Recurso de revista;
dupla conforme
1. O sumário de STJ 22/2/2017 (811/10.9TBBJA.E1.S1) é o seguinte:
I. Delimitado pelo recorrente o objecto da revista à estrita questão da quantificação do dano não patrimonial, não pode deixar de se considerar, num conceito funcionalmente adequado de dupla conforme, que a perfeita sobreposição de segmentos decisórios – e da respectiva fundamentação - das instâncias quanto à única matéria ainda em controvérsia no recurso traduz preenchimento da figura da dupla conforme.
II. Ocorrendo, num litígio caracterizado pela existência de um único objecto processual, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante arbitrado na 2.ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em 1.ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo acórdão de que se pretende obter revista, tem-se por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação, não sendo consequentemente admissível o acesso ao STJ no quadro de uma revista normal.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Pelo relator, foi proferido despacho do seguinte teor:
À
presente acção, iniciada em 2010, é aplicável o regime de recursos
previsto no actual CPC, valendo, por isso, no que respeita ao acesso
normal ao STJ, a limitação decorrente do regime de dupla conforme,
instituído pelo DL 303/07.
Ora, no caso dos autos, verifica-se que:
-
quanto à matéria controvertida na presente revista – o valor da
indemnização por danos não patrimoniais --, coincidiram totalmente as
instâncias, ao arbitrarem ao lesado o montante de €40.000,00;
-
a única dissidência entre a sentença apelada e o acórdão recorrido diz
respeito ao valor arbitrado como ressarcimento dos danos patrimoniais,
tendo a Relação baixado o valor estabelecido, neste campo , pela
primeira instância, reduzindo a indemnização por tais danos para o
montante de €31.794,74.
Significa este quadro decisório que:
-
a recorrente obteve na Relação uma decisão condenatória mais
favorável que a proferida na 1ª instância, estando o montante arbitrado
pela Relação compreendido no valor fixado pelo juiz que proferiu a
sentença apelada;
-
relativamente à matéria efectivamente controvertida na revista normal
interposta, há plena coincidência decisória das instâncias – o que
naturalmente afasta a possibilidade de as decisões proferidas sobre a
matéria objecto do recurso de revista poderem ter assentado
em fundamentos essencialmente diferentes, nos termos e para os efeitos
do disposto no art. 671º, nº 3, do CPC.
Ora,
neste tipo de situações, temos entendido que se verifica o obstáculo à
recorribilidade para o STJ, decorrente da vigência da regra da dupla
conforme; como se considerou, por exemplo, no Ac. de 10/5/12, proferido
por este Supremo no P. 645/08.0TBALB.C1.S1:
Ocorrendo,
num litígio caracterizado pela existência de um único objecto
processual, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante
arbitrado na 2.ª instância e o que foi decretado na sentença proferida
em 1.ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela
Relação já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de
coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo
acórdão de que se pretende obter revista, tem-se por verificado o
requisito da dupla conformidade das decisões, no que respeita ao
montante pecuniário arbitrado pela Relação, não sendo consequentemente
admissível o acesso ao STJ no quadro de uma revista normal.
Afirma-se, nomeadamente, neste aresto:
Ora,
no caso dos autos, verifica-se que - formulado pela lesada pedido
global de ressarcimento dos vários tipos de danos causados pelo
acidente, assente nas várias parcelas em que, para demonstração do
quantum indemnizatório peticionado, se desdobrou o cálculo do prejuízo –
não ocorre uma estrita e total coincidência numérica entre os valores
arbitrados em 1ª instância e na Relação, já que a procedência parcial da
apelação da R./CP conduziu a uma diminuição, em seu benefício, do
montante indemnizatório arbitrado na sentença à lesada.
Conduzirá
este fenómeno de não coincidência total dos montantes pecuniários das
condenações, arbitrados em cada uma das instâncias, a que se não deva
ter por verificado o requisito - limitativo do direito ao recurso -
emergente da regra da dupla conforme?
A
resposta a esta questão é claramente negativa: na verdade, o referido
conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos
empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores
pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas
instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente
adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ. E, nesta
perspectiva, não faria o menor sentido admitir que a parte que viu a sua
condenação ser atenuada pelo acórdão proferido pela Relação tivesse a
possibilidade de aceder ao Supremo – quando seguramente a não teria se o
acórdão proferido em 2ª instância tivesse mantido, nos seus precisos
termos, o montante condenatório mais elevado, arbitrado na sentença
proferida em 1ª instância. Constituiria, na verdade, seguramente solução
normativa qualificável como arbitrária ou discricionária a que se
traduzisse em conceder o direito ao recurso à parte beneficiada pela
decisão da 2ª instância – quando era inquestionável que não poderia
recorrer se a Relação, em vez de proferir decisão mais favorável para o
recorrente, se tivesse limitado a manter, ipsis verbis, a condenação
mais gravosa, decretada na sentença proferida na 1ª instância.
Saliente-se
que, numa situação com os contornos da que agora nos ocupa, existe uma
relação de inclusão quantitativa entre o valor concedido à lesada na 1ª
instância e o que lhe foi atribuído no acórdão da Relação – ou seja, o
valor pecuniário atribuído pela Relação já estava logicamente
compreendido no âmbito do montante – superior – arbitrado na sentença:
como refere Castro Mendes (Limites Objectivos do Caso Julgado, pags.336 e
segs.), ao analisar o fenómeno da extensão do caso julgado e das
relações de coerência prática e lógico-jurídica que lhe subjazem,
verifica-se a extensão por inclusão quantitativa quando é elemento da
decisão uma quantidade ideal – um valor, uma medida de coisas fungíveis,
uma percentagem. Então, a indiscutibilidade da soma alarga-se às
parcelas.
Se R. é condenado a pagar 70 a A, não pode propor contra este uma acção pedindo (rebus sic stantibus)
a declaração de não dever mais de 50. E se A propuser pela mesma causa
de pedir uma acção pedindo a condenação de R a pagar 40( não: mais 40),
pode opor-se-lhe a excepção dilatória de caso julgado. O efeito que ele
pretende (ser tido como credor de 50), embora quantitativamente
diferente do pedido formulado na primeira acção, no entanto, está
incluído na respectiva decisão (se é credor por 70, é-o por 50) e
beneficia por inferência do respectivo caso julgado, e consequentemente
da possibilidade de opor a excepção respectiva.
Ocorrendo,
deste modo, uma relação de inclusão quantitativa entre o montante
arbitrado na 2ª instância e o que foi decretado na sentença proferida em
1ª instância, de tal modo que o valor pecuniário arbitrado pela Relação
já estava, de um ponto de vista de um incontornável critério de
coerência lógico-jurídica, compreendido no que vem a ser decretado pelo
acórdão de que se pretende obter revista, é evidente que tem de se ter
por verificado o requisito da dupla conformidade das decisões, no que
respeita ao montante pecuniário arbitrado pela Relação.
Neste sentido, pode invocar-se o decidido no recente Ac. de 12/7/11, proferido pelo STJ no P. 203/08.0YYPRT-A.P1.S1, a cuja argumentação inteiramente se adere:
O
alcance do art. 721.º, n.º 3, do CPC não é uma questão de hoje. Esta
mesma questão foi já problematizada tanto pelo Professor Miguel Teixeira
de Sousa (Cadernos de Direito Privado, 21, 21 e seguintes) como ainda
pelo Vice-Presidente deste Supremo Tribunal, Conselheiro Pereira da
Silva, numa intervenção no colóquio, em 27.5.2010 “Recursos em Processo
Civil: abordagem crítica à última reforma”, (disponível em http://www.stj.pt/nsrepo/cont/Coloquios/Discursos/Intervenção-colóquioVPPS%2027%2005.pdf).
Naquele artigo refere Teixeira de Sousa que:
“Há
casos nos quais o funcionamento do sistema da dupla conforme não
levanta certamente nenhuns problemas. Se, por exemplo, o réu tiver sido
absolvido na 1.ª instância e vier a ser condenado na Relação (ou
vice-versa), é claro que o acórdão da Relação é “desconforme” com a
decisão da 1.ª instância e que, por isso, a revista é admissível nos
termos gerais. Mas também há casos nos quais a aferição da conformidade
ou desconformidade das decisões das instâncias pode ser bastante mais
complexa…Um dos casos … é aquele que se refere às decisões relativas a
obrigações pecuniárias (respeitantes, por exemplo, a prestações
contratuais ou a indemnizações resultantes de incumprimentos contratuais
ou de responsabilidade extra-obrigacional). Se o conteúdo condenatório
ou absolutório do acórdão da Relação coincidir, em termos quantitativos,
com o conteúdo da decisão da 1.ª instância, parece não haver dúvidas de
que a revista não é admissível, por se verificar uma situação de dupla
conforme. Por exemplo: a 1.ª instância e a Relação condenam ou absolvem,
ambas, o réu no pagamento de € 100.000. Admita-se, no entanto, que a
Relação, em vez de condenar ou absolver exactamente no mesmo montante da
decisão da 1.ª instância, condena ou absolve num montante distinto,
maior ou menor. Por exemplo: a 1.ª instância condenou o réu em € 80.000 e
a Relação condenou essa mesma parte em € 85.000 ou em € 75.000. Em
hipóteses como estas, coloca-se o problema da admissibilidade da revista
com base na seguinte ordem de considerações: se a Relação tivesse
condenado exactamente nos mesmos € 80.000 a que o réu foi condenado na
1.ª instância, nem o réu, nem o autor pode interpor recurso de revista,
porque se trata de duas decisões “conformes”; sendo assim, tendo a
Relação condenado o réu em menos € 5.000 ou em mais € 5.000, não é
coerente admitir a interposição de revista, respectivamente, pelo réu ou
pelo autor, porque afinal a sentença tem para eles um conteúdo mais
favorável do que aquela da qual eles não poderiam recorrer. Em concreto:
se o réu não pode interpor recurso de revista de uma decisão que o
condena em € 80.000, então não é coerente admitir que ele possa interpor
revista de uma decisão que só o condena em € 75.000; se o autor não
pode interpor recurso de uma decisão que condena o réu em € 80.000,
então não é lógico admitir que ele possa recorrer de uma decisão que lhe
concede € 85.000. Do exposto decorre a necessidade de construir um
critério pelo qual se possa aferir em que condições as decisões das
instâncias, respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão
abrangidas pelo regime da dupla conforme. O critério proposto
desdobra-se nas seguintes premissas:
–
O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à
decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do
que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que
conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para
o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da
Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da
1.ª instância…”
Na intervenção de Pereira da Silva é referido que:
“Acompanhamos,
uma vez mais, Teixeira de Sousa, noutro sentido se não pronunciando
António Santos Abrantes Geraldes, quando afirma que o sistema de “dupla
conforme” está longe de conduzir a “soluções fáceis e indiscutíveis”,
sucedendo que, “ao contrário do que o legislador talvez tenha imaginado,
a “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias não
podem ser aferidas pelo critério puramente formal da coincidência ou não
coincidência do conteúdo decisório da sentença”. E aponta, para além de
outras situações em que, a seu ver, a conformidade ou desconformidade
devem ser concretamente apreciadas, como um dos casos, muito frequente,
em que “apesar de se verificar uma divergência no conteúdo decisório das
decisões das instâncias, a aferição da “conformidade” ou
“desconformidade” dessas decisões se torna algo problemática”, “aquele
que se refere às decisões relativas a obrigações pecuniárias
“respeitantes, por exemplo, a prestações contratuais ou a indemnizações
resultantes de incumprimentos contratuais ou de responsabilidade
extra-obrigacional, nas seguintes premissas se desdobrando o critério
que advoga para aferir em que condições as decisões das instâncias,
respeitantes a diferentes montantes pecuniários, estão abrangidas pelo
regime da “dupla conforme”:
1.º
- “O apelante que é beneficiado com o acórdão da Relação relativamente à
decisão da 1.ª instância – isto é, o réu que é condenado em “menos” do
que na decisão da 1.ª instância ou o autor que obtém “mais” do que
conseguiu na 1.ª instância – nunca pode interpor recurso de revista para
o Supremo, porque ele também o não poderia fazer de um acórdão da
Relação que tivesse mantido a – para ele menos favorável – decisão da
1.ª instância…
Constitui,
assim entendida, a regra da “dupla conforme” uma malha mais apertada,
um óbice mais alargado, ao atingir do 3.º grau de jurisdição.»
Esta
posição mais abrangente não deixa de se nortear por elementos que têm
necessariamente que ser levados em consideração na interpretação da lei,
relativamente aos quais já fizemos referência supra, como sejam a ratio legis, a dogmática, e os elementos teleológico, histórico e sistemático.
Com efeito, não podemos descurar, a este propósito, aquilo que consta do preâmbulo do DL n.º 303/2007 de 24-08. Aí se refere:
“A
presente reforma dos recursos cíveis é norteada por três objectivos
fundamentais: simplificação, celeridade processual e racionalização do
acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando-se as suas funções de
orientação e uniformização de jurisprudência. (…)
Submetem-se
claramente nesse desígnio de racionalização do acesso ao Supremo
Tribunal de Justiça a revisão do valor da alçada da Relação para € 30
000, que é acompanhada da introdução da regra de fixação obrigatória do
valor da causa pelo juiz e da regra da dupla conforme, pela qual se
consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que
confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a
decisão proferida na 1.ª instância. (…).”Ora, estes objectivos, clara e
expressamente assumidos, de racionalização seriam destituídos de sentido
caso se fizesse uma interpretação formalista e meramente literal do
art. 721.º, n.º 3, do CPC.
Que racionalidade existe em não permitir um recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação mais vantajosa para o recorrente?
Os
recursos existem para sindicar as sucumbências e não se antevê que
lógica e racionalidade existam em permitir o recurso num caso em que a
sucumbência é maior e já o permitir noutro em que a sucumbência é menor.
Assim,
vale aqui o princípio de que, quando se proíbe o mais se proíbe o
menos, por esta proibição estar logicamente contida na primeira.
Ora,
transpondo estas considerações para o caso dos autos, terá de
concluir-se pela inadmissibilidade da revista normal interposta, pelo
que, ao abrigo do disposto no art. 655º do CPC, determino a notificação
das partes para se pronunciarem, querendo, sobre a questão prévia da
recorribilidade.
3.
Nenhuma das partes se pronunciou sobre a questão prévia suscitada, pelo
que – pelos fundamentos atrás explicitados – não se toma conhecimento
do objecto da revista, nos termos do art. 655.º"
[MTS]