"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/04/2024

Jurisprudência 2023 (153)


Litigância de má fé;
falta de fundamentação; alteração da verdade


I. O sumário de RE 14/9/2023 (20469/19.9T8SNT.E1) é o seguinte:

1. De acordo com o disposto no artigo 639.º, n.º 3, do CPC, a rejeição, total ou parcial, do conhecimento do recurso depende da reação posterior do recorrente em relação ao convite ao aperfeiçoamento, que tanto pode traduzir-se em pura inércia, como na apresentação de nova peça processual sobre a qual, depois da eventual resposta do recorrido, incidirá a análise do Relator, a fim de verificar se os vícios apontados foram ou não corrigidos.

2. Por razões de justiça material, celeridade, eficácia e de prevalência da justiça material sobre a justiça formal, a rejeição do recurso após ter sido aceite o convite ao aperfeiçoamento das conclusões do recurso deve pautar-se por critérios de razoabilidade e parcimónia devendo ser utilizada, tão só, quando não for de todo possível, ou for muito difícil, determinar as questões submetidas à apreciação do tribunal superior ou ainda quando a síntese ordenada se não faça de todo.

3. Ocorre litigância de má-fé quando a parte deduz pedido reconvencional omitindo e alterando factos e, consequentemente, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que dessa alegação sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A sentença condenou os Réus como litigantes de má-fé, com a seguinte fundamentação:

«Cotejada a decisão de facto acima exposta, verifica-se que a versão apresentada pelos réus não encontrou qualquer conforto na prova produzida, defluindo dela manifestamente que: (i) o 1.º réu não permitiu a entrada do legal representante da autora na obra, o que afasta a tese do abandono e (ii) as partes acordaram em dar sem efeito a cláusula que continha a sanção pelo atraso na execução da obra - cfr pontos 61) e 64) dos factos provados.

Por outro lado, tratam-se de factos pessoais dos réus, dos quais os mesmos não podiam deixar de ter conhecimento, uma vez que foram praticados e presenciados pelos próprios.

Desta feita, a conduta processual dos réus acima descrita consubstancia a previsão legal da norma contida no artigo 542.º n.º 2 al. a) e b) do C.P.C., porquanto os mesmos deduziram pretensão cuja falta de fundamento não deviam ignorar, alterando a verdade dos factos.

Diga-se, ainda, que a condenação da parte como litigante de má-fé não depende exclusivamente de uma conduta processual dolosa, bastando para o efeito a demonstração de que a parte estava obrigada a ter consciência dos factos em causa – conforme sucede manifestamente nos presentes autos. (…)

Face ao exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 542.º, n.ºs 1 e 2, al.s. a) e b) do C.P.C. e 27.º, n.º 3 do Regulamento das Custas Processuais, deverão os réus ser considerados litigantes de má-fé, devendo, em consequência ficar obrigado ao pagamento de uma multa no valor de 20 (vinte) UC, o que perfaz a quantia de 2.040,00€ (dois mil e quarenta euros), atendendo ao valor dos bens jurídicos em causa e ao grau de ilicitude e culpa da conduta em censura.»

Na Conclusão i), alegam os recorrentes, em desacordo com a sentença, que não litigam de má-fé, «(…) pois não deduzem pretensão cuja falta de fundamento ignoram, nem fazem do processo um uso anormal e abusivo, como decorre do que se deixou dito supra quanto ao contrato de empreitada assinado pelo R. marido e alteração unilateral do mesmo pela A. sem qualquer consentimento ou acordo do R. e o facto de ele não ter junto a cópia do contrato que tinha por não a encontrar não deve contribuir para que daí se retire a conclusão de que está a ocultar factos ao processo, já que, como se referiu supra ele reiterou que o contrato assinado não estava rasurado, resultando das regras da experiência comum que ninguém assina um contrato rasurado sem que ressalve tal facto.»

Vejamos, então, se lhes assiste razão.

Na atuação processual estão as partes vinculadas aos deveres de probidade e de cooperação, agindo de boa-fé, com brevidade e eficácia, de forma a alcançar-se a justa composição do litígio (artigos 7.º a 9.º do CPC).

A condenação da parte como litigante de má-fé obedece aos pressupostos legais mencionados no artigo 542.º, n.º 2, alíneas a) a d), do CPC, abrangendo a sanção tanto o dolo como a negligência grave, aí se encontrando contempladas várias situações subsumíveis ao conceito de litigância de má-fé, violadoras dos referidos deveres.

Assim, atua com má-fé material/substancial a parte que, com dolo ou negligência grave, viola conscientemente o dever de verdade, ao deduzir pretensão ou oposição que sabe ou não podia deixar de saber, ser ilegítima, distorce ou deturpa a realidade de si conhecida ou omite factos relevantes, também por si conhecidos, para a decisão; atua com má-fé instrumental a parte que fizer do processo uso manifestamente reprovável, visando um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

Todavia, não corresponde a litigância de má-fé a dedução de pretensão ou oposição em que se decaí por mera fragilidade da prova ou por não lograr-se convencer o tribunal de determinada realidade trazida a julgamento, bem como as situações que resultam de discordâncias na interpretação e aplicação da lei aos factos.

Assim, a proposição de uma ação, a apresentação de uma contestação, a dedução de reconvenção ou a interposição de um recurso, com fundamento jurídico que não se conseguiu demonstrar, não constituiu uma atuação dolosa ou mesmo gravemente negligente da parte, considerando as inúmeras variáveis em confronto, posto que não se apure uma postura da parte conscientemente infundada.

Todavia, a litigância de má-fé não se pode afastar quando a parte deduz pretensão cuja falta de fundamento não podia razoavelmente ignorar, impondo-se-lhe a obrigação de previamente tentar indagar do fundamento alegado. Muito menos quando conscientemente altera a realidade dos factos, alegando-os de forma deturpada ou omitindo alguns dos aspetos revelantes da realidade alegada.

Como se refere no Acórdão do STJ 02-02-2023 (analisando a evolução normativa da previsão sobre a litigância de má-fé):

«Da redacção do referido artº 456º CPCiv anterior à revisão de 95 do Código, para a actual redacção, a expressão “que não devia ignorar” inculca que se passou de um regime de intenção maliciosa ou gravemente negligente (regime de 61 – má fé em sentido psicológico) para um regime que abrange na respectiva previsão a leviandade ou a imprudência manifestas (má fé em sentido ético).

Trata-se assim, no fundo de um regresso à concepção de má fé originária, do Código de Processo Civil de 1939, o qual, na ideia de J. Alberto dos Reis, sancionava a pretensão ou oposição cuja falta de fundamento “o agente não pudesse razoavelmente desconhecer” (assim, Menezes Cordeiro, Litigância de Má Fé e Abuso de Direito de Acção, 2006, pg. 23).»

Nesta linha de análise, refere-se no Acórdão do STJ de 12-04-2023 [Proc. n.º 1915/11.6TBALM-A.L1.S1 (Jorge Arcanjo), em www.dgsi.pt]:

«Por conseguinte, a lei tipifica as situações objectivas de má fé, exigindo-se simultaneamente um elemento subjectivo, já não no sentido psicológico, mas ético-jurídico. Por isso, actua de má fé não apenas a parte que tem consciência da falta de fundamento da pretensão ou oposição, como aquela que, muito embora não tenha tal consciência, deveria ter agido com o dever de cuidado. Acresce que o dever de verdade processual (alínea b)) pressupõe que a parte tem a obrigação de indagar a realidade em que funda a sua pretensão ( dever de pré-indagação).»

No caso, o tribunal a quo reconduziu a situação à previsão normativa do n.º 2, alíneas a) e b) do artigo 542.º, do CPC, que dispõem do seguinte modo:

«2. Diz-se litigante de má-fé que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa.»

Da análise dos articulados não nos suscita dúvida que os Réus litigam de má-fé por terem, simultaneamente, alterado e omitido parte dos factos relevantes para a boa decisão da causa e, com base nesse comportamento, terem deduzido uma pretensão cuja falta de fundamento sabiam, ou não podiam ignorar, reconduzindo-se tal comportamento processual à situação prevista no normativo acima referido.
No caso, deduzindo reconvencional alegando factos que não correspondem à realidade e omitindo outros que não podiam desconhecer.

Concretizando.

A causa de pedir do pedido reconvencional assenta nos seguintes fundamentos: (i) a Autora incorreu na penalização prevista no contrato por ter excedido o tempo de execução da obra; (ii) a Autora abandonou a obra não eliminando os defeitos; (iii); A conduta da Autora causou aos Réus danos de natureza não patrimonial.

Ora, se em relação aos fundamentos referidos em (i) e (iii), os Réus alegaram factos que vieram a provar-se não corresponder à realidade, mas que, ainda assim, pode tal resultar de dificuldades de prova não se podendo, com segurança, enquadrar a situação numa atuação intencionalmente dolosa ou gravemente negligente da parte, já em relação à factualidade referida em (ii) a questão coloca-se de modo diverso, uma vez que os Réus alegaram o abandono da obra e a não eliminação de defeitos por causa imputável à Autora, omitindo parte da realidade, ou seja, que foi o Reu quem impediu a Autora de entrar na obra a fim de verificar os defeitos (cfr. artigo 53.º da contestação), o que veio a ficar provado (cfr. ponto 64 dos factos provados).

Sublinhe-se que em relação a esta factualidade não se trata de falta ou de dificuldade de prova, mas sim de omissão pura e simples de alegação da factualidade relevante com o gravame de ter sido alegada realidade diversa. Sendo que o impedimento oposto pelo Réu à Autora para esta entrar na obra são factos de natureza pessoal que os Réus não podiam ignorar, nem desconhecer, e muito menos fundamentar o pedido reconvencional com base numa alegação deturpada da realidade.

Ou seja, os Réus não só omitiram factos, como os alteraram, deduzindo uma pretensão cuja falta de fundamento não podiam razoavelmente ignorar, visando, dessa forma, que deles sejam extraídas consequências jurídicas em termos de condenação da Autora numa indemnização, enquadrando-se essa situação, como bem refere a sentença recorrida, na previsão do n.º 2 do artigo 542.º, alíneas a) e b), do CPC.

Nestes termos, nenhuma censura merece a sentença recorrida no concernente à condenação dos Réus como litigantes de má-fé."

[MTS]