"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/04/2024

Jurisprudência 2023 (145)


Processo de inventário;
competência internacional*


1. O sumário de RG 10/7/2023 (3081/21.0T8BCL-A.G1) é o seguinte:

Em processo de inventário, subsequente a divórcio, que em Portugal corre termos, atento o princípio da universalidade e da unidade, segundo os quais todos os bens objecto de comunhão deverão ser partilhados no mesmo inventário, deve a conta bancária de banco estrangeiro ser incluída na relação de bens.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do C. P. Civil).

Nos recursos apreciam-se questões e não razões.

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório supra, acrescida da seguinte:

Requerente e Requerido foram casados entre si segundo o regime da comunhão de adquiridos, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio declarado por decisão de 06 de Fevereiro de 2019, transitada em julgado em 06 de Março de 2019, proferida pelo BB, Notário no âmbito do Processo de Divórcio.

Tal divórcio foi averbado no respectivo assento de casamento.

O cabeça de casal, ora recorrente, apresentou relação de bens, com verba única, do seguinte teor:

«Prédio rústico denominado Leira de ... composto por lavradio situado no lugar de ..., União das Freguesias ..., concelho ... inscrito na respectiva matriz sob o artigo ...55 (artigo ...66 da extinta freguesia ...) e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...72/...».

De posse deste quadro assim delineado, importa começar por ter em mente que «O direito português segue o modelo de revisão ou reponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseado nos factos alegados e nas provas produzidas perante este» - Manual dos Recursos em Processo Civil, Amâncio Ferreira, 7ª ed., pag.155.

«Nesta linha, vem a nossa jurisprudência repetidamente afirmando que os recursos são meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre» - idem.

Também assim o consignou, entre muitos, o acordão do STJ de 07.07.2016, Procº 156/12.0TTCSC.L1.S1, ao dizer que «é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, podendo ver-se neste sentido os acórdãos do S.T.J. de 1.12.1998, in BMJ n.º 482/150; 12.12.1995, CJSTJ, Tomo III, pág 156; e os acórdãos de 24/2/2015, processo nº 1866/11.4TTPRT.P1.S1, e de 14/5/2015, 2428/09.1TTLSB.L1.S1.

Ou, já no acórdão desta Relação de Guimarães, de 09.11.2018, proferido no processo 212/16.5T8PTL.G1: «Quando um recorrente vem colocar perante o Tribunal superior uma questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, e não foi tratada na sentença recorrida, então estamos perante o que se costuma designar de questão nova.

Por definição, a figura do recurso exige uma prévia decisão desfavorável, incidente sobre uma pretensão colocada pelo recorrente perante o Tribunal recorrido, pois só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.

O objecto e o conteúdo da sentença recorrida constituem, por isso, os limites do objecto de recurso e, por consequência, o âmbito dos poderes de cognição do tribunal superior.

Ora, de posse destes considerandos, resulta dos autos que, em sede de audiência prévia, perante a acusação da falta de relacionação de bens, o cabeça de casal arguiu a incompetência internacional do Tribunal para conhecer da titularidade e do reconhecimento como bem comum do casal por se tratar de conta bancária de um banco situado em França, denominado “S...”, bem como no estatuído no artº 62º do Código de Processo Civil, pelo que não pode ser objecto de uma partilha num tribunal português.

Foi a esta excepção assim delimitada que respondeu a interessada mulher, ora recorrida e foi também com esses limites que o tribunal a quo emitiu decisão, como decorre linearmente da respectiva fundamentação.

Trazer questões em sede de alegações que não foram invocadas na primeira instância, nem aí foram apreciadas, traduzir-se-ia na supressão de um grau de jurisdição.

Importa, então, que o Tribunal da Relação aprecie da bondade do decidido, ou seja, in casu, se, correndo termos em tribunal português inventário para separação de meações, não se pode incluir no acervo a partilhar uma conta bancária existente num banco francês.

Trata-se de matéria que tem sido sobejamente abordada pela jurisprudência portuguesa, predominantemente em sede de inventário por morte, mas cujos traços orientadores e fundamentos têm, em geral, plena aplicação no inventário decorrente de divórcio.

Em denominador largamente comum que subscrevemos, tem-se entendido que «o princípio da unidade e universalidade da herança (ou, no caso, do património comum do casal) impõe que, no processo de inventário, sejam relacionados e partilhados todos os bens que integram a universalidade sobre a qual irá incidir a partilha, estejam eles situados em território nacional ou no estrangeiro», de que dá conta o acórdão desta Relação datado de 24.04.2012,  tirado no processo 82-B/19..., enunciando outros em igual sentido.

Esta visão encontra arrimo doutrinário em autores como Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, vol. I, 3ª edição, pág. 435 e segs) e Luís Lima Pinheiro (Direito Internacional Privado, vol. III, 2012 - 2ª ed. Refundida, págs. 283/284), aliás já citados pela Srª Juiz a quo.

Tem-se presente que no ordenamento jurídico português vigoram dois regimes de competência internacional, correspondentes ao regime comunitário e ao regime interno, sendo certo, todavia, que quando a acção estiver compreendida no âmbito de aplicação do regime comunitário, este prevalece sobre o regime interno por ser de fonte de lei hierarquicamente superior e pelo primado do direito europeu.

Daí que as regras de competência internacional dos tribunais portugueses não se esgotem na previsão dos artigos 62º e 63º do Código de Processo Civil.

Pode, então, afirmar-se que apenas em face de normas comunitárias que vedem a jurisdição aos tribunais nacionais – no caso, o português – se concluirá pela incompetência internacional destes; em concreto importa averiguar de existe regulamento comunitário que impeça a competência dos tribunais nacionais para partilha de conta bancária em país estrangeiro.

Ora, tal como invoca a recorrida:

- o Regulamento (CE) nº 44/2001, de 22/12/2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, exclui do seu âmbito de aplicação o estado e a capacidade das pessoas singulares, os regimes matrimoniais, os testamentos e as sucessões, não impondo, por isso, qualquer norma de competência relativamente às partilhas a efectuar na sequência de divórcio;

- o Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27/11/2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental, apenas é aplicável à dissolução do vínculo matrimonial (por divórcio, separação ou anulação do casamento), não abrangendo as questões referentes às causas do divórcio, aos efeitos patrimoniais do casamento e outras eventuais medidas acessórias (cfr. considerando (8) do Regulamento).

- Finalmente, também o Regulamento 650/2012, de 4 de julho de 2012, é aplicável apenas às sucessões por morte, nos termos do seu artº 1º, aí se excluindo as questões relacionadas com regimes matrimoniais e regimes patrimoniais no âmbito de relações que a lei aplicável considera produzirem efeitos comparáveis ao casamento.

Não havendo, como se constata, norma comunitária que obste à inclusão no processo de inventário de conta bancária existente em país estrangeiro, atento o princípio da universalidade e da unidade, segundo os quais todos os bens objecto de comunhão deverão ser partilhados no mesmo inventário, deve a conta bancária de banco estrangeiro ser incluída na relação de bens.

Questão diversa e fora do âmbito do recurso, é a de saber se os valores aí depositados são, ou não, bem comum dos interessados na partilha.

Assim, concluímos como no acórdão do nosso mais elevado Tribunal, datado de 16.10.2012, procº 991/10.3TBTVD-B.L1.S1, nos termos do qual, a propósito de prédios situados no estrangeiro, consignou que « I - O princípio da unidade e universidade da partilha impõe que, em processo de inventário, todos os bens devam ser considerados na partilha, sejam situados em território nacional ou sejam situados no estrangeiro.

II - Não basta a alegação abstracta e não fundamentada da possibilidade da existência de conflito de jurisdições ou de falta de reconhecimento no estrangeiro da sentença que vier a ser proferida para determinar que num inventário realizado em Portugal, para partilha subsequente ao divórcio que correu termos em Portugal, devam ser excluídos da relacionação bens situados no estrangeiro.

III - Na valoração do legislador, o problema do reconhecimento da sentença no Estado da situação dos bens não justifica qualquer desvio às soluções consagradas pelo direito de conflitos português, e muito menos justificará a incompetência dos tribunais portugueses».
Nada há a censurar à decisão recorrida."

*3. [Comentário] O acórdão merece as seguintes observações:

-- Em termos de competência internacional, o que há que averiguar é -- como, aliás, fez o tribunal de 1.ª instância -- a competência internacional dos tribunais portugueses para o processo de inventário para a partilha de bens comuns; assente esta competência, pode dizer-se que o processo de inventário goza de uma vis attractiva e que nele podem ser decididas todas as questões respeitantes aos bens relacionados; parece haver, no entanto, um limite: os tribunais portugueses não são competentes quando lhes seja imposta uma competência exclusiva dos tribunais de outros Estados (como a que decorre, por exemplo, do  disposto no art. 24.º Reg. 1215/2012);

-- A referência ao acórdão ao Reg. 44/2001 só pode ser considerada correcta se o processo de inventário tiver sido instaurado antes de 10/1/2015; se tiver sido proposto depois dessa data (como indica o número do processo), a referência devia ter sido feita ao Reg. 2015/2012 (art. 81.º Reg. 2015/2012).

MTS