"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/04/2018

Jurisprudência (825)


Reg. 655/2014; arresto de contas;
requisitos 


1. O sumário de RL 28/11/2017 (22649/17.2T8LSB.L1--7) é o seguinte:

I.– O Regulamento (UE) nº 655/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas para facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial, tem como requisitos o fumus boni iuris e o periculum in mora em termos equivalentes ao artigo 391º do Código de Processo Civil.

II.– Exigir à requerente a alegação/demonstração de que o requerido não tem bens e/ou rendimentos no estrangeiro, designadamente em França, seria impor uma conduta processual que violaria o princípio da efetividade porquanto, na prática, isso significaria que o exercício do direito de arresto ficaria extremamente difícil.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A única questão em apreciação consiste em saber se existe fundamento para o indeferimento liminar deste procedimento cautelar.

O procedimento de decisão europeia de arresto de contas foi instituído pelo Regulamento (EU) nº 655/2014, do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de maio de 2014, tendo entrado em vigor em 18 de janeiro de 2017, o qual visa facilitar a cobrança transfronteiriça de créditos em matéria civil e comercial.

A ratio e pressupostos de tal procedimento são explicitados nos Considerandos 7 e 14 nestes termos:

«(7) Um credor deverá poder obter uma medida cautelar sob a forma de uma decisão europeia de arresto de contas («decisão de arresto» ou «decisão») que impeça o levantamento ou a transferência de fundos que o seu devedor possui numa conta bancária mantida num Estado-Membro se existir o risco de, sem essa medida, a subsequente execução do seu crédito sobre o devedor ser frustrada ou consideravelmente dificultada. O arresto de fundos mantidos na conta do devedor deverá ter como efeito impedir que não apenas o próprio devedor, mas também as pessoas por este autorizadas a fazer pagamentos através dessa conta, por exemplo, por meio de uma ordem permanente, através de débito direto ou da utilização de um cartão de crédito, utilizem os ditos fundos. (…)
 
(14) As condições de concessão da decisão de arresto deverão proporcionar um equilíbrio adequado entre o interesse do credor em obter uma decisão e o interesse do devedor em prevenir abusos da decisão. 
 
Por conseguinte, quando o credor apresentar um pedido de decisão de arresto antes de obter uma decisão judicial, o tribunal ao qual é apresentado o pedido deverá certificar-se, com base nos elementos de prova apresentados pelo credor, de que é provável que este obtenha ganho de causa no processo principal contra o devedor. 
 
Além disso, o credor deverá ter a obrigação de, em todas as circunstâncias, mesmo quando já tiver obtido uma decisão judicial, demonstrar suficientemente ao tribunal que o seu crédito tem necessidade urgente de proteção judicial e que, sem a decisão, a execução da decisão judicial existente ou futura pode ser frustrada ou consideravelmente dificultada por existir um risco real de que, na altura em que o credor vir esta decisão executada, o devedor possa ter delapidado, ocultado ou destruído os bens ou tê-los alienado abaixo do seu valor, com uma amplitude inabitual ou de modo pouco habitual.


O tribunal deverá avaliar as provas da existência desse risco apresentados pelo credor. Tais provas poderão ter a ver, por exemplo, com o comportamento do devedor em relação ao crédito do credor ou num anterior litígio entre as partes, com o historial de crédito do devedor, com a natureza dos bens do devedor e com qualquer ato recentemente praticado por este a respeito dos seus bens. Ao avaliar as provas, o tribunal poderá considerar que os levantamentos efetuados das contas e os gastos em que o devedor incorre para exercer a sua atividade profissional habitual ou para despesas familiares recorrentes não são, em si mesmos, inabituais. A simples falta de pagamento ou contestação do crédito, ou o simples facto de o devedor ter mais do que um credor não deverá, por si só, ser considerado prova suficiente para justificar a emissão de uma decisão. O simples facto de a situação financeira do devedor ser precária ou estar a deteriorar-se também não deverá, por si só, constituir um fundamento suficiente para proferir uma decisão. No entanto, o tribunal poderá ter em conta estes fatores na avaliação global da existência do risco.»

Quanto ao regime instituído por tal Regulamento, as disposições chave para a apreciação requerida no caso em apreço são os artigos:

«Artigo 7º
Condições de concessão de uma decisão de arresto

1.- O tribunal profere a decisão de arresto quando o credor tiver apresentado elementos de prova suficientes para o convencer de que há necessidade urgente de uma medida cautelar sob a forma de uma decisão de arresto, porque existe um risco real de que, sem tal medida, a execução subsequente do crédito do credor contra o devedor seja frustrada ou consideravelmente dificultada. 
 
2.- Caso não tenha ainda obtido num Estado-Membro uma decisão judicial, uma transação judicial ou um instrumento autêntico que exija que o devedor lhe pague o crédito, o credor apresenta também elementos de prova suficientes para convencer o tribunal de que é provável que obtenha ganho de causa no processo principal contra o devedor. (…)
 
Artigo 9º
Obtenção de provas

1.- O tribunal toma a sua decisão por procedimento escrito com base nas informações e provas apresentadas pelo credor no seu pedido ou a ele apensas. Se considerar que as provas apresentadas são insuficientes, o tribunal pode, se o direito nacional o permitir, exigir ao credor que apresente provas documentais suplementares.

2.- Não obstante o nº 1 e sem prejuízo do artigo 11º, desde que tal não atrase indevidamente o processo, o tribunal pode recorrer também a quaisquer outros métodos adequados de obtenção de provas previstos no seu direito nacional, tais como a audição oral do credor ou da(s) sua(s) testemunha(s), inclusive por videoconferência ou outra tecnologia da comunicação.»

Conforme refere Joana Covelo de Abreu, “O Regulamento n.º 655/2014 que estabelece um procedimento de decisão europeia de arresto de contas: direitos à ação e de defesa em tensão reflexiva no contexto de uma integração judiciária em matéria civil – uma precoce antevisão”, in E-book, Vol. I, Workshops CEDU 2016, p. 267, «cabe ao credor apresentar elementos probatórios suficientes que criem, no tribunal, a convicção de bom direito (fumus boni iuris), onde consiga reproduzir a urgência do acautelamento judicial procurado por se verificar um perigo real de que a execução do seu crédito seja impedida ou dificultada caso o arresto não seja decretado (periculum in mora) – art. 7.º, n. 1.»

Os requisitos de decretação deste arresto não diferem, assim, dos exigidos pelo Artigo 391º do Código de Processo Civil – cf., por todos, Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 2015, pp. 229-239.

No caso em apreço, a requerente estribou o procedimento na alegação dos seguintes factos:

a. - O requerido é o único sócio e gerente da sociedade “Pixel Pirâmide, Unipessoal, Lda.”, tendo-se constituído como fiador e principal pagador em contrato de arrendamento celebrado com a Requerente (arts. 1 a 3);

b. - A requerente é credora do requerido pelo valor de € 7.868, 04, decorrente designadamente de rendas em atraso (desde dezembro de 2016) e indemnização (arts. 5 a 17);

c. - Apesar das insistências da requerente, nenhum pagamento foi efetuado, apesar das promessas feitas (arts. 17 a 19);

d. - O requerido comunicou à requerente que ia regressar definitivamente a França uma vez que a sua companheira aí se encontra e será pai (art. 20);

e. - O requerido movimenta-se com frequência pelo estrangeiro, passando largos períodos fora de Portugal (art. 23);

f. - A sociedade inquilina não tem qualquer atividade registada no portal da Autoridade Tributária (art. 24º);

g. - No portal do Ministério da Justiça não consta qualquer atividade da sociedade, nem sequer a prestação de contas de 2016 (art. 25);

h. - Para além da conta bancária, não são conhecidas quaisquer contas em nome do requerido ou da sociedade, designadamente em Portugal (art. 26);

i. - Não são conhecidos qualquer património ou rendimentos em Portugal, seja em nome do requerido seja em nome da sociedade (art. 27).

O tribunal a quo fundou a sua decisão neste racional:

«Uma vez aqui chegados, convém trazer aqui à colação o conceito de “justo receio de perda da garantia patrimonial” de que depende o decretamento do arresto. 
 
Para se integrar este conceito é necessário que exista uma qualquer causa idónea a provocar num homem médio esse receio; isto é, que seja alegada qualquer atuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito. Aliás, é isto que resulta expressamente dos considerandos do Regulamento (EU) n.º 655/2014. 
 
Acontece que, salvo o devido respeito por opinião contrária, no caso em apreço, a alegação efetuada pela requerente não é suficiente nesse sentido. 
 
Na verdade, a requerente limita-se a afirmar que o requerido pretende regressar a França, que a sociedade inquilina não tem registada qualquer atividade, que não são conhecidas outras contas bancárias em nome do requerido ou dessa sociedade, designadamente, em Portugal e que não é conhecido qualquer património ou rendimentos auferidos em Portugal, seja em nome do requerido, seja em nome da sociedade inquilina. 
 
Ora, conforme se extrai especificamente do Considerando 14 do Regulamento, não basta para preencher o requisito do receio da perda patrimonial alegar que o requerido não pagou, não obstante as interpelações efetuadas e que o único património que possui são os depósitos na conta cujo arresto se requer, mesmo sabendo-se que o dinheiro é um bem de fácil dissipação ou ocultação. 
 
Haveria que alegar comportamentos ou condutas do requerido que sustentassem o justo receio de perda da garantia patrimonial, designadamente, que o requerido já se desfez de todo o seu património ou outras condutas que indiciassem que se prepara para dissipar ou ocultar o dinheiro que se encontra depositado na(s) sua(s) conta(s) bancária(s), o que a requerente em momento algum alegou. 
 
Por outro lado, a requerente nem sequer alega a existência de outras dívidas por parte do requerido que pudessem indiciar minimamente que o requerido se encontra numa situação financeira precária, assim como, não alega quaisquer outros factos que sugiram uma qualquer situação financeira difícil. Antes pelo contrário, a alegação da requerente encontra-se restrita a Portugal, porquanto afirma que não conhece outro património ou outros rendimentos auferidos em Portugal, deixando, assim, antever a possibilidade de existirem outros rendimentos auferidos pelo requerido no estrangeiro. 


Em suma, a requerente não alega factos objetivos que, no seu conjunto, permitam concluir que existe um justo receio de perda de qualquer garantia patrimonial do seu crédito, sendo certo que era no requerimento inicial que o tinha que fazer.»

Não merece acolhimento a fundamentação adotada pelo tribunal a quo.

Com efeito, a alegação da requerente veicula o seguinte: a divida do requerido e da sua sociedade vem aumentando há quase um ano, não sendo conhecidos rendimentos nem atividades em Portugal nem ao requerido nem à sociedade constituída e sediada em Portugal; apesar de promessas de pagamento, o requerido não as cumpriu; está iminente a ida definitiva do requerido para o estrangeiro (França).

Colocado perante este quadro fáctico, qualquer pessoa de são critério, em face do modo de agir e propósitos do requerido, teme vir a perder a possibilidade de cobrar, efetivamente, o seu crédito. Com efeito, a solvabilidade do requerido é – segundo o alegado – nula, o seu património é escasso, e o requerido evidencia um propósito reiterado de não cumprir que será facilitado pela sua ausência no estrangeiro, sendo que esta dificulta a recuperação do crédito. Este quadro fáctico é suficiente para demonstrar o periculum in mora.

Perante este quadro fáctico, é desnecessária a alegação/demonstração de atos especificados de dissipação do património do requerido porquanto, nos termos alegados, tal património é escasso. Também não é necessária a alegação/demonstração da existência de outros credores, tanto mais que – sendo o crédito de montante não elevado (inferior) a € 8.000 – o seu reiterado não pagamento evidencia, de forma clara e mais sintomática, a insolvabilidade e/ou o propósito de não cumprir.

Também não faz qualquer sentido que se exija ao requerente deste tipo de procedimento a alegação e prova de que o requerido não tem rendimentos ou bens no estrangeiro, no caso, em França. Tal exigência consubstanciaria uma prova diabólica que, à partida, inviabilizaria este novo arresto no espaço da União Europeia.

Com efeito, o princípio da tutela jurisdicional efetiva está consagrado no Artigo 47º da Carta dos Direitos Fundamentais e subdivide-se em dois outros: o princípio da equivalência e o princípio da efetividade. Na formulação do Acórdão Unibet de 13.5.2007, Processo C-432/05, «as modalidades processuais das ações destinadas a garantir a salvaguarda dos direitos conferidos aos litigantes pelo direito comunitário não devem ser menos favoráveis do qua as que respeitam a ações similares de natureza interna (princípio da equivalência) e não devem tornar impossível ou excessivamente difícil, na prática, o exercício dos direitos conferidos pela ordem jurídica comunitária (princípio da efetividade)». Exigir à requerente a alegação/demonstração de que o requerido não tem bens e/ou rendimentos no estrangeiro, designadamente em França, seria impor uma conduta processual que violaria o princípio da efetividade porquanto, na prática, isso significaria que o exercício do direito de arresto ficaria extremamente difícil.

Termos em que deve proceder o recurso."

3. [Comentário] a) O acórdão da RL é certamente uma das primeiras decisões portuguesas sobre o Reg. 655/2014. 

Ainda que, atendendo à relativa novidade do Reg. 655/2014, não haja jurisprudência suficiente para criar modelos decisórios, há que concluir que o acórdão decidiu bem. Como decorre do disposto no art. 7.º Reg. 655/2014, a credora demonstrou, com o grau de prova característica da mera justificação, o periculum in mora e o fumus boni iuris, bem como que, sem o arresto provisório, a execução da dívida seria impossível ou muito dificultada (cf. Rauscher/Wiedemann, EuZPR/EuIPR (2015), Art 7 EU-KPfVO 4; Schlosser/Hess, EuZPR (2015), Art. 7 EuKtPVO).

b) O artigo e a obra citada no acórdão podem ser encontrados em UNIO E-book Vol. I - Workshops CEDU 2016.

MTS