"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/07/2017

Jurisprudência (664)


Processo executivo; fiador;
pagamento voluntário; sub-rogação; direito de regresso


1. O sumário de STJ 22/2/2017 (18/13.3TBVLP-E.G1.S1) é o seguinte:


I - Numa acção executiva intentada contra a devedora principal e contra os fiadores desta, o co-fiador que satisfez integralmente o crédito à exequente, não sendo um terceiro, não pode ser sub-rogado por aquela nos seus direitos contra os demais fiadores, de molde a poder exigir de cada um deles a totalidade da dívida como se de o primitivo credor se tratasse (art. 589.º do CC).

II - O pagamento da quantia exequenda por parte do co-executado extinguiu o crédito da exequente, determinando, consequentemente, o fim da execução (art. 534.º do CC).

III - Estando finda a execução, surge tão só um direito de regresso do executado contra os demais fiadores que, não se confundindo com a sub-rogação, não pode ser objecto da primitiva execução através do incidente de habilitação do adquirente (arts. 523.º e 524.º do CC).


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"O recorrente/executado/fiador/habilitado veio aos autos requerer a sua habilitação na posição processual da exequente, com vista a executar a devedora e os co-fiadores pela totalidade do valor que pagou à anterior credora.

Só em relação a estes, os co-fiadores, teremos que nos debruçar.

Estamos em sintonia com o recorrente quando defende que art. 589° [CC] é cristalino quanto à possibilidade de, no lídimo exercício do princípio da liberdade contratual, o credor sub-rogar nos seus direitos o terceiro de quem recebeu a prestação, sem necessidade de consentimento do devedor. Nenhum obstáculo legal existe que impeça a aplicação desta norma a terceiro.

A terceiro diz, e bem, o recorrente. Só que ele não pode ser considerado terceiro.

Como é salientado no acórdão recorrido estamos perante uma acção executiva, sendo que o recorrente é executado/fiador/habilitado.

Portanto não é terceiro.

Por sua vez, o título da exequente é a fiança prestada em regime de solidariedade, sendo que os Executados pessoas singulares outorgaram nos contratos de mútuo dados à execução na qualidade de fiadores da Sociedade Agrícola BB (SART). Todos se constituíram fiadores no mesmo título, pelo cumprimento integral e declararam renunciar ao benefício da excussão. Para além disso, não se convencionou o benefício da divisão, pelo que o credor podia demandar o conjunto de todos os fiadores, ou apenas exigir a um deles o pagamento integral da dívida.

A Relação julgou improcedente o incidente de habilitação de adquirente, no que respeita aos co-Executados CC, FF e GG.

Perante este quadro, o recorrente pretende que o pedido de habilitação do prosseguindo como exequente quanto a todos os Executados.

Não podemos dar guarida à sua pretensão.

Na verdade o que ressalta dela é que quer impor aos restantes fiadores as cláusulas de um contrato que foi apenas estabelecido entre ele e a Caixa AA.

O princípio da liberdade contratual, estabelecido no artigo 405.º do Código Civil, permite aos cidadãos, dentro dos limites da lei, auto-compor os seus diversos interesses, mas não pode obrigar terceiros.

A cláusula segundo a qual o recorrente ficaria sub-rogado nos direitos da credora podendo prosseguir, com todas as garantias e acessórios com o processo executivo na veste de exequente não é extensível, não vincula, os co-fiadores que não emitiram qualquer vontade nesse sentido.

Na verdade, como bem se nota no acórdão recorrido, se o Executado pagou a quantia exequenda, extinguiu-se o direito relativamente ao credor Exequente (art. 534º CC), o que determina o fim da execução.

Sobre a hipótese de a sub-rogação legal operar nos devedores solidários, referem Pires de Lima e Antunes Varela: «O exemplo do devedor solidário não nos parece exacto. O crédito não se transfere, mas extingue-se (art. 523º); o devedor não é terceiro e o seu direito (regresso) tem natureza e regime próprios (art. 524º).» [[
In “Código Civil Anotado”, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 608]].
Deste modo não podemos deixar de estar em plena sintonia com o acórdão recorrido quando defende que, estando finda a execução, surge tão só um direito de regresso do recorrente.

Esse direito de regresso, surgido ex novo e com âmbito diverso, já extravasa o âmbito do título executivo, pelo que não pode ser objecto da, digamos, primitiva execução.

A sub-rogação, causa do incidente de habilitação de adquirente só pode, assim, actuar quanto à devedora principal, a executada SART.

Quanto aos executados pessoas singulares, o que o Recorrente tem é um direito de regresso, que é diferente da sub-rogação invocada como causa da habilitação.

Este direito de regresso terá de ser exercido em acção própria, que não o presente incidente de habilitação de adquirente.

«A sub-rogação, sendo uma forma de transmissão das obrigações, coloca o sub-rogado na titularidade do mesmo direito de crédito(conquanto limitado pelos termos do cumprimento) que pertencia ao credor primitivo. O direito de regresso é um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu (no todo ou em parte) a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta. (…)

O direito de regresso, no caso da solidariedade passiva, é uma espécie de direito de reintegração (ou de direito à restituição) concedido por lei a quem, sendo devedor perante o accipiens da prestação, cumpre, todavia, para além do que lhe competia no plano das relações internas.» [[Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 346/347]]

O direito de regresso é um direito “ex novo” que nasce na titularidade daquele que extinguiu a relação creditícia anterior, sendo, pois, um direito próprio, um direito à restituição do que pagou ao credor, quando se verificarem as circunstâncias previstas na lei que lhe concedeu o direito de regresso.([Ac. Rel. Coimbra 1987/07.8TBAGD.C1 - 10-12-2013]).
A habilitação é inócua, tendo em vista o que pretende o recorrente, salvaguardar a exigência do pagamento aos demais fiadores.

O recorrente não é terceiro.

Utilizando as palavras do Prof. Antunes Varela, dir-se-á que «O terceiro que paga é de algum modo favorecido, na medida em que adquire com o cumprimento da obrigação os direitos do credor, e realizando as mais das vezes um interesse próprio; o credor também é beneficiado, mediante a satisfação do crédito por terceiro, quando o devedor possivelmente não estaria em condições de o fazer; e beneficiado pode ainda ser o devedor, por se libertar da obrigação de cumprir (e de recair em mora, no caso de o não fazer) num momento que pode não ser oportuno para ele» ([Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 346/347]).

Refere ainda este autor que «O favor subrogationis compreende-se nestes casos, não só por se tratar de um terceiro que cumpre a obrigação («o terceiro que cumpre a obrigação…»), na expressão literal do artigo 592.º), mas também pelo fim especial do cumprimento, que é o de evitar a execução da garantia, no interesse do solvens» ([ Ac. Rel. Coimbra 1987/07.8TBAGD.C1 -10-12-2013]).

Resulta do exposto, que o legislador entendeu haver justificação, nestes casos, para colocar o terceiro que paga na mesma posição ocupada pelo credor, sucedendo na posição deste último.

Daí que importe salientar que institutos de sub-rogação e de direito de regresso não se confundem, traduzindo-se a diferença entre eles, de acordo com a doutrina tradicional, nas seguintes dicotomias: i) pela sub-rogação, transmite-se um direito de crédito existente, ao passo que o direito de regresso significa o nascimento de um direito novo na titularidade da pessoa que, no todo ou em parte, extinguiu uma anterior relação creditória (art. 524.º) ou à custa de quem esta foi extinta (art. 533.º); ii) o direito de regresso, maxime na solidariedade passiva, traduz-se num direito de reintegração do devedor que, sendo obrigado com outros, cumpre para além do que lhe cabe na perspectiva das relações internas ([Ac. R. Porto  1403/12.3TJPRT.P1  - 7-10-2013]).


[MTS]