"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2024

Jurisprudência 2023 (160)


Seguro de responsabilidade civil; pluralidade de lesados;
intervenção principal*


1. O sumário de RC 12/9/2023 (4872/22.0T8VIS-A.C1) é o seguinte:

O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal. No plano ativo, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do mesmo sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas. Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho sem os demais.

O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, com a presença do responsável primário, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados.

A Ré Seguradora, responsável secundária, apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei deseja, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, sendo caso de contitularidade do direito indemnizatório.

Não ocorre esta contitularidade nos direitos dos lesados.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Em certo dia, um cavalo da 1ª Ré abalroou várias pessoas, ferindo-as.

O Autor, uma dessas pessoas, intentou ação contra a detentora do animal e contra a seguradora desta, pedindo uma indemnização pelos danos que sofreu.

O seguro celebrado entre as Rés é facultativo e está limitado a 50.000,00€.

O litisconsórcio é necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.

No plano ativo, o dos lesados, não ocorre aquela necessidade numa ação de responsabilidade civil, apesar do sinistro ter provocado danos em diferentes pessoas.

Cada um dos lesados pode intentar a ação sozinho, sem os demais.

A ação regula a relação entre o lesado e o lesante, definindo o direito de indemnização do primeiro, direito (personalizado) que é diferenciado dos direitos indemnizatórios dos demais lesados.

A intervenção da seguradora é feita para definir a sua responsabilidade garantística, não diretamente para com os lesados, mas para com a sua segurada, até ao limite do capital seguro. Para além deste, continua a vigorar a responsabilidade primária do lesante, que pode ser condenado em valor superior.

O disposto no art.142 da Lei do Contrato de Seguro, em caso de seguro facultativo, não impõe um litisconsórcio necessário para os lesados.

A norma regula a posição da seguradora quando o segurado responder perante vários lesados.

A norma não regula a posição do responsável primário.

Como a responsabilidade (secundária) da seguradora está limitada, a lei impõe, quanto a ela, e definida a responsabilidade primária, um rateio proporcional.

Este deverá ser acautelado com a pessoa segurada.

A limitação do capital não existe para a 1ª Ré, a responsável primária.

Também não existe o risco de a seguradora ser chamada a pagar quantia superior à do capital seguro. Relativamente a este, a seguradora responde perante a segurada.

Para se estabelecer qual a proporção do capital seguro que cabe a cada um dos lesados não é necessário, previamente, nesta ação, apurar a totalidade dos danos sofridos pelos vários lesados.

A questão não respeita a esta ação, sendo respeitante à seguradora. 

A necessidade de rateio não influencia ou contraria a decisão relativa a cada lesado, ou seja, não é por força daquele que a indemnização de cada lesado é limitada ao capital seguro ou ao proporcional dele.

A condenação eventual da 2.ª Ré poderá ser feita com menção das eventuais limitações contratuais (o capital seguro, a franquia ou outras).

Quanto ao efeito útil normal da decisão, ele consegue-se com a regulação da responsabilidade primária do lesante perante o Autor, lesado, sem que a regulação relativa aos demais lesados interfira naquela.

A limitação de que beneficia a seguradora também não interfere naquelas regulações. Definidas as indemnizações dos lesados, o que pode ser feito de diferentes formas e processos, caberá à seguradora, no que respeita aos 50 mil euros, acautelar um eventual rateio no seu pagamento.

(O caso regulado no acórdão do STJ de 02/06/2016, no processo 3987/10, é relativo ao Fundo de Garantia Automóvel, único Réu, com responsabilidade limitada.)

Pelo exposto, não existe no caso um litisconsórcio necessário.

Sendo assim, a Ré Seguradora apenas pode provocar a intervenção dos demais lesados, com a justificação do rateio que a lei lhe impõe, nos termos do art.316, nº 3, b), do Código de Processo Civil, ou seja, em caso de contitularidade do direito indemnizatório.

No caso, apenas está em causa essa norma.

E, então, não vemos que exista esta contitularidade no direito indemnizatório.

O que existe, potencialmente, são diferentes direitos indemnizatórios pertencentes a diferentes titulares. Não há um direito pertencente a vários titulares.

Os direitos são exercidos contra o lesante sem limitações de capital.

O rateio e o capital seguro não impõem qualquer unificação aos direitos."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se do decidido no acórdão da RC.

b) O art. 142.º LCS (DL 72/2008, de 16/4) estabelece, no âmbito do seguro por responsabilidade civil, o seguinte

"1 - Se o segurado responder perante vários lesados e o valor total das indemnizações ultrapassar o capital seguro, as pretensões destes são proporcionalmente reduzidas até à concorrência desse capital.

2 - O segurador que, de boa fé e por desconhecimento de outras pretensões, efectuar o pagamento de indemnizações de valor superior ao que resultar do disposto no número anterior, fica liberado para com os outros lesados pelo que exceder o capital seguro."

No caso concreto, um cavalo provocou um acidente do qual resultaram vários lesados. Do que se refere no acórdão, percebe-se que a acção foi proposta contra o proprietário do cavalo e contra a companhia seguradora deste proprietário. Esta demandada requereu a intervenção principal provocada dos demais lesados no acidente. A RC confirmou a decisão da 1.ª instância de indeferimento da intervenção requerida.

c) Com a devida consideração, o acórdão padece de dois lapsos.

Um primeiro é o de concluir que, como não há nenhuma contitularidade do direito indemnizatório, não se justifica a intervenção dos outros lesados. A premissa é correcta, mas não o é a conclusão. Daquela premissa resulta efectivamente que não se pode verificar um litisconsórcio necessário entre os vários lesados, mas dela não resulta que não se verifique uma situação de coligação necessária.

A coligação é uma modalidade do litisconsórcio, dado que, além da pluralidade de partes activas ou passivas, há uma pluralidade de pedidos distribuídos por cada um dos autores ou réus (art. 36.º, n.º 1, CPC). Assim, ainda que pudesse ser discutível a aplicação do disposto no art. 316.º, n.º 3, al. b), CPC, era indiscutível a aplicação do n.º 1 do mesmo preceito.

d) Para além destas considerações, há um aspecto que devia ter sido considerado pela RC. É este: é indiscutível que a companhia de seguros só responde até ao limite do capital seguro; se não é admitida a intervenção dos demais lesados na presente acção, como é que a companhia de seguros pode opor aos lesados não intervenientes o pagamento que fez ao lesado que propôs a acção?

A dificuldade é patente. Dado que o caso julgado da decisão proferida na presente acção não é oponível aos outros lesados dela ausentes, qualquer destes lesados vai poder argumentar que tem direito à reparação total dos danos e que lhe é completamente indiferente o que a companhia de seguros pagou a qualquer outro dos lesados.

Tenha-se presente que o problema em análise no acórdão não tem apenas uma vertente interna entre o segurado e a companhia de seguros. O problema tem também, naturalmente, uma vertente externa, dado que também respeita à relação entre a companhia de seguros e cada um dos lesados.

Esta vertente externa é explícita no disposto no art. 142.º, n.º 2, LCS. No caso concreto, a companhia de seguros não desconhece a existência de outros lesados, pelo que nunca poderá invocar que, 
de boa fé e por desconhecimento de outras pretensões, efectuou o pagamento de indemnizações de valor superior ao que resultaria do rateio e, por isso, nunca poderá invocar que fica liberada para com os outros lesados pelo que exceder o capital seguro.

e) Em suma: a intervenção principal provocada dos demais lesados era essencial para que, no que respeita à responsabilidade da companhia de seguros, se pudesse verificar o rateio a que se refere o art. 142.º, n.º 1, LCS e era igualmente indispensável para que essa companhia pudesse obter uma decisão com força de caso julgado contra todos os lesados, possibilitando-lhe opor, nos termos do disposto no art. 142.º, n.º 2, LCS, a cada um desses lesados o que pagou a cada um dos outros.

MTS