"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



28/07/2017

Jurisprudência (673)


Litigância de má fé;
contraditório


I. O sumário de RL 8/3/2017 (6894/16.0T8LSB.L1-4) é o seguinte:

1 - Ainda que não tenha sido dado oportunidade à parte para se pronunciar sobre eventual condenação como litigante de má-fé, a violação do contraditório assim encenada não impõe a revogação da decisão, antes podendo conduzir à respetiva anulação.

2 - Não é de anular a decisão se, no recurso, a parte já se pronunciou sobre a matéria.

3 - Litiga de má-fé quem apresenta uma versão comprovadamente falsa dos factos que fundamentam o seu despedimento.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Razões de lógica processual impõem-nos que iniciemos a discussão pela última das questões acima elencadas – a decisão, por ter sido proferida de surpresa, está vedada?

A esta questão dedica a Recrte. um único parágrafo no qual exprime que este nem sequer é o ponto fundamental da questão.

Do parecer exarado pelo Ministério Público emerge, porém, que “tudo estaria correto… se a Mmª Juíza tivesse informado a parte de que se afigurava como possível que ela viesse a ser condenada como litigante de má-fé e lhe tivesse dado a possibilidade e prazo para se pronunciar sobre tal matéria o que não se verificou” o que impõe a revogação de decisão.

Compulsados os autos, é uma evidência que a litigância de má-fé foi constatada pela julgadora em fase de sentença e aí obteve pronúncia.

É certo que o Artº 3º/3 do CPC dispõe que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

O princípio assim consagrado – o do contraditório - é um corolário do princípio do dispositivo e traduz-se num dos princípios basilares que enformam o processo civil, não assumindo, contudo, como daquele dispositivo legal emerge, um carater absoluto.

A violação do contraditório, patente no caso concreto, não é, porém, de molde a conduzir a uma revogação da decisão. Pode, quanto muito, levar a que a mesma se anule tendo em vista o respetivo exercício. É a consequência que retiramos de quanto se dispõe no Artº 195º/1 do CPC.

No caso sub judice, não só a parte afetada considera a irregularidade cometida como não fundamental para a apreciação da questão, como ainda a anulação se traduziria numa repetição de atos entretanto perpetrados – ou seja, dar a possibilidade à parte afetada pela decisão de se pronunciar.

Esta atividade já foi levada a cabo no presente recurso, pelo que importa agora que nos detenhamos sobre os argumentos já esgrimidos.

Deste modo, revelando-se inútil a anulação do processado, passamos a conhecer da questão de fundo.

E com isto nos deteremos sobre a primeira das suscitadas questões – não se verifica litigância de má-fé?

Antes de avançarmos no conhecimento desta questão cumpre situar as razões da condenação.

Conforme emana do extrato de decisão acima transcrito, o fundamento para a condenação situa-se na conclusão que que “a Autora alterou a verdade dos factos conscientemente e com o intuito de obter a declaração de ilicitude do despedimento (apresentando uma versão - ter acenado com a faca de cozinha, em posição defensiva, com vista a evitar eminente agressão; receando pela sua vida e integridade física - que se revelou contrária à verdade dos factos).”

Compulsados os autos, nomeadamente o articulado de resposta apresentado pela A. ali se consignou que o Sr. (…), completamente descontrolado, cresceu para a A., proferindo expressões insultuosas, evidenciando agredi-la pelo que esta, entalada contra o balcão e receosa de ser agredida física e moralmente, lhe acenou com uma faca de cozinha, em posição defensiva, com vista a evitar a eminente agressão, sendo totalmente falso o referido no requerimento fundamentador (Artº 4º, 5º e 6º).

Veio a provar-se, entre outros, que:

6.-No Sábado, dia 17 de Outubro de 2015, a Autora dirigiu-se à cozinha do Restaurante (…), com o objetivo de ir buscar tabuleiros daquela cozinha do restaurante (…) para a cozinha do buffet. 

7.-O trabalhador (…) (superior hierárquico da Autora e responsável pela cozinha do restaurante (…) disse à Autora que não autorizava a mesma a levar os tabuleiros. 

8.-O Trabalhador (…) disse ainda à Autora que existiam tabuleiros na cozinha do Buffet, que aqueles eram necessários naquela cozinha e que a mesma deveria lavar os tabuleiros existentes na cozinha do Buffet e utilizá-los. 

9.-A Autora não acatou a ordem do trabalhador (…) e, de forma brusca, retirou-os, agarrando os mesmos para os levar. 

10.-Na sequência do referido em 9, e enquanto discutiam por causa dos tabuleiros (a Autora insistindo que os levava e o trabalhador (…), dizendo-lhe que não os podia levar), a Autora agarrou numa faca de cozinha que se encontrava em cima do balcão, com aproximadamente 30 cm de lâmina, e apontou-a em direção ao trabalhador (…). 

11.-Ao mesmo tempo que apontava a faca de cozinha, proferiu as seguintes expressões: “anda cá”, “eu mato-te”. 

12.-No momento referido 10 e 11, chegou trabalhadora (…) (empregada de limpeza) que segurou a mão da Autora que empunhava a faca e retirou-lha ao mesmo tempo que lhe pedia para ter calma. 

13.-Logo após a chegada da trabalhadora (…), chegou a trabalhadora (…) que presenciou ainda a Autora com a faca na mão. 

14.-A trabalhadora (…) apelou igualmente à calma da Autora, dizendo-lhe, nomeadamente “pensa nos teus filhos”. 

15.-Encontrava-se igualmente na cozinha o trabalhador (…) que presenciou a discussão entre o trabalhador (…) e a Autora, bem como a faca na mão desta. 

17.-No momento referido em 11, o Trabalhador (…) teve medo e sentiu-se ameaçado pela Autora.

É da compaginação entre esta factualidade e a versão apresentada pela A. que se hão-de retirar conclusões para a questão que n os ocupa.

A litigância de má-fé, tendo como limite inultrapassável a garantia constitucional de acesso aos tribunais, tem como pressuposto a impossibilidade de, ao abrigo de tal garantia, as partes quererem fazer valer teses infundadas, injustas, ilegais, com o manifesto propósito de descredibilizar a Justiça e obstaculizar à célere resolução dos conflitos.

Assim, se é verdade, que não se pode vedar ao cidadão o acesso á Justiça e aos tribunais, também é verdade que estes têm o dever de acatar as decisões judiciais, e, previamente, de formular pretensões justas e fundadas no direito.

É por isso que, conforme decorre do que dispõe o Artº 542º do CPC, tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e indemnização á parte contrária.

Litiga de má-fé quem, com dolo ou negligência grave, tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou tiver alterado a verdade dos factos (Artº 542º/2-a) e b) do CPC).

Como é sabido, após a reforma processual de 1995, e com a finalidade de atingir uma maior responsabilização das partes, passou a sancionar-se, ao lado da litigância dolosa, a litigância temerária. E, assim incorre em litigância de má-fé quem atuar com grave negligência.

Ora, “a lide diz-se temerária quando”... as “regras são violadas com culpa grave ou erro grosseiro, e dolosa, quando a violação é intencional ou consciente” (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 219).

Ponderou-se na sentença que a A., com a intenção de obter uma declaração de ilicitude do seu despedimento, apresentou uma versão falsa dos factos ocorridos e que o fundamentaram.

Compulsada a matéria fática cuja prova se obteve, constatamos que a conclusão a retirar não pode ser senão aquela a que chegou a sentença recorrida, dada a factualidade cuja prova se obteve, factualidade esta presenciada por diversas pessoas e que a A. não só não podia ignorar, como, resulta evidente, que pretendeu alterar.

E, contrariamente ao que alega, não se trata aqui de mera incapacidade de provar a sua versão. Trata-se de prova de versão absolutamente oposta, o que é bem distinto.

Em presença desta factualidade, não podemos senão concluir pelo bem fundado da condenação por litigância de má-fé."

[MTS]