Dever de colaboração; omissão;
consequências
1. O sumário de RP 8/1/2018 (1676/16.2T8OAZ.P1) é o seguinte:
I - O convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é, por mor do disposto na alínea b) do nº 2 do artigo 590º do Código de Processo Civil, uma incumbência do juiz, isto é, um seu dever funcional.
II - O estrito cumprimento desse dever implica que o tribunal não pode deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado que se revele deficiente e, mais tarde (designadamente na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar essa peça processual.
III - A omissão desse ato devido, influindo no exame e decisão da causa, implica a nulidade da sentença nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 195º do Código de Processo Civil.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Em matéria de cumprimento dos requisitos da petição inicial, estabelece a al. d) do nº 1 do art. 552º que, nesse articulado, “deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir”, definindo a lei adjetiva (art. 581º, nº 4) esse elemento objetivo da instância como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”, rectius, como o conjunto dos factos constitutivos da situação jurídica que o autor quer fazer valer (os que integram a previsão da norma ou das normas materiais que estatuem o efeito pretendido).
Todos estes factos são factos principais (ou essenciais na terminologia do nº 1 do art. 5º, entendidos estes numa aceção ampla) e todos eles integram a causa de pedir; todos eles servem uma função fundamentadora do pedido; a falta de alegação de qualquer deles dá lugar à absolvição do pedido da parte contrária, por insuficiência da fundamentação de facto do pedido, ou seja, por insuficiência duma causa de pedir que se deixou incompleta.
Mas alguns destes factos principais são factos essenciais (agora numa aceção estrita), isto é, são factos que cumprem a função individualizadora da causa de pedir, são eles que individualizam a pretensão do autor (a causa de pedir é, enquanto cumpre a sua função individualizadora, o núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido[2]. Se estes factos essenciais estiverem alegados, a causa de pedir está identificada e a petição não pode ser inepta por falta de causa de pedir, embora esta possa estar incompleta se faltarem alguns dos outros factos principais.
Se faltarem factos essenciais (na aceção estrita), a petição inicial é inepta (art. 186º, nº 2 al. a)) e o réu deve ser absolvido da instância (arts. 278º, nº 1 al. b), 577º, al. b) e 595º, nº 1 al. a)). Se faltarem outros factos principais, a petição inicial não é inepta, mas a causa de pedir é insuficiente ou está insuficientemente concretizada; neste caso ela pode e deve ser alvo de um despacho de aperfeiçoamento, nos termos definidos no art. 590º, nºs. 2 al. b) e 4, destinado a completar a causa de pedir, com a alegação de factos que vão complementar ou concretizar os factos alegados na causa de pedir, ou pode a parte salvar a petição, completando ou concretizando a causa de pedir, por exemplo, manifestando a vontade de se aproveitar do aparecimento, durante a instrução do processo, desses factos (art. 5º, nº 2 al. b)).
Assim, como diz LEBRE DE FREITAS [Introdução ao Processo Civil, pág. 70 e seguinte; no mesmo sentido milita MARIANA FRANÇA GOUVEIA (O Principio do Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil, in Revista da Ordem dos Advogados 2013/II/III), que identifica os factos essenciais com os factos principais, reconduzindo a estes os factos complementares ou concretizadores], a função individualizadora da causa de pedir permite verificar se a petição é apta (ou inepta) para suportar o pedido formulado e se há ou não repetição da causa para efeito de caso julgado. Mas não é suficiente para que se tenha por realizada uma outra função da causa de pedir, que é a de fundar o pedido, possibilitando a procedência da ação.
Perspetiva algo diferente é preconizada por TEIXEIRA DE SOUSA [Ónus de alegação e de impugnação em processo civil, in Scientia Ivridica, nº. 332, págs. 396 e seguinte, e também nas entradas no blog do IPPC de 19/07/2014, sob Factos complementares e causa de pedir, de 21/07/2014, sob Factos complementares e função da causa de pedir, e de 14/08/2014, sob O regime da alegação dos factos complementares no NCPC] que defende que a causa de pedir se limita aos factos essenciais na aceção estrita (ou factos essenciais nucleares), pelo que, segundo argumenta, não há causas de pedir insuficientes, mas sim articulados deficientes, que têm de ser completados ou concretizados; os factos complementares ou concretizadores posteriormente introduzidos não fazem parte da causa de pedir, pois que esta, para este autor, não é constituída por todos os factos de que pode depender a procedência da ação, mas apenas por aqueles que são necessários para individualizar a pretensão material que o autor quer defender em juízo.
Portanto, de acordo com os referidos ensinamentos, no âmbito dos factos essenciais, devemos distinguir dois planos: de um lado, os factos essenciais nucleares; de outro, os factos essenciais complementares e concretizadores.
Os nucleares constituem o núcleo primordial da causa de pedir, desempenhando uma função individualizadora ou identificadora, a ponto de a respetiva omissão implicar a ineptidão da petição inicial.
Já os factos complementares e os factos concretizadores, embora também integrem a causa de pedir, não têm uma função individualizadora, pelo que a omissão da respetiva alegação não é passível de gerar ineptidão da petição inicial. Assim, os factos complementares são os completadores de uma causa de pedir complexa, ou seja, uma causa de pedir aglutinadora de diversos elementos, uns constitutivos do seu núcleo primordial, outros complementando aquele. Por seu turno, os factos concretizadores têm por função pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto, sendo essa pormenorização dos factos anteriormente alegados que se torna fundamental para a procedência da ação.
Ora, de acordo com o regime atualmente contemplado na al. b) do nº 2 do citado art. 5º, não há preclusão quanto a factos que, embora essenciais, sejam complementares ou concretizadores de outros inicialmente alegados (isto é, factos que, embora necessários para a procedência da pretensão – daí serem essenciais -, não têm uma função individualizadora do tipo legal).
Consequentemente, sempre que a alegação contida na petição inicial, ainda que deficientemente, permita a identificação ou individualização da causa de pedir, impõe-se a prolação de despacho pré-saneador de convite ao aperfeiçoamento fáctico do articulado nos termos do nº 4 do art. 590º, no sentido de se procurar obter uma melhor definição dos contornos fácticos da questão submetida à apreciação do tribunal.
De facto, como sublinha TEIXEIRA DE SOUSA [In Estudos sobre o novo Processo Civil, 2ª ed., págs. 60 e seguinte], a postura do juiz da causa, à luz do moderno processo civil, não há-de ser já passiva, meramente circunscrita “às pistas” fornecidas pelas partes, mas sim ativa, advertindo-as para a conveniência de colmatar as insuficiências ou imprecisões fácticas detetadas nas respetivas peças, contribuindo, decisivamente, para a adequação da sentença final à verdade, tudo com vista a realizar a legitimação externa da decisão, pela correspondência da sentença à realidade extraprocessual.
Postas tais considerações (que se revelam necessárias para a densificação do conceito operativo de causa de pedir e de facto essencial), revertendo ao caso sub judicio, verifica-se que o autor fundamentou o pedido que formulou alegando, fundamentalmente, que já após a celebração do ajuizado contrato de seguro se registou o desmoronamento parcial de um muro da sua habitação, sendo que esse desmoronamento foi provocado pela elevada precipitação que se registou no mês de janeiro de 2016. Na decorrência dessa alegação advoga que tal evento consubstancia uma das situações hipotéticas configuradas nas cláusulas de cobertura do risco contratualmente estipuladas. [...]
Como se deu nota, a decisão recorrida pronunciou-se no sentido da improcedência do pedido do autor, porque, como aí se afirma, «nenhum facto foi alegado no sentido de que tenha ocorrido qualquer um dos fenómenos climatéricos constitutivos do direito do segurado à reparação dos danos prejuízos. Na verdade, não sabemos se ocorreu uma tromba de água, se foi ultrapassada a medida pluviométrica prevista na cláusula contratual ou mesmo se existiram chuvas torrenciais, pois apenas foi alegado que janeiro foi um mês muito chuvoso, o que, ainda que corresponda à realidade, não traduz nenhum daqueles fenómenos, que exigem, todos eles, intensidade na precipitação num intervalo de tempo bem definido».
Ora, perante o transcrito segmento do ato decisório sob censura, revela-se claro que o decisor de 1ª instância, malgrado se tenha apercebido da insuficiência da alegação fáctica por banda do autor no articulado inicial com que deu início à presente ação, acabou, ainda assim, por proferir decisão absolutória que não foi precedida, como devia, de um convite ao aperfeiçoamento de articulado faticamente insuficiente.
Na verdade, à luz das considerações anteriormente tecidas, afigura-se-nos que o demandante alegou os factos essenciais nucleares contemplados na respetiva fattispecie contratual e que se traduzem-se, primordialmente, na circunstância de o desmoronamento de um determinado muro da sua habitação ter ocorrido por causa de um excesso de pluviosidade, pelo que, nesse contexto, a explicitação, designadamente, da efetiva quantidade de chuva registada dum dado momento histórico assume inequivocamente natureza de facto concretizador (já que, embora necessário para a procedência da pretensão deduzida, não cumpre, no entanto, uma função individualizadora do referido tipo contratual, tendo antes como propósito pormenorizar ou explicitar o quadro fáctico exposto pelo demandante, mormente, no caso, através da identificação do fenómeno climatérico que provocou o desmoronamento, isto é, se esse desmoronamento teve na sua génese tromba de água ou queda de chuvas torrenciais, com precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos no pluviómetro).
Reconhece-se que a petição inicial que o autor apresentou enferma de insuficiências na exposição ou concretização de todos os factos (essenciais) relevantes para a (eventual) procedência da ação, mormente para que se possa afirmar a ocorrência concreta de uma das situações hipotéticas configuradas na aludida condição (especial) de cobertura do risco de “reconstituição de muros, portões, vedações e jardins”.
No entanto, ao invés do posicionamento assumido pelo juiz a quo, a situação em apreço demandaria que, em devido tempo (nada obstaculizando sequer que o fizesse antes da prolação da sentença), tivesse sido proferido despacho de aperfeiçoamento, no sentido de procurar completar o articulado facticamente insuficiente apresentado pelo demandante, fazendo chegar ao processo os factos (essenciais concretizadores) omitidos e que era suposto ter alegado, face à previsão da cláusula contratual de que pretende prevalecer-se.
Certo é que não dirigiu esse convite ao autor.
Questão que, neste ponto, se coloca é a de saber qual a consequência processual resultante da omissão de um despacho com o aludido teor.
A este propósito, dispõe o nº 4 do citado art. 590º que “incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido”.
Como deflui do normativo transcrito, o convite ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada é uma incumbência do juiz - rectius, um seu dever funcional -, estando, assim, afastada quanto a ele qualquer discricionariedade do tribunal, ou seja, qualquer ponderação do seu exercício ou não exercício segundo critérios de oportunidade ou de conveniência, sendo certo que, como sublinha TEIXEIRA DE SOUSA [In Omissão do dever de cooperação do Tribunal: que consequências?, pág. 8, na entrada no blog do IPPC 1/2015], o tribunal não tem de se preocupar com a circunstância de essas deficiências se ficarem a dever a uma eventual negligência da parte, dado que, mesmo que esta exista, o tribunal tem o dever de exercer a sua função assistencial.
Desse modo, resulta clara a ratio essendi dessa imposição legal, qual seja a de que nenhuma ação pode findar com um juízo de improcedência fundado na mera deficiência da alegação de facto, pois isso revelará que foi omitido o despacho de convite ao aperfeiçoamento fáctico do respetivo articulado.
Consequentemente a omissão de cumprimento desse dever traduz-se numa nulidade processual, porque o tribunal deixa de praticar um ato devido que não podia omitir (art. 195º, nº 1) e que se revela particularmente patente quando, como é o caso, acabe por ter reflexo na forma como a ação vem a ser decidida, mormente através de uma decisão de improcedência por insuficiência ou imprecisão na exposição ou concretização da matéria de facto.
Daí que o tribunal não pode – como sucedeu nos presentes autos - deixar de dirigir o convite ao aperfeiçoamento do articulado e, mais tarde (designadamente na sentença final), considerar o pedido da parte improcedente precisamente pela falta do facto que a parte poderia ter alegado se tivesse sido convidada a aperfeiçoar o seu articulado. Admitir o contrário seria desconsiderar por completo o dever de cooperação do tribunal: afinal, mesmo que este dever não tivesse sido cumprido, o tribunal poderia decidir como se tivesse sido dirigido à parte um convite ao aperfeiçoamento do articulado.
Como assim, considerando que, in casu, se registou a inobservância do cumprimento do dever de cooperação (na sua vertente assistencial) que é imposto ao tribunal, resta dilucidar qual a consequência daí resultante para a sorte do presente recurso.
Embora a solução não se venha revelando unívoca, afigura-se-nos, neste conspecto, que a nulidade em apreço não deve confundir-se com a nulidade da sentença [...], pois o problema não está propriamente no conteúdo deste ato decisório mas antes na omissão, a montante, de prolação do despacho de convite.
Destarte, considerando que, no caso vertente, o juiz a quo omitiu esse convite de aperfeiçoamento e considerando outrossim que, como se assinalou, a omissão desse ato devido influiu no exame e decisão da causa, tal implica, pois, a nulidade da decisão recorrida nos termos dos nºs 1 e 2 do art. 195º, posto que a mesma julgou improcedente o pedido aduzido pelo autor pela falta de factos que poderiam ter sido invocados em cumprimento desse convite."
3. [Comentário] a) O acórdão resolve -- no essencial, de forma totalmente correcta -- um problema para o qual a jurisprudência já se encontra suficientemente sensibilizada: o de que o não cumprimento pelo tribunal do seu dever de colaboração com as partes implica consequências. Trata-se de uma das modificações mais significativas introduzidas pelo actual CPC no panorama processual civil português.
b) Sobre o assunto, apenas duas observações:
-- Só se os factos complementares não integrarem a causa de pedir é possível entender o convite às partes para a sua alegação; como se sabe, a falta dos factos que integram a causa de pedir conduz à ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), CPC), que é uma nulidade processual e de uma excepção dilatória não sanáveis;
-- O acórdão não aceita que a consequência da omissão do dever de convite ao aperfeiçoamento pelo tribunal constitua uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia; a dificuldade consiste em colocar o vício fora da decisão que omite o próprio convite ao aperfeiçoamento, dado que o que o juiz devia fazer era, em vez de proferir uma decisão de improcedência, dirigir um convite ao aperfeiçoamento do articulado; o problema não tem a ver com a decisão (como trâmite), mas antes com o conteúdo da decisão (como acto); a diferença entre a nulidade processual e a nulidade da decisão reflecte precisamente a diferença entre um vício respeitante ao trâmite e um vício relativo ao acto; ora, como não está em causa que o juiz possa proferir a decisão, mas sim que não o possa fazer com o conteúdo que lhe atribuiu, o vício respeita à própria decisão.
MTS
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