"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/04/2018

Jurisprudência (830)

Impugnação pauliana;
qualificação jurídica; correcção oficiosa

1. O sumário de RL 20/12/2017 (1651/1.9TBMTJ.L1-2) é o seguinte:

I.–Tendo o autor, em ação de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do ato jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do ato em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 5.º n.º 3 do CPC.

II.–Tal intervenção oficiosa, cuja admissibilidade está pacificamente firmada desde a prolação do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ datado de 23.01.2001 e publicado, sob o n.º 3/2001, no D.R., 1.ª série, de 09.02.2001, não exige, em regra, a prévia auscultação das partes, ao abrigo do n.º 3 do art.º 3.º do CPC.
 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Por força das alterações introduzidas no CPC de 1961 pelo Dec.-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, com a redação fixada pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9, o legislador aprofundou o papel das partes na resolução do litígio, alargando o seu envolvimento ativo às várias fases do processo, em termos que assim ficaram espelhados no n.º 3 do art.º 3.º do CPC, reproduzido no mesmo artigo do atual Código:

“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”

É sabido que, se no que concerne à matéria de facto o tribunal está, no essencial, limitado às alegações das partes (n.ºs 1 e 2 do art.º 5.º, 552.º n.º 1 al. d), 572.º al. c), do CPC), o mesmo não sucede no tocante “à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (n.º 3 do art.º 5.º). Como reza o brocado latino, “jura novit curia”. Porém, as partes têm o direito de ser ouvidas acerca do enquadramento jurídico do litígio, de forma a poderem influenciar a decisão também a esse nível. Isto poderá levar a que, passada a fase dos articulados e já na fase de decisão final, o tribunal deva abrir um incidente de auscultação prévia das partes, se se lhe deparar uma solução de direito do litígio com que as partes não podiam contar e sobre a qual não tiveram antes a possibilidade de se pronunciarem.

Revertamos ao caso dos autos.

Como é notório, a ação sub judice é uma “ação de impugnação pauliana”, tendo sido expressamente identificada como tal pelo A..

O cumprimento da obrigação é assegurado pelos bens que integram o património do devedor (art.º 601.º do Código Civil). O património do devedor constitui assim a garantia geral das suas obrigações. A lei concede aos credores meios de conservação dessa garantia geral. Entre eles conta-se a ação pauliana ou, na terminologia do Código Civil de 1966, a ação de impugnação pauliana (art.º 610.º e seguintes do Código Civil).

A impugnação pauliana visa os atos que envolvam a diminuição da garantia patrimonial do crédito dos quais resulte “a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação integral do seu crédito, ou agravamento dessa impossibilidade” (alínea b) do art.º 610.º do Código Civil).

Com ela não se questiona a validade do ato impugnado, mas a sua eficácia perante o credor. “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”(n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil).

A esta evidência, contudo, nem sempre corresponde a adequada formulação pelo credor da pretensão requerida ao abrigo da impugnação pauliana. Pondo-se a questão, se acaso o autor, alicerçado nos fundamentos de impugnação pauliana, pedir em juízo a anulação ou declaração de nulidade do ato impugnado, com o consequente retorno ao património do devedor do bem visado, pode o juiz, sem violação da limitação do tribunal ao peticionado (atualmente, art.º 609.º n.º 1 do CPC), adequar o veredito final ao regime substantivamente previsto, condenando nos termos da mera ineficácia preceituada no citado n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil. Como bem se referiu na sentença recorrida, a resposta positiva a essa questão está pacificada desde há muito, na sequência do acórdão do STJ, de uniformização de jurisprudência, proferido em 23.01.2001 e publicado, sob o n.º 3/2001, no D.R., 1.ª série, de 09.02.2001.

Nesse acórdão firmou-se a seguinte jurisprudência: 

"Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil [atualmente, artigo 5.º n.º 3 do CPC].”

Ora, o supra afirmado verdadeiro escopo da impugnação pauliana e, bem assim, a descrita possibilidade de ajustamento oficioso, pelo tribunal, do efeito a declarar, são dados sobejamente adquiridos na comunidade jurídica, plenamente previsíveis para um profissional medianamente informado e diligente, não justificando, pois, as delongas provocadas pela audição complementar ora reclamada pela apelante. Conforme aduzido por Lopes do Rego, “a audição excepcional e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspetivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela” (Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, 2004, Almedina, p. 33).

Como se viu, na petição inicial, o A., após aduzir toda a fundamentação julgada necessária para impugnar paulianamente a partilha de património realizada pelos RR., tendo em vista atingir, sobretudo, o imóvel supra identificado, para com ele obter o pagamento do seu crédito, terminou com um pedido de declaração de nulidade desse negócio, com a consequente, na sua formulação, “restituição dos bens ao património do 1.º R.”.

O tribunal a quo, como consta na sentença recorrida, procedeu à adequada formulação do alcance da causa de pedir invocada pelo A. e dos efeitos a ela associados e, consequentemente, no uso dos poderes que pacificamente lhe são reconhecidos, procedeu à conversão do peticionado nos termos do dispositivo supra transcrito.

No que, pelas razões expostas, não merece, face à questão subsistente nas conclusões do recurso, qualquer censura.

Note-se que os efeitos penalizadores do terceiro adquirente, mencionados nas conclusões do recurso, advenientes da procedência da impugnação pauliana, são modelados pelo legislador tendo em consideração os interesses em presença, atendendo à natureza gratuita ou onerosa do negócio e à boa ou má-fé do adquirente, reconhecendo-se ao terceiro adquirente, perante o devedor transmitente, os direitos previstos no art.º 617.º do Código Civil. Tais efeitos resultam, naturalmente, das descritas opções do legislador e não da vontade do julgador, vertida numa particular interpretação da lei."

[MTS]