"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/07/2017

Jurisprudência (670)


Processo de despejo;
despejo imediato


1. O sumário de RP 13/3/2017 (1875/16.7YLPRT-B.P1) é o seguinte:
 
I - Deduzido pedido incidental de despejo imediato, a única defesa possível para o arrendatário obstar ao despejo será a prova do pagamento ou do depósito das rendas vencidas na pendência da acção ou procedimento, podendo este depósito ser efectuado a título condicional, no caso de o mesmo entender que as rendas não são devidas.
 
II - Discutindo o Requerido a qualificação jurídica do contrato (contrato de arrendamento versus contrato promessa de compra e venda), o despejo imediato deverá, ainda assim, ser decretado se do contrato junto (obrigatoriamente reduzido a escrito) e da sua exegese resultar a inequívoca demonstração da existência de um contrato de arrendamento [ainda que associado a uma opção de compra e promessa de compra e venda], se estiver previsto o pagamento de uma contrapartida mensal, a título de renda, pela gozo do prédio em causa e até à data em que tenha lugar a dita opção de compra(sendo certo que, no caso, essa opção de compra não teve lugar).
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela parte pode, eventualmente, prejudicar a boa decisão sobre o mérito das questões suscitadas; Porém, daí apenas pode decorrer um, eventual, erro de julgamento ou «error in iudicando», mas já não um vício (formal) de omissão de pronúncia.
 
Feitas estas considerações prévias, cremos que, no caso [...] ocorre, de facto, a invocada omissão de pronúncia do despacho recorrido.
 
Com efeito, se é certo que, na sequência do requerimento de despejo imediato deduzido pelos AA. e da sua subsequente notificação, os RR. não deduziram qualquer oposição (e não procederam ao pagamento/depósito das rendas reclamadas pelos AA.), certo é também que os mesmos na sua prévia contestação invocaram, além do mais, que o contrato celebrado entre as partes não deveria ser qualificado como contrato de arrendamento, mas antes como contrato promessa de compra e vendade imóvel, com entrega ou tradição do mesmo a seu favor [arts. 35º a 62º da oposição], assim como invocaram a realização de várias despesas no mesmo imóvel, a título de benfeitorias úteis, e o consequente direito de retenção sobre o imóvel, à luz do preceituado no art. 755º, n.º 1 al. f) do Cód. Civil [arts. 63º a 72º da oposição], tudo, portanto, enquanto factos impeditivos ou extintivos da sua alegada obrigação de pagamento das rendas reclamadas pelos AA. e da entrega do prédio em apreço.
 
Ora, neste contexto, o Tribunal a quo, com o devido respeito, não podia, não obstante a ausência de resposta ou oposição dos RR. ao incidente de despejo imediato deduzido pelos AA. por falta de pagamento das rendas vencidas na pendência do procedimento especial de despejo, deixar de conhecer das questões previamente suscitadas pelos RR. na sua contestação, pois que as mesmas se apresentam, de um ponto de vista legal e lógico, como manifestamente prejudiciais relativamente ao decretamento do despejo imediato.
 
De facto, a serem conhecidas – como deviam – pelo Tribunal a quo tais excepções suscitadas pelos RR. e na eventualidade de as mesmas serem consideradas procedentes (decisão de procedência – ou de improcedência - que pressupõe, lógica e necessariamente, o expresso, claro e fundamentado conhecimento de tal matéria de excepção), teria que improceder a pretensão dos AA. quanto ao despejo imediato, por fracassar o seu pressuposto essencial, qual seja a obrigação de pagamento de rendas a cargo dos RR. ou a obrigação da entrega do prédio.
 
Dito de outra forma, teria o tribunal recorrido que afirmar, para efeitos decisórios do incidente de despejo imediato, a obrigação de pagamento de rendas a cargo dos RR. e a obrigação de entrega do prédio, pois que sem uma tal afirmação, não poderia colher a pretensão de despejo imediato, antes devendo os autos prosseguir para decisão de tais questões a final.
 
Destarte, segundo cremos o despacho enferma de manifesta nulidade por omissão de pronúncia, para os efeitos previstos no art. 615º, n.º 1 al. d) ex vi dos arts. 608º, n.º 2 e 613º, n.º 3, todos do CPC.
 
Mas, se assim é, a solução não é (e já não era no anterior Código de Processo Civil – art. 715º, n.º 1 deste último) o «simples» decretamento de tal nulidade e a consequente remessa dos autos para suprimento da mesma à 1ª instância.
 
Nestas hipóteses, como decorre do disposto no art. 665º, n.º 1 do CPC, por razões de economia processual e de celeridade (e não obstante a solução implique, como é reconhecido, a eliminação de um grau de jurisdição), incumbe ao próprio Tribunal da Relação, dispondo dos elementos necessários para tal, conhecer, em sede de apelação, da excepção cuja apreciação foi omitida pelo tribunal de 1ª instância, substituindo-se, pois, a este último, sendo certo que as questões que neste âmbito se suscitam se mostram esgrimidas pelos Recorrentes nas suas alegações, ao pugnarem pela revogação do despacho recorrido e pelo prosseguimento dos autos para a sua fase contenciosa, no pressuposto lógico de que as excepções invocadas obstam ao decretamento do despejo imediato [...]. [...]
 
Vale, assim, por dizer que, neste enquadramento, a questão que se coloca é, pois, a de saber se deveria ter sido decretado o despejo imediato, ou, ao invés, se as excepções invocadas obstam a tal decretamento, partindo-se da constatação objectiva e processualmente adquirida de que os ora apelantes, na sequência da notificação prevista no art. 14º, n.º 4 do NRAU, não procederam ao pagamento ou ao depósito de quaisquer quantias à ordem dos autos. [...]
 
Vejamos.
 
De acordo com o preceituado nos arts. 14º, n.º 3 e 15º, n.º 8 do NRAU, as rendas que se forem vencendo na pendência acção de despejo ou do procedimento especial de despejo devem ser pagas ou depositadas nos termos gerais.
 
Como assim, na sequência de uma longa tradição legislativa (arts. 77º da Lei n.º 2030 de 22.06.1948, 979º do CPC/1939 e art. 58º do RAU), a falta de pagamento ou depósito tempestivo das rendas que se vencerem na pendência do procedimento especial de despejo, seja qual for o fundamento invocado para o despejo, constitui título autónomo para desocupação do locado, com a faculdade de o requerente a efectivar imediatamente (cfr. arts. 15º-D, n.º 4 al. c), 15º, n.º 8 e 15º-E, n.º 1 al. c), todos do NRAU). [...]
 
Neste contexto, a questão que tem sido colocada ao nível da doutrina e da jurisprudência – e que nos presentes autos se coloca - é a de saber se é legalmente viável decretar o despejo imediato, por falta de pagamento de rendas vencidas na pendência de acção de despejo/procedimento especial de despejo, quando ainda não se decidiu se o locatário tinha ou não a obrigação de pagar as rendas peticionadas, tendo por base o incumprimento contratual que estes imputam ao autor.
 
A questão colocada não tem, como é consabido, merecido uma resposta unívoca na doutrina e na jurisprudência.
 
Para uma corrente, nas sobreditas hipóteses, o despejo imediato não deve ser decretado. [...] 
 
Para uma outra corrente, nessas mesmas hipóteses, nada obsta ao despejo imediato. [...]
 
Ponderada a questão e sendo certo que o tribunal não pode restar na posição de «non liquet», cumpre decidir e optar pela solução que cremos ser a consagrada pelo legislador, tendo em conta, naturalmente, a singular situação do caso dos autos.
 
Nesta matéria, escreveu-se no citado Acórdão desta Relação de 19.05.2014, cujo teor merece a nossa inteira adesão, o seguinte:
 
«A razão de ser ou o fundamento jurídico do despejo imediato consistiu e consiste em evitar situações em que o arrendatário, demandado em juízo pelo senhorio, poderia continuar a gozar da coisa arrendada sem pagar a renda estipulada, podendo tal situação arrastar-se por vários anos, desde a instauração da acção até à execução da sentença transitada em julgado, após um ou mais recursos.
 
A forma de pôr termo a tais acções abusivas dos arrendatários e de evitar a disseminação de tal comportamento, consistiu precisamente na possibilidade de ser obtido o despejo imediato por falta de pagamento das rendas vencidas durante a pendência do processo.
Face aos interesses em causa e à finalidade do incidente, os fundamentos da acção passam a ser secundários, pelo que, seja qual for o fundamento invocado na acção para a resolução do contrato de arrendamento, o senhorio, após a instauração da acção, poderá sempre obter o despejo com fundamento na falta de pagamento das rendas vencidas durante a acção, caso estas não sejam pagas ou depositadas.
 
E isto é assim mesmo nos casos em que o fundamento da acção, ou um dos fundamentos, é justamente a falta de pagamento de rendas.
 
O que melhor se compreende se se tiver em consideração que este incidente está configurado como uma nova causa; como uma nova acção; como uma outra causa de pedir, diversa da causa de pedir invocada na acção em curso.
 
Estando o incidente de despejo imediato construído desta forma, a consequência lógica implica que não possam ser invocados quaisquer outros argumentos destinados a neutralizar o pedido de despejo imediato além do pagamento ou depósito das rendas vencidas na pendência da causa e indemnização devida; Com efeito, se este incidente não tivesse esta morfologia, então não se distinguiria de uma acção declarativa típica e não passaria de uma duplicação de acções numa só acção.
 
Se se admitissem outros fundamentos de oposição, o incidente apenas produziria uma maior complexidade processual e o seu objectivo (impedimento do gozo da coisa pelo arrendatário sem dispêndio de dinheiro por parte deste durante largo tempo, inclusive anos), não seria alcançado.
 
Mas se um objectivo não é susceptível de ser alcançado através de um certo processo, então tal processo carece de justificação e não deve ser sequer implementado.
 
Por conseguinte, e finalizando esta primeira questão, tem de se concluir que este incidente, de acordo com a sua razão de ser ou não admite outra oposição que não seja a prova do pagamento ou depósito das rendas e indemnização devidas ou, caso contrário, não deveria sequer existir.
 
Conclui-se, pelo exposto, que o incidente apenas admite como fundamento de oposição a alegação e prova de que as rendas em causa foram pagas ou depositadas.» [...]
 
E, ainda, se escreve no mesmo aresto desta Relação, cuja lição aqui se perfilha:
 
«Cumpre apreciar, por fim, a constitucionalidade do incidente na hipótese de se considerar, como se considerou, que o mesmo não admite qualquer outro meio de defesa a não ser o pagamento ou o depósito das rendas.
 
O Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre esta matéria pelo menos uma vez, tendo concluído pela inconstitucionalidade da norma.
 
Com efeito, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 673/2005 decidiu-se o seguinte: 
 
«Julgar inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo DL n.º 321-B/90 de 15 de Outubro, na interpretação segundo a qual mesmo que na acção de despejo persista controvérsia, quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da acção, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida» [AC TC publicado no DR II série, n.º 25, de 3.02.2006].
 
Considerou-se na fundamentação deste acórdão que a limitação dos meios de defesa do demandado à prova do pagamento ou depósito da renda surgia de forma ostensiva, como uma restrição constitucionalmente intolerável do direito de defesa no incidente de despejo imediato (por falta de pagamento de rendas na pendência de acção de despejo).
 
Nos termos do acórdão, «Tal meio de defesa é manifestamente desajustado em todos os casos em que justamente se questiona o próprio dever de pagamento de determinada renda, seja por que fundamento for (inexistência de contrato de arrendamento válido, não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário, dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade, invocação de diverso título para justificar a ocupação do local). No presente caso, em que, para além da controvérsia sobre a qualidade de locatária da primitiva ré, a interveniente (ora recorrente) sustenta o seu direito de ocupação do local em contrato-promessa de compra e venda que teria celebrado com o autor, com consequente inexistência do dever de pagamento de rendas, sendo as entregas de valor feitas imputadas no pagamento do preço de compra, questão que se encontrava ainda pendente quando foram proferidas as decisões das instâncias ora em causa, é óbvia a desadequação e inefectividade do único meio de defesa que foi reconhecido à recorrente: a prova do pagamento ou depósito das rendas pretensamente em falta, acompanhada da indemnização devida» 
 
Como se tem vindo a referir, ou se admite o incidente tal como está desenhado quanto à sua simplicidade, rapidez e eficácia ou, então, a sua admissibilidade não logra justificação.
 
Com efeito, se forem dados ao arrendatário meios processuais para discutir, por exemplo, a validade do contrato de arrendamento ou o montante da renda, o incidente perde simplicidade e torna-se complexo; perde rapidez e torna-se moroso; perde eficácia e torna-se inócuo, pois quando a questão se encontrar definitivamente julgada já não evita os prejuízos que, entretanto foram causados.
 
Daí que, tendo em consideração a questão jurídica a resolver, haja de fazer opções: ou se limitam os meios de defesa e se admite o incidente; se se admitem meios de defesa sem restrições, o incidente torna-se imprestável.
 
Já se viu que a lei procura combater as situações em que o arrendatário permanece na posse do local arrendado durante um, dois ou mais anos, sem pagar renda e quando finalmente o senhorio recupera o local, este corre o risco de nada receber porque nada consegue cobrar do arrendatário.
 
Se a ordem jurídica permitir a existência desta prática, muitos arrendatários encontrarão neste mecanismo um meio fácil de usufruir de bens sem nada despenderem e o êxito de tais procedimentos tenderá sempre a angariar cada vez mais aderentes.
 
Por conseguinte, ou a lei sacrifica eventuais direitos do arrendatário ou do senhorio.
 
Trata-se de uma questão de ponderação de interesses: quais são os interesses que devem prevalecer?
 
Afigura-se que, presentemente, deve prevalecer o do senhorio, pelas seguintes razões:
 
(1) O arrendatário pode depositar a renda e este acto não implica a transferência do dinheiro para a esfera jurídica do senhorio, pois fica à ordem do tribunal, não existindo aqui um benefício imediato para o senhorio.
 
Porém, o uso do local arrendado pelo arrendatário, sem pagamento de renda, traduz um benefício imediato para este e, ao mesmo tempo, pode tratar-se de um prejuízo definitivo para o senhorio, o qual fica privado da posse do local, não dispondo dele para si próprio, nem para facultar a outrem.
 
(2) Actualmente, nos termos do artigo 1069.º do Código Civil, os contratos de arrendamento estão obrigatoriamente sujeitos à forma escrita.
 
Nestas condições, as acções de despejo que sejam interpostas, nas quais se enxerta o incidente de despejo imediato, têm como pressuposto um contrato de arrendamento escrito, do qual consta a identidade das partes e as prestações recíprocas (locado e montante da renda).
 
Por conseguinte, o Autor, ao pedir o despejo, junta o contrato de arrendamento ou, então, não havendo contrato de arrendamento escrito, a acção a instaurar será outra, mas não a de despejo. [...]

Desta forma, tendo de existir contrato de arrendamento escrito, desde a entrada em vigor da nova redacção do artigo 1069.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, sob pena de não ser possível instaurar acção de despejo, então serão residuais e, por isso, desprezíveis, os casos em que surgirão arrendatários a invocar a «inexistência de um contrato de arrendamento válido» acompanhada de recusa de entrega do local ocupado, ou de «não serem autor e/ou réu os verdadeiros locador e/ou locatário», ou algum dissídio quanto ao montante da renda ou da sua imediata exigibilidade», ou, ainda, «invocação de diverso título para justificar a ocupação do local», hipóteses estas mencionadas no citado acórdão do Tribunal Constitucional."
 
[MTS]