"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/07/2017

Jurisprudência (660)


Caso julgado; 
autoridade de caso julgado; requisitos


1. O sumário de STJ 1572/2017 (
2623/11.3TBSTB.E1.S1) é o seguinte:

I - Tendo o recurso de revista sido recebido ao abrigo da al. a), parte final, do n.º 2 do art. 629.º do CPC, o seu objecto está restringido à apreciação da questão que justificou a sua admissão, ou seja, a ofensa do caso julgado, não podendo, por isso, ser apreciadas ou conhecidas quaisquer outras questões.

II - A doutrina e alguma jurisprudência vêm defendendo haver situações em que não ocorrendo embora identidade entre o objecto (pedido e causa de pedir) das acções, mas apenas uma relação de prejudicialidade entre os objectos processuais respectivos, também nesta situação tem relevância o caso julgado.

III - Não ocorre qualquer relação de identidade de sujeitos nem sequer de prejudicialidade entre uma acção instaurada no tribunal administrativo pelo Ministério Público contra um município a impugnar o despacho que deferiu o pedido de licenciamento relativo à construção de uma moradia, por padecer do vício de incompetência absoluta e contrariar um parecer vinculativo do Parque Natural, e a presente acção instaurada pelo Ministério Público que pretende ver declarada a nulidade do negócio de compra e venda do prédio em que seria construída a referida moradia, com fundamento no facto dos réus – contra-interessados na acção administrativa – terem feito constar da escritura de compra e venda uma área da parte urbana superior à permitida por lei, com o intuito de enganar o Estado.

IV - Inexistindo tal relação de prejudicialidade, o pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, por simulação, formulado na presente acção, não perdeu a razão de ser ou suporte legal pelo facto de naquela acção se ter decidido que o aludido acto administrativo não era nulo.
 
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] é uma só a questão a apreciar: saber se a sentença proferida na acção especial administrativa nº 1192/09.9BEALM do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada vale ou não como autoridade de caso julgado na presente acção.

Entendeu o tribunal ora recorrido, como, aliás, no acórdão foi sumariado sob o nº 3, textualmente, que: «Tendo a sentença do foro administrativo, transitada em julgado, se limitado a aferir legalidade dos atos administrativos, por as decisões terem sido proferidas por quem detinha a competência, não escrutinando, porque tal questão não lhe foi posta, a existência de divergências entre a área de implantação ou construção do imóvel em face da Portaria 26-F/80 de 09/01, fundamento que alicerça o pedido de nulidade da escritura pública nesta ação do foro cível, aceitando a regularidade do processo, tal como o mesmo se apresentava e os respetivos pressupostos de facto (errados ou não), não se pode reconhecer existir uma situação em que impere a autoridade do caso julgado».

Ao invés, o Tribunal de 1ª instância, admitindo embora «que numa e noutra acção não existe total coincidência de sujeitos e de causa de pedir, no entanto, são partes nas duas, o Estado, representado pelo MP, e os R.R. atuais proprietários do imóvel em causa», e que não se verificando assim «a excepção do caso julgado, se impõe na presente a força do caso julgado da que foi julgada no Tribunal Administrativo…», julgando, por via disso, procedente a excepção invocada e absolvendo os R.R. da instância.

E é esta, segundo nos parece, também a tese sustentada pelos recorrentes para os quais uma decisão contrária ao acórdão proferido na dita acção nº 1192/09.9BEALM «assentaria numa relação de prejudicialidade directa entre as duas decisões, já que a questão que se discute nos autos é consumida pelo objecto da decisão do TAF de Almada em virtude da sobreposição de objectos processuais», pugnando, assim, pela revogação do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora e pela repristinação da sentença de 1ª instância, reconhecendo-se «a verificação da excepção de autoridade de caso julgado».

Vejamos então:

O caso julgado, como é sabido, pode ser de natureza formal, se relativo a questões de mero carácter processual; ou material, se referente à relação material ou substancial objecto do processo.

E enquanto o caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo ou fora dele, visando evitar que o tribunal seja colocado na contingência de contradizer ou de reproduzir uma anterior decisão de fundo transitada em julgado (vide n.º 2 do art.º 580º do C. P. Civil); o caso julgado formal, por seu turno, tem força obrigatória apenas dentro do processo respectivo, não obstando, por isso, a que noutra acção a mesma questão processual concreta possa ser apreciada e decidida em termos diferentes pelo mesmo ou por outro tribunal.

O caso julgado material pressupõe, assim, a repetição de uma causa depois da primeira ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário.

E há repetição, de acordo com a lei, quando se propõe uma causa idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir (art.º 581º nº 1 do C. P. Civil).

A identidade de sujeitos ocorre quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; a identidade de pedido, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico; e identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico – vide o citado art.º 581º do Código de Processo Civil. [...]

Ora, enquanto na presente acção o autor pretende ver declarada a nulidade do negócio de compra e venda referente a um prédio misto, situado na área do Parque Natural da Arrábida (PNA), com fundamento de que os réus fizeram constar da escritura de compra e venda do dito prédio uma área da parte urbana superior à área real existente, tendo em vista enganar o Estado e assim possibilitar a construção ou reconstrução naquele local de um prédio urbano com área superior à permitida por lei. Por sua vez, na acção instaurada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada (proc. 1192/09.9BEALM), o Ministério Público, em representação do Estado Português, impugnou o despacho proferido pelo vereador do Pelouro do Urbanismo da Câmara Municipal de Setúbal, em 2003/08/05, que deferiu o pedido de licenciamento n° 70…/01 de 19/11 da construção de uma moradia unifamiliar, propriedade de AA e BB, também R.R. naquela, com fundamento de que o mesmo padecia do vício de incompetência absoluta, por a verificação de zona RAN competir às Direções Regionais de Agricultura (e não à Camara Municipal de Setúbal) e por contrariar um parecer vinculativo da comissão Directiva PNA (Parque natural da Arrábida), pedindo, por isso, que fosse declarado nulo. Acção esta que veio a ser julgada improcedente, com a absolvição do R. e dos referidos contra-interessados do pedido.

Daí que se não descortine nem qualquer relação de identidade (identidade que os próprios R.R. no articulado superveniente também não defendem existir) nem sequer de prejudicialidade entre o objecto da dita acção e o da presente. A sentença transitada em julgado proferida na referida acção do TAF de Almada não inutiliza, que se veja, a presente acção, na medida em que a questão ali decidida de modo algum é essencial à decisão da presente acção. Ou dito de outra forma, não se vê que o pedido formulado na presente acção (isto é, a declaração de nulidade do contrato de compra e venda) tenha perdido a razão de ser ou suporte legal pelo facto de naquela se ter decidido que o aludido acto administrativo (o despacho de deferimento do licenciamento da construção da moradia) não podia, pelas razões invocadas pelo Autor, ser declarado nulo."
 
[MTS]