"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/04/2018

Jurisprudência 2018 (12)


AECOP;
compensação; reconvenção

I. O sumário de RC 16/1/2018 (12373/17.1YIPRT-A.C1) é o seguinte: 

1. A al. c) do nº 2 do artigo 266º do CPC apenas diz que a compensação é admissível como fundamento de reconvenção e não que a compensação só possa ser feita valer por esse meio.

2. A compensação opera por mera declaração unilateral de uma das partes à outra (nº 1 do artigo 848º CC), tendo a extinção dos créditos eficácia retroativa ao momento em que os créditos se tornaram compensáveis (artigo 854º CC).

3. Em processo onde seja vedada a dedução de reconvenção, ao réu terá de ser facultada a possibilidade de invocar a compensação por via de exceção, sob pena de lhe ser coartado um importante meio de defesa.
 

II. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I – RELATÓRIO  

A (…) unipessoal, Lda., intentou procedimento de injunção contra C (…), S.A.,

Pedindo a condenação da Requerida no pagamento da quantia de 10.235,20 €, acrescida de 886,05 € de juros de mora, acrescida de 190,00 €, por fornecimento de bens e serviços.

A Requerida deduziu oposição alegando, em síntese:

em 21-08-2015, a Requerida celebrou com a requerente um contrato de subempreitada, pelo preço de 21.370,50 €, trabalhos a realizar pela Requerente até 30.09.2015, por conta dos quais a Requerida já pagou a quantia de 2.200,00 €;

a requerente deixou de executar trabalhos no valor de 10.328,70€, pelo que a requerida lhe comunicou que nada pagaria enquanto não fosse executada a totalidade dos trabalhos contratualmente previstos; [...]


III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Admissibilidade da compensação/reconvenção.

"Instaurado procedimento de injunção de valor inferior a 15.000,00 €, a dedução de oposição implica a remessa do procedimento à distribuição, seguindo-se com as necessárias adaptações o disposto no nº 4 do art. 1º e nos artigos 3º e 4º a – Artigo 17º, nº 1 do Anexo ao DL nº 269/98, de 1 de setembro.

Ou seja, em tais casos, deduzida oposição, se a ação tiver que prosseguir sem que os autos disponham de elementos para, desde logo, conhecer do mérito da causa, a audiência realiza-se dentro de 30 dias, sendo as provas apresentadas em audiência.

A jurisprudência foi-se consolidando no sentido de que nas ações especiais para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de transação comercial de valor inferior a metade da alçada da Relação (ou seja, de valor não superior a 15.000,00 €), e dado os termos simplificados em que a mesma se consubstancia, não é admissível a reconvenção [...
].

Sendo aí admissíveis unicamente dois articulados (requerimento de injunção e contestação), a contestação só é notificada ao autor simultaneamente com a notificação da data da audiência final (nº 4 do art.º do Anexo, por força do nº 1 do art. 17º), pelo que, a resposta do autor a eventuais exceções que o réu deduza na contestação só poderão ter lugar no início da audiência de julgamento.

Será esta a intenção do legislador e a interpretação que melhor se concilia com a tramitação processual simplificada prevista para tal ação especial.
 

[...] no caso em apreço, deve ser permitido ao réu defender-se mediante a invocação da compensação, sob pena de tal meio de defesa lhe ficar definitivamente vedado – com efeito, ainda que não se encontre impedido de, em ação a instaurar posteriormente, vir a pedir o reconhecimento do seu crédito, tal reconhecimento não ocorrerá a tempo de o poder contrapor ao crédito do autor, sendo que, se o autor vier a propor ação executiva, dificilmente logrará o reconhecimento da compensação mediante a dedução de embargos de executado. Ou seja, vedando-lhe a invocação do contracrédito na presente ação, significará que, na prática, ainda que possua (no âmbito dessa mesma relação), um contracrédito contra o autor, o réu será obrigado a, em primeiro lugar, satisfazer o crédito do autor, correndo o risco de o seu contracrédito não vir a ser satisfeito.

Como salientava Adriano Vaz Serra [RLJ Ano 104, p. 356], declarada a compensação pela parte (extrajudicial ou judicialmente), o tribunal não pode decidir, sem mais, que o demandado deve pagar o crédito do autor (e ainda que o crédito daquele seja ilíquido), já que o demandado tem o direito de não pagar, na medida em que a sua dívida se compense com uma dívida do autor para com ele.

Já então, tal autor [Adriano Vaz Serra, RLJ Ano 104, p. 356] alertava que, se devido à diversidade da forma de processo, não for admissível a reconvenção e a liquidação do contracrédito não for possível através de reconvenção, nem por isso pode o demandado ficar privado do direito à compensação – se o demandado declarar a compensação com um contracrédito cuja apresentação deva ser feita em processo com outra forma ou por outro tribunal, a invocação da compensação faz-se por exceção perentória.

A Apelação é, assim, de proceder, sendo de admitir todo o alegado pelo requerido nos arts. 21º e ss., da sua oposição, para o efeito de o tribunal apreciar a sua pretensão a ver compensado o crédito do requerente com o crédito do requerido, para o efeito de declarar extinto o crédito do requerente desde 21.06.2016."


III. [Comentário] a) A dedução da compensação no âmbito das chamadas AECOPs tem originado algumas dificuldades. O mais importante nesta matéria é ter ideias claras sobre o problema.

Antes do mais, importa distinguir consoante a compensação já tenha sido invocada e já tenha operado fora do processo ou a compensação seja invocada em juízo com vista a operar num processo pendente:

-- No primeiro caso, o que o réu invoca é um facto extintivo do crédito alegado pelo autor (à semelhança, por exemplo, da invocação do pagamento), pelo que o réu só tem de alegar a correspondente excepção peremptória (cf. art. 576.º, n.º 3, CPC); a procedência da excepção conduz à absolvição do pedido quanto ao montante do crédito do autor extinguido pela compensação;

-- No segundo caso, o réu pretende obter a compensação judicial, ou seja, pretende que a compensação seja reconhecida e opere no processo, tendo para o efeito de formular o correspondente pedido reconvencional (cf. art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC); a procedência da reconvenção opera a extinção, total ou parcial, do crédito alegado pelo autor.

A única forma de invocar a compensação judicial é a dedução da correspondente reconvenção. As formas processuais estabelecidas na lei não são facultativas, não havendo a possibilidade de a parte escolher uma forma alternativa àquela que é fixada pela lei. Sendo assim, tal como não é admissível que o pagamento do crédito invocado pelo autor seja deduzido pelo réu ope reconventionis, também não é admissível que a compensação judicial seja alegada ope exceptionis. Em qualquer dos casos, verifica-se um erro na forma do processo (cf. art. 193.º, n.º 1, CPC).

b) O acórdão adopta uma orientação que é, por vezes, defendida na doutrina e na jurisprudência. Partindo do princípio de que, nas AECOPs, a compensação judicial não pode ser deduzida ope reconventionis, essa orientação defende que o problema pode ser ultrapassado se se admitir que essa compensação possa ser invocada ope exceptionis. O argumento parece ser o seguinte: dado que nas AECOPs não é admissível a reconvenção, porque na sua tramitação não se inclui a réplica para o exercício do contraditório quanto à matéria da reconvenção (cf. art. 584.º, n.º 1, CPC), então há que recorrer à defesa por excepção, dado que esta é indiscutivelmente admitida em qualquer AECOP.

Esta orientação padece, salvo o devido respeito, de um equívoco. O fundamento pelo qual a referida orientação questiona a admissibilidade da reconvenção nas AECOPs é a circunstância de a tramitação destas acções não admitir a resposta à contestação. Perante isto, o que cabe perguntar é se a invocação da compensação judicial por via de excepção e a consequente supressão do articulado de resposta do autor à matéria da compensação constitui uma solução aceitável.

A resposta só pode ser uma: a solução não é aceitável. O réu que alega a compensação judicial por via de excepção, por não o poder fazer através de reconvenção, vai invocar exactamente os mesmos factos e os mesmos argumentos que invocaria na reconvenção. Ainda assim, entende aquela orientação que, com a deslocação da compensação da reconvenção para a excepção, o problema está resolvido. É claro que não está.

O que importa, pela perspectiva do autor, é que ele tenha, numa posição de igualdade de armas perante o réu e de respeito do princípio da igualdade das partes (cf. art. 4.º CPC), a possibilidade de se defender adequadamente da compensação que o réu pretende operar na AECOP. Para esse autor é completamente indiferente que os factos e os argumentos aduzidos pelo réu para fundamento da compensação constem da parte da contestação respeitante à defesa por excepção ou da parte da contestação na qual deve ser deduzida a reconvenção. 

O essencial a ter em conta não é, naturalmente, a parte da contestação na qual o réu invoca o seu contracrédito e a compensação (a diferença é apenas de alguns artigos mais acima ou mais abaixo), mas antes o contraditório do autor quanto à compensação que o réu pretende fazer valer contra o crédito invocado na AECOP por aquela parte. Nenhum problema fica resolvido se, na contestação do réu, a compensação, em vez de ser invocada ope reconventionis, for deduzida ope exceptionis.

c) A principal crítica que pode ser feita à orientação que propugna que, nas AECOPs, a compensação seja deduzida ope exceptionis decorre, por isso, da falta de lógica do raciocínio que a ela conduz:

-- A reconvenção exige, de acordo com os princípios da igualdade das partes e do contraditório (cf. art. 4.º e 3.º, n.º 1, CPC), a possibilidade de resposta do autor (réu do pedido reconvencional);

-- A tramitação das AECOPs não admite resposta à contestação e, portanto, à reconvenção deduzida neste articulado;

-- Logo, o que deveria ser alegado por via de reconvenção pode ser alegado por via de excepção.

Perante este raciocínio, a pergunta que imediatamente se coloca é a seguinte: o que é alegado por via de excepção, por não se considerar admissível a reconvenção numa AECOP, não exige o mesmo respeito pelos princípios da igualdade das partes e do contraditório? Ou ainda esta: a compensação judicial merece um tratamento diferente, em termos de igualdade das partes e de contraditório, quando seja invocada ope reconventionis ou ope exceptionis? Supõe-se que não é sequer necessário responder a nenhuma destas perguntas para se saber qual é a resposta correcta.

Isto demonstra que a dedução da compensação judicial por via de excepção nas AECOPs, além de contrariar a forma legal de invocação dessa compensação imposta pelo art. 266.º, n.º 2, al. c), CPC, ainda viola os princípios da igualdade das partes e do contraditório. Em linguagem da jurisprudência do TC, pode afirmar-se que a norma constante dos art. 1.º, n.º 4, 3.º e 4.º RPOP, quando interpretada no sentido de que, numa AECOP pendente, a compensação judicial deve ser deduzida por via de excepção, é inconstitucional por violação dos princípios da igualdade das partes e do contraditório que são inerentes ao processo equitativo exigido pelo art. 20.º, n.º 4, CRP. Trata-se, em suma, de uma solução que não resolve o problema.

d) Dada a inaceitabilidade da tese que propugna que, nas AECOPs, a compensação judicial seja invocada por via de excepção, resta concluir que aquela compensação deve ser deduzida por via de reconvenção e que há que admitir, com base nos princípios da igualdade das partes e do contraditório, um articulado de resposta do autor (réu do pedido reconvencional) à reconvenção deduzida pelo réu.

MTS