"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/04/2024

Jurisprudência 2023 (157)


Cumulação de pedidos;
requisitos*


1. O sumário de RL 27/9/2023 (2294/21.9T8AMD.L1-4) é o seguinte:

À luz da reforma do Código de Processo Civil operada pela Lei 41/2013, de 26 de Junho e de acordo com o disposto no art.º 590.º n.ºs 2 e 3, desse diploma legal, é de seguir o entendimento que preconiza dever o juiz convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que se tenham deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende seja apreciado na acção ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1.–Relatório

1.1.–AAA instaurou a presente acção declarativa de condenação contra Mútua dos Pescadores, Mútua de Seguros, CRL, pedindo que seja anulada a declaração aposta no recibo de indemnização e condenação a Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma de valor nunca inferior a 7.500€ por conta da IPP de pelo menos 10% e outra por danos morais pela quantia de 5.000€, acrescidas de juros de mora desde a data da alta clínica, isto é, 17.05.2021, até integral pagamento.

Alegou, para tanto, que em 29.07.2020, o A. celebrou com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção; a Junta de Freguesia de Encosta do Sol transferiu a sua responsabilidade decorrente de acidentes pessoais para a R., a qual é titulada pela apólice n.º 14.00108599; a 14.08.2020 sofreu um acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 31.08.2020; a 09.12.2020 foi novamente vítima de acidente de trabalho, do qual recebeu alta a 17.05.2021; dias depois, foi contactado por um funcionário da R., informando-o que iriam proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, desde já, por força das sequelas sofridas pelo A. no pé e joelho direitos; nesse seguimento, a R. remeteu ao A. o recibo nº 21.05.75721, precisamente atestando o pagamento do valor indicado; após aquela data, ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema da sua mão esquerda, ainda em resultado do segundo acidente de trabalho; porém, obteve da R. que o sinistro já tinha sido encerrado e que já tinha recebido a totalidade da sua indemnização; tem agora noção do que consta do recibo pelo mesmo assinado, mas a verdade é que apôs a sua assinatura no mesmo em manifesto erro, porque estava totalmente convicto que se tratava apenas da indemnização devida por força da incapacidade permanente que ficou afectado, em resultado dos acidentes ocorridos, exclusivamente quanto ao pé e joelho direitos; se tivesse a percepção, no momento em que recebeu aquele valor e assinou o respectivo recibo, estava a ser alegadamente ressarcido de todos os danos e que a incapacidade fixada, de 5%, se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem teria assinado o referido recibo; assim, nos termos do disposto no artigo 247.º do Código Civil, a declaração do A., aposta no recibo de que se encontra totalmente ressarcido dos danos decorrentes do acidente em causa nos presentes autos com o recebimento da quantia de 3.750€ e que exonera a R. de qualquer responsabilidade decorrente dos acidentes que o A. sofreu é anulável, o que desde já se invoca e requer. [...]

A 02.06.2022, o Juízo Local Cível da Amadora declarou-se incompetente para conhecer do pleito (fls. 53 a 54).

Após trânsito desse despacho, foi ordenada a remessa ao Juízo do Trabalho de Sintra (fls. 56).

Por despacho de fls. 66 a 68 verso, consignou-se o seguinte:

“Nestes termos, entendeu-se que a acção não pode prosseguir pois:

– Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;

– Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado.

É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:

Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;

A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;

Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.

Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil).

Decisão: pelo exposto, absolvo a R. da instância”.

1.2.–Inconformado com esta decisão dela recorre o Autor [...].

1.5.–Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2.–Objecto do recurso

[...] a questão que se coloca à apreciação deste tribunal consiste em saber se ocorre nulidade em virtude de não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC. [....]

4.–Fundamentação de Direito

Da existência de nulidade por não ter sido proferido despacho nos termos do art.º 590.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC

Dispõe o art.º 590.º do CPC,~

“(…) 2-Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a)Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b)Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c)Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3-O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4- Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.
5- Os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.
6- As alterações à matéria de facto alegada, previstas nos n.ºs  4 e 5, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265.º, se forem introduzidas pelo autor, e nos artigos 573.º e 574.º, quando o sejam pelo réu.
7- Não cabe recurso do despacho de convite ao suprimento de irregularidades, insuficiências ou imprecisões dos articulados”.

Segundo o art.º 6.º n.º 2 do CPC:

“O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.”

Por seu turno, o art.º 186.º do mesmo diploma reza o seguinte:

1- É nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
2- Diz-se inepta a petição: (…)
c)Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.(…)”

Como é sabido, o pedido corresponde ao meio de tutela jurisdicional pretendido pelo Autor - o efeito jurídico que o Autor quer obter com a ação (Antunes Varela e Outros, “Manual de Processo Civil”, Coimbra Editora, 2.ª Edição, pág. 243). Traduz a solicitação de concreta providência para tutela do interesse afirmado pelo autor, devendo, como tal, ser claro, compreensível, inteligível e idóneo (Castro Mendes, “Direito Processual Civil”, Volume II, FDL, pág. 357). 

Acresce que o autor pode deduzir cumulativamente contra o mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis, se não se verificarem as circunstâncias que impedem a coligação (art.º 555.º n.º 1, do CPC).

Nos termos do citado art.º 590.º, para além das situações previstas na sua alínea a), compete igualmente ao juiz endereçar convite às partes para estas aperfeiçoarem os seus articulados, suprirem irregularidades e insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (n.º 2, alínea b) e n.º 4), o que significaria, à partida, que a ineptidão da petição inicial (por cumulação ilegal de pedidos) não daria lugar ao despacho de aperfeiçoamento.

Sucede que,

Para se aferir da incompatibilidade substancial de pedidos interessa apenas a contradição lógica, a incompatibilidade material de pedidos que conduzam à ambiguidade da pretensão e do efeito pretendido. [...]

No presente caso, relembra-se, o Autor invocou ter celebrado com a Junta de Freguesia de Encosta do Sol um contrato emprego-inserção, tendo esta transferido a sua responsabilidade por acidentes de trabalho. No âmbito desse contrato sofreu dois acidentes de trabalho (em 14.08.2020 e 09.12.2020).  Tendo sido contactado por funcionário da Ré no sentido de que iria aquela proceder ao pagamento da quantia de 3.750€, referente à indemnização pelas sequelas sofridas pelo Autor relativas a um dos acidentes, o Autor acabou por assinar recibo, atestando o pagamento desse valor.  E ficou a aguardar que fosse dado seguimento ao problema (da sua mão esquerda) decorrente do segundo acidente de trabalho, vindo a ser informado, posteriormente, que o sinistro estava encerrado e paga a totalidade da indemnização. Mais refere que assinou o recibo em erro, visto estar convicto de que se tratava apenas de indemnização por um dos acidentes que sofreu. Se tivesse tido a percepção, quando recebeu aquele valor e assinou o recibo, de que não estava a ser ressarcido por todos os danos e que a incapacidade fixada se referia à totalidade das sequelas, nunca teria aceite o referido montante, nem assinado tal recibo, sendo anulável tal declaração. Aduziu também que face às lesões e sequelas de que padece, fruto dos sinistros ocorridos, deve ser-lhe atribuída uma desvalorização/incapacidade permanente, nunca inferior a 10%, segundo a TNI, a que corresponde uma indemnização de valor nunca inferior a € 7.500,00, a que acresce a indemnização pelos danos morais e dores constantes que o Autor sofre e continuará a sofrer, que deve ser arbitrada em € 5.000,00 (cinco mil euros).  

Nessa sequência, pediu que a acção seja “julgada procedente, e, em consequência, anulada a declaração aposto no referido recibo e a R. condenada a pagar ao A. uma indemnização global nunca inferior a € 12.500,00, acrescida de juros de mora, desde a data da alta clínica, 17.05.2021, até integral e efectivo pagamento”.

Como resulta da decisão recorrida, o Mmo. Juiz considerou-se competente para conhecer de processo que vise a reparação dos danos resultantes de acidente de trabalho e também o pedido de anulação da declaração que o Autor emitiuAcabou, porém, por considerar não ser possível aproveitar os articulados aqui produzidos, considerando existir cumulação ilegal de pedidos (art.º 555.º do Código de Processo Civil), os quais correspondem a pedidos referentes a formas de processo incompatíveis, o que ofende as regras de competência em razão da matéria - concluindo, assim, pela verificação de uma excepção dilatória, tendo, como tal, absolvido a Ré da instância. [...]

Assim sendo, configurando-se uma cumulação ilegal de pedidos, à luz do supra exposto entendimento, deveria o Mmo. Juiz, ao invés de ter absolvido o Réu da instância, ter formulado convite ao Autor para este vir indicar qual o pedido que pretende ver apreciado neste processo, sob a cominação de não o fazendo ser o Réu absolvido da instância quanto a todos eles (art.º 38.º, n.º 1, 555.º n.º 1, do CPC “ex vi” do art.º 1.º n.º a alínea a), do CPT).

Essa ausência de convite traduz a prática de uma nulidade, nos termos do art.º 195.º do CPC, visto se traduzir na omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve, com influência na decisão da causa. E porque está a mesma coberta por decisão é a mesma impugnável por via de recurso."


*3. [Comentário] a) Não se discute o raciocínio que esteve subjacente à fundamentação do acórdão, mas, salvo o devido respeito, não se percebe o que é que ele tem a ver com o caso sub iudice.

Pelo que se compreende do relatado no acórdão, o que sucedeu foi o seguinte:

-- O Autor instaurou uma acção na qual formulou dois pedidos: um pedido de anulação da declaração aposta num recibo; um pedido de condenação da Ré pagar-lhe duas indemnizações, uma para reparação dos danos sofridos em dois acidentes de trabalho e uma para reparação de danos morais;

-- O tribunal no qual a acção foi proposta declarou-se materialmente incompetente para apreciar a acção; a pedido do Autor, os articulados foram remetidos para um Juízo do Trabalho;

-- Este Juízo proferiu um despacho do seguinte teor:

"– Aceitando-se a competência deste Tribunal para conhecer da reparação dos danos resultantes de acidente ocorrido no desempenho das funções ao abrigo de um contrato emprego-inserção, não é possível aproveitar os articulados para esse fim;
 
– Não se julga competente este Tribunal, em razão da matéria, para conhecer em acção comum do pedido de anulação declaratória e de condenação por danos morais, por não emergentes de relação de trabalho subordinado."

A articulação entre estas duas partes do despacho não é evidente. Seja como for, no mesmo despacho afirma-se ainda o seguinte:

"É que, feito este excurso, o peticionado corresponde a uma cumulação ilegal de pedidos (artigo 555.º do Código de Processo Civil), porquanto:
 
– Aos pedidos feitos correspondem formas de processo incompatíveis;
 
– A cumulação ofende regras de competência em razão da matéria;
 
Sem que haja possibilidade de fazer prosseguir a acção mesmo enquanto acção especial, dando-se cumprimento ao disposto no artigo 38.º do Código de Processo Civil, pois, como se viu, não é possível aproveitar os articulados para esse fim.

Estamos, por isso, perante uma excepção dilatória que determina a absolvição da instância da R. (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea f), e 578.º do Código de Processo Civil)."

Disto resulta:

-- Uma certeza: a excepção dilatória que o Juízo do Trabalho invoca é a falta de conexão entre os pedidos cumulados (art. 577.º, al. f), CPC);

-- Uma dúvida: não é clara a razão pela qual o Juízo do Trabalho entende que "não é possível aproveitar os articulados" para conhecimento das indemnizações correspondentes aos acidentes de trabalho; será que (o que é improvável) o alegado não é suficiente para esse "aproveitamento"?

b) É claro que a invocação do disposto no art. 577.º, al. f), CPC no despacho do Juízo do Trabalho só pode ser um equívoco. Se, para a 1.ª instância, os problemas se referiam à diversidade das formas do processo e à competência em razão da matéria (nomeadamente para conhecer do pedido prejudicial relativo à anulação da declaração do Autor), era nessa base que se deveria ter decidido. 

No entanto, também é evidente que, em parte alguma do seu despacho, o Juízo do Trabalho invoca a incompatibilidade substancial entre os pedidos cumulados a que se reporta o art. 186.º, n.º 2, al. c), CPC. É por isso que permanecem enigmáticas as razões pelas quais a RL sentiu necessidade de enquadrar o objecto do recurso na "incompatibilidade substancial de pedidos", tanto mais que não se descobre nenhuma incompatibilidade entre o pedido (prejudicial) de anulação da declaração negocial, o pedido de indemnização dos danos decorrentes dos dois acidentes de trabalho e o pedido de indemnização dos danos morais. A haver problemas, eles respeitam à compatibilidade processual (não substancial) entre os pedidos.

c) Se bem se percebe toda a situação, também não é fácil imaginar como é que a 1.ª instância pode dar cumprimento ao decidido pela RL. Para a 1.ª instância, o problema era de compatibilidade dos pedidos quanto à competência material e à forma do processo; para a RL, o problema é de incompatibilidade substancial entre os pedidos e de escolha de um dos vários pedidos formulados pelo autor. Efectivamente, um diálogo difícil entre as instâncias.
 
MTS