não merece censura e como tal deve manter-se."
[MTS]
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