Prova documental;
documento autêntico; valor probatório
I. O sumário de RE 9/3/2017 (299/15.8T8EVR-A.E1) é o seguinte:
1. Um documento autêntico apenas faz prova plena quanto aos factos referidos como praticados pelo oficial público respetivo, não prova plenamente que as declarações nele contidas são verdadeiras - art.º 371.º/1 do C. Civil.
2. A declaração feita pela recorrente na escritura pública de que recebeu o preço da transmissão do imóvel tem natureza de uma declaração confessória de um facto à parte contrária, que lhe é desfavorável, com força probatória plena, nos termos dos art.ºs 352.º e 358.º/2 do C. Civil.
3. Perante a declaração de confissão extrajudicial feita pela recorrente à parte contrária, nesse documento autêntico, a sua força probatória só pode ser destruída mediante a prova do contrário, isto é, pela prova de que a recorrente não tinha recebido o preço aí estabelecido, não obstante assim o ter declarado, competindo-lhe alegar e provar de que o preço não foi efetivamente pago ou recebido.
4. E no âmbito dessa prova está excluída a prova por presunção judicial e a prova testemunhal, como decorre expressamente dos art.ºs 351.º e 393.º/2 do c. Civil.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A recorrente para prova do tema n°1 pediu que a Ré fosse notificada para vir aos autos informar: a) quando é que procedeu ao pagamento do preço referido nas escrituras públicas constantes do artigo 3.° e 4.°; b) que meio ou meios de pagamento foram utilizados, juntando para tal o comprovativo documental dos meios de pagamento utilizados e da forma de pagamento; c) que juntasse os seus balancetes analíticos dos anos de 2011 e 2012, bem como o extrato de conta que esta tem com a recorrente, neste caso, relativo aos anos de 2011 a 2015.
O tribunal a quo indeferiu esses meios de prova, por entender que essa prova já se encontrava sustentada pela confissão extra judicial, atribuindo às escrituras públicas força probatória plena, nos termos do disposto nos artigos 355.° n.° 1 e 4 e 358.° 2 do Código Civil, pelo que qualquer outra prova que seja realizada em juízo não será considerada, com exceção da eventual prova por confissão que a recorrida venha a fazer.
Discorda a recorrente por defender que a declaração de quitação dada pela recorrente nas referidas escrituras não tem força probatória plena, já que nos termos do disposto no artigo 371.° do Código Civil "a força probatória material dos documentos autênticos cinge-se aos factos praticados e percecionados pela autoridade ou oficial público de que emanam os documentos, não abrangendo a sinceridade, a veracidade e a validade das declarações emitidas pelas perante essa mesma autoridade ou oficial público, já que esse circunstancialismo não é percecionado por aqueles”. Por isso, a declaração de quitação apenas prova que a mesma foi efetuada, mas não que o preço foi efetivamente recebido pela recorrente.
Assim, delimitada a questão de fundo, vejamos, pois, se é ou não legalmente admissível outro meio de prova, que não a confissão da Ré, de que o preço devido não foi efetivamente entregue à Autora, ou seja, a única questão colocada e que constitui o objeto do presente recurso traduz-se em saber qual o valor probatório a atribuir à declaração da vendedora (Autora) de que recebeu o preço da venda dos imóveis à Ré.
Está essencialmente em causa o valor probatório desses documentos autênticos (escrituras públicas), em particular no que respeita ao recebimento, pela Autora, ora recorrente, da Ré, as quantias aí referidas, a título do preço de venda desses imóveis. [...]
Ora, como flui do art. 358.º, n.º 2, a “confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena”, sendo que a “confissão judicial ou extrajudicial pode ser declarada nula ou anulada, nos termos gerais, por falta ou vícios de vontade, mesmo depois do trânsito em julgado da decisão, se ainda não tiver caducado o direito de pedir a sua anulação”. [...]
Quanto à força probatória dos documentos autênticos, prescreve o n.º1 do art.º 371.º do C. Civil:
“Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas perceções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.
Comentando esta disposição legal, Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª edição, pág. 327/328, são claros em afirmar:
“O valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou se contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo ( ex: procedi a este ou àquele exame), e quanto aos factos que são referidos no documento com base nas perceções da entidade documentadora. Se, no documento, o notário afirma que, perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o outorgante disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante…”
E acrescentam o seguinte exemplo: “numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado; o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago”. [...]
Esta tem sido, aliás, a orientação uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, citando-se, a título de exemplo, o seu acórdão de 6/12/2011 (Relator: Conselheiro Gregório da Silva Jesus), no qual se afirma que se o documento não faz prova plena da verdade do que foi declarado, faz, no entanto, prova plena da declaração de ter sido recebido pelo vendedor o preço acordado, ou o acórdão de 15/9/2016, proc. 165/12.9TBSJP.C1.S1, onde se refere “Um documento autêntico apenas faz prova plena quanto aos factos referidos como praticados pelo oficial público respetivo, não prova plenamente que as declarações nele contidas são válidas e eficazes” [Assim se pronuncia também no seu acórdão de 9/7/2014, Proc. n.º 28252/10.0T2SNT.L1.S1: “No documento autêntico, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos, que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondem à verdade” – disponíveis em www.dgsi.pt].
No caso concreto, consta das mencionadas escrituras públicas que a recorrente, ali primeira outorgante - vendedora, declarou perante o notário (autoridade documentadora), que aí exarou, com base na sua perceção, que “já recebeu o preço da representada do segundo outorgante”.
Assim, a declaração feita pela recorrente relativamente ao preço tem natureza de uma declaração confessória de um facto à parte contrária, que lhe é desfavorável, com força probatória plena, nos termos dos art.ºs 352.º e 358.º/2 do C. Civil.
Esta tem sido a interpretação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se dá nota no seu acórdão de 17/12/2015 (Relator: Abrantes Geraldes), citando vária jurisprudência, que acompanhamos de perto, aí sublinhando:
“Ou seja, uma declaração feita por alguma das partes à contraparte que envolva o reconhecimento de um facto que lhe seja desfavorável e favoreça a parte contrária é qualificada como declaração confessória, nos termos e para efeitos dos arts. 352º e 358º, nº 2, do CC. Assim ocorre com a declaração que foi inserida na escritura de cessão de quotas reportada ao recebimento do preço. Traduz, sem qualquer dúvida, a admissão de um facto que implica para o A. (cedente) a assunção da existência do pagamento e que beneficia a R. (cessionária). Nesta estrita medida é revestida de força probatória plena, com o significado e efeito que naturalmente dela emerge, ou seja, implicando o reconhecimento pelo cedente de que recebeu a totalidade do preço.
Nesta medida, o beneficiário da declaração confessória é dispensado de provar a veracidade do seu conteúdo e, concretamente, de demonstrar, por outras vias, a efetivação do cumprimento, como forma de extinção da obrigação relativa à totalidade do preço.
Fora desses casos, o confitente é ainda autorizado a alegar e demonstrar que, malgrado o teor da declaração confessória, o pagamento não foi total ou parcialmente concretizado (art. 347º, 1ª parte, do CC). Mas agora com uma importantíssima restrição probatória, sobressaindo, com efeitos na resolução do caso concreto, a limitação quanto ao uso de prova testemunhal (e também ao uso de presunções judiciais), nos termos dos arts. 347º, 2ª parte, 393º, nº 2, e 351º do CC [...]”)”.
Assim, perante a declaração de confissão extrajudicial feita pela recorrente à parte contrária nesses documentos autênticos, a mesma beneficia de força probatória plena, nos termos do n.º 2 do art.º 358.º do C. Civil, só podendo ser destruída mediante a prova do contrário, ou seja, pela prova de que a autora não tinha recebido o preço aí estabelecido, não obstante assim o ter declarado nesses escrituras, competindo à autora alegar e provar de que o preço não foi efetivamente pago ou recebido.
E no âmbito dessa prova está excluída a prova por presunção judicial e a prova testemunhal, como decorre expressamente dos art.ºs 351.º e 393.º/2 do c. Civil.
Nesse sentido, a recorrente pretende fazer prova de que até à presente data a recorrida não pagou à Autora o preço de aquisição dos imóveis.
E para prova desse facto solicitou ao Tribunal que ordenasse a notificação da ré “para indicar quando é que procedeu ao pagamento do preço referido nas escrituras públicas e que meio ou meios de pagamento foram utilizados, devendo juntar aos autos o comprovativo documental dos meios de pagamento utilizados e da forma de pagamento”.
Ora, a recorrida não se quis pronunciar sobre esse tema na sua contestação, não tomou, porque não quis, posição sobre ele, omitindo a realização de qualquer pagamento, limitando-se a impugnar o facto do não pagamento, sem alegar que pagou, quando e porque meio, restringindo a sua defesa a invocar justamente a confissão do recebimento do preço e sua força probatória plena, naturalmente por entender ser a atitude processual mais correta na defesa dos seus interesses.
Daí não se poder impor à ré que comprove esse pagamento (facto positivo) ou que contribua para que a Autora prove o não pagamento (facto negativo), sendo certo que cabe à autora este ónus, para além de que o meio de prova adequado para obter esses esclarecimentos (e confissão) será o depoimento de parte.
E assim sendo, não se justifica a notificação da ré para esclarecer como e quando efetuou o pagamento devido."
[MTS]