"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/04/2018

Jurisprudência 2018 (1)



Hipoteca; venda executiva;
arrendamento; caducidade


1. O sumário de RE 11/1/2018 (1268/16.6T8FAR.E1) é o seguinte:

O arrendamento urbano caduca com a venda judicial do prédio respectivo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Discute-se a inoponibilidade do arrendamento, ou por outras palavras discute-se a questão de saber se o contrato de arrendamento em causa caduca porque celebrado depois de constituída a hipoteca.

Subscrevemos o entendimento maioritário também defendido na decisão recorrida nos termos do qual o contrato de arrendamento caduca com a venda executiva, em face do disposto no artigo 824º, n° 2, do C.Civil, aplicável por analogia, tendo em conta que este constitui uma forma de ónus que incide sobre o imóvel, limitador do direito de propriedade, garantido através da hipoteca anteriormente constituída e registada – neste sentido cfr. Acórdãos do S.T.J. de 31/10/2006 e de 27/05/2007, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-02-2013, Acordão do Tribunal da Relação do Porto de 5-3-2012, disponíveis em www.dgsi.pt.

Assim, «A hipoteca, de acordo com o regime legal estabelecido no artigo 686°, n° 1, do C. Civil, representa uma garantia real, constituída em benefício do credor, que lhe confere o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo. Para produzir efeitos, a hipoteca deve ser registada, conforme dispõe o artigo 687° do C. Civil.

E o artigo 824° do C. Civil, com a epígrafe “Venda em execução”, prevê no seu n.º 1 que: “A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.” Acrescenta o n° 2 que: “Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.”

Como refere a Acórdão do STJ também citado na decisão recorrida «Se o imóvel está dado de arrendamento, o credor hipotecário pode conhecer dessa circunstância e essa qualidade é-lhe oponível, por ser anterior ao da constituição da hipoteca.

Se pelo contrário o prédio não está dado de arrendamento e o imóvel está livre, a constituição do arrendamento posteriormente ao registo da hipoteca, vem piorar a situação do credor hipotecário, situação esta com que o mesmo razoavelmente não podia contar, pois o arrendamento é posterior à hipoteca.

E na ponderação dos interesses do credor hipotecário em face dos interesses do arrendatário, devem prevalecer os primeiros, pois o arrendatário pode saber da situação de hipotecado do imóvel, dada a obrigatoriedade da hipoteca de constar do registo.»

O grande princípio da nossa ordem jurídica é o da analogia, fundado na regra constitucional do tratamento idêntico de casos semelhantes

A finalidade do artº 824º, nº 2, do CC, é a de fazer extinguir todos os direitos que possam importar um gravame no aproveitamento da coisa, mormente naquelas situações em que a constituição do arrendamento haja ocorrido em momento ulterior àquele em que o bem em causa fica afecto a uma garantia registada. É que só desta forma a lei previne o prejuízo do credor, que de outro modo ficaria exposto a actos fraudulentos praticados pelo devedor com terceiro, sobretudo nas situações em que esse acto posterior não é registado.

Este entendimento, o de que o arrendamento deve ser considerado abrangido pelo n.º 2 do artigo 824.º é esmagadoramente maioritário, quer na doutrina, quer na jurisprudência, citando-se, de modo exemplificado, o estudo detalhado de Oliveira Ascensão (ROA, Ano 45, 345 e seguintes), Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, 140), José Alberto Vieira (em Estudos em Homenagem ao Professor Galvão Teles, IV, 437) e Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e Caldeira Jorge (Arrendamento Urbano, 2.ª edição, 189). Na jurisprudência, os Acórdãos deste Tribunal de 3.12.1998 (BMJ 482, 219), 6.7.2000 (CJ STJ, VIII, II, 2000), 6.4.2006, 31.10.2006 e 15.11.2007, estes em www.dgsi.pt. (Ac. RG, de 14-5-2009).

Concluindo-se pela inoponibilidade à A. do contrato de arrendamento celebrado com o R. é forçoso concluir que o R carece de título para ocupar o imóvel impondo-se a sua condenação na restituição da coisa."

3. [Comentário]  a) Há que chamar a atenção para que o sumário do acórdão é demasiado amplo (e algo impreciso, quando se refere à venda judicial em vez de à venda executiva, dado que esta é que pode ser judicial ou extrajudicial). Se o arrendamento for anterior a qualquer arresto, penhora ou garantia do credor exequente, o mesmo não se extingue com a venda executiva, antes se lhe aplica a regra emptio non tollit locatum estabelecida no art. 1057° CC.

b) Sobre a matéria, cf. também (como, aliás, está citado no acórdão) STJ 31/10/2006 (06A3241). 

MTS