"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



13/04/2018

Jurisprudência (829)


Decisão de facto; impugnação;
taxa sancionatória excepcional


1. O sumário de RL 19/12/2017 (699/17.9T8SRT-A.L1-1) é o seguinte:

I. – O recurso não é uma apreciação ‘ex novo’ do litígio mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse, pelo que não basta ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir decisão de sentido diverso, impondo-se-lhe, antes, o ónus de alegar, ou seja, de indicar as razões porque entende que a decisão deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; não o fazendo o recurso deve ser rejeitado (ainda que parcialmente).
 
II. – O procedimento cautelar para entrega judicial de bem que foi dado em locação financeira entretanto resolvida, previsto no art.º 21º do DL 149/95, de 24JUL, não é uma ‘acção para cobrança de dívida’ ou ‘com idêntica finalidade’ na acepção do art.º 17º-E do CIRE, não havendo lugar à inadmissibilidade ou suspensão da instância nesse normativo decretada.
 
III. – O processo probatório é um processo dialéctico, em que a iniciativa vai passando de uma parte para a outra, entre prova e contra-prova, vinculado aos princípios da colaboração e boa-fé.
 
IV. – As regras da repartição do ónus da prova não eximem as partes de participar activamente no processo probatório.
 
V. – Regra geral não há prova directa do conteúdo dos objectos postais enviados sob registo.
 
VI. – A prova desse conteúdo é circunstancial, em face das características e circunstâncias do talão de registo, mas também, e de uma forma muito relevante, da atitude do destinatário aquando da recepção do objecto postal registado.
 
VII. – A impugnação de partes da decisão judicial omitindo por completo a indicação das razões porque se discorda bem como a pretensão de juntar documentos com o recurso sem invocar qualquer dos motivos legais estabelecidos para o efeito constitui falta de prudência ou diligência devida justificando-se a aplicação de taxa sancionatória excepcional.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"V–Fundamentos de Facto.

A Apelante impugna a decisão da matéria de facto relativamente aos factos provados 6, 7 e 9 [...]:

Relativamente ao facto provado 6 não foi apresentada qualquer prova documental do pagamento das prestações e dos depoimentos referidos pela recorrente resulta que havia negociações quanto ao mesmo contrato, que se vieram a mostrar inconclusivas. Ora se havia negociações é porque o contrato não estava ser cumprido e, por outro lado até prova do pagamento a obrigação deve ser considerada como não paga. Não se encontra razão para alterar o juízo de facto formulado na 1ª instância quanto a este facto.

Relativamente aos factos 7 e 9 eles apresentam um redacção elusiva (talvez porque o Mmº juiz a quo pretendesse contornar as dificuldades postas pelas questões envolventes), aspecto esse que, desde já, se afigura justificar alterações, no sentido de deixar claramente expressa a realidade apurada.

Os factos em causa abrangem duas questões individualizadas: a elaboração e envio das declarações admonitória e resolutiva a e a sua recepção pelo destinatário.

Antes de entrarmos na apreciação concreta desses aspectos importa desde já precisar que o ónus da prova, mais do que uma regra de produção de prova ou de direito material probatório, é uma regra para o insucesso da prova; pelo que só é convocável se, depois da actividade probatória, não for possível formular um juízo de certeza, caso em que a situação se resolverá em desfavor do onerado com tal ónus.

Na procura da verdade dos factos o tribunal analisa o material probatório (directo ou circunstancial), segundo critérios de razoabilidade e de experiência comum de vida, e num processo dialéctico, em que a ‘bola’ vai passando de uma parte para a outra, entre prova e contra-prova, vinculado aos princípios da colaboração e boa-fé.

Nos factos agora em apreço a prova testemunhal mostra-se, como a própria Apelante reconhece [...], de pouca valia, relevando sobremaneira a prova documental.

Atentando nesta temos que de fls. 35 e 38 da versão física do processo principal consta a versão escrita das declarações admonitória e resolutiva, assinadas por responsável identificado da Requerente, dirigida à morada convencionada no contrato, datadas, respectivamente de, 27AGO2014 e 20OUT2014.

A Requerente alega ter procedido ao envio de tais missivas por correio registado, conforme os talões, afirmação que a Requerida impugna, desde logo invocando o desconhecimento do conteúdo dos objectos postais a que tais talões dizem respeito e deles constar como destinatário do aviso de recepção não a Requerente mas ... Recuperação de Crédito ACE.

Esta última observação é de insignificante relevância uma vez que a indicação do destinatário do aviso de recepção não implica necessariamente que este seja o remetente. Foi, aliás, explicada a situação por ser o ... Recuperação de Crédito ACE que se encontrava mandatado para diligenciar pela cobrança dos créditos da Requerente.

É certo que não há prova directa de que o conteúdo do objecto postal remetido sobre correio registado correspondesse às referidas declarações (no limite até se pode congeminar que o envelope vá vazio). Para que tal ocorresse era necessário que ao ser elaborada a missiva lhe fosse desde logo aposta, e de forma fiável, o correspondente número de registo (como, por exemplo, ocorre nas notificações elaboradas no Citius).

Mas esses talões não deixam de apresentar circunstâncias que se coadunam com o facto afirmado: os registos foram efectuados no dia imediato à data constante das missivas e em ambos os talões se encontra inscrito o número do processo inscrito nas referidas missivas – 279425.

Para que tais circunstâncias tenham a virtualidade de sustentar um juízo de certeza quanto ao envio das respectivas missivas, importa, no entanto, que se tenha por demonstrado que o seu destinatário foi posto em condições de aceder ao conteúdo do objecto postal enviado a coberto dos registos em causa. Só nessa circunstância se pode extrair da não reacção do destinatário que o conteúdo dos objectos postais era o alegado. Com efeito, havendo alguma divergência, impunha-se, por via do princípio da boa-fé, ao destinatário que de pronto reagisse contra ela, denunciando a irregularidade.

E foi isso que aconteceu porquanto, não obstante a negação da Requerente, os objectos postais registados, foram recebidos na morada fornecida pela Requerente por pessoas identificadas e que se disponibilizaram a entregá-las ao seu destinatário.

A Requerida enquanto sociedade deve estar munida de organização adequada a receber a correspondência de que é destinatária, e na falta de alegação e prova de circunstâncias excepcionais, pelo que as eventuais falhas nessa organização redundam em culpa do destinatário tornando a declaração eficaz (art.º 224º, nº 2, do CCiv). [...]
 
VI– Da Taxa Sancionatória Excepcional

Litigar em Juízo é um acto de enorme significado ético e de grande relevância social.

O direito de litigar em juízo, quer como demandante quer como demandado, deve ser exercido dentro de determinados limites circunscritos por deveres de conduta, em particular os deveres de cooperação, boa-fé processual e correcção (cf. artigos 7º, 8º e 9º do CPC - anteriormente artigos 266º, 266º-A e 266º-B). Limites esses impostos pela natureza pública do processo civil, pois que para além dos interesses privados (individuais, egoísticos e antagónicos) das partes na estratégia processual e na resolução do litígio prevalece o interesse público da pacificação social e correcta administração da justiça, com equitativa e igualitária alocação dos parcos recursos disponíveis e adequada celeridade.

O acesso à justiça enquanto direito constitucionalmente consagrado tem fundamentalmente a ver com a não discriminação nesse acesso e a inexistência de áreas imunes à jurisdição, e já não tanto com a possibilidade de introdução em juízo; no que a esta possibilidade respeita ela deve ser exercida com parcimónia, sob pena de a pretexto do generalizado exercício individualizado de um direito se estar no fundo a aniquilar colectivamente a eficácia e utilidade desse mesmo direito.

A utilização do aparelho judiciário deve ser reservada, por um lado, a matérias de relevo social e não a minudências ou meras questiúnculas, para cuja resolução se mostram mais adequadas outras formas de controlo e regulação social. Por outro lado, porque no encadeado de actos lógica e cronologicamente organizados que constitui o processo judicial se exige que os intervenientes se limitem à prática de actos inteligentes e não impertinentes e/ou dilatórios e ainda que esses actos sejam praticados de boa-fé, com sentido de cooperação institucional para com a descoberta de verdade e a proporcionada e segura celeridade na administração da Justiça, nele devem ser apenas levantadas questões com fundamento sério e não caprichosas.

Na esteira, aliás, do vetusto princípio geral de direito segundo o qual ‘de minimis non curat praetor’.

E tal parcimónia deve ser tanto maior quanto maior for o grau de hierarquia dos tribunais utilizados, porque igualmente maior é o custo e a escassez dos recursos. Com efeito, tendo em vista a eficiência do sistema de recursos, com os meios humanos e materiais de que o país dispõe e pode suportar, os tribunais superiores não podem ser chamados a reapreciar as decisões da primeira instância só porque elas não satisfazem os interesses da parte vencida, por ‘dá cá aquela palha’, ‘a torto e a direito’, para protelar o trânsito da decisão, ou, simplesmente, tentar a sorte de uma decisão mais favorável.

Ao direito ao recurso corresponde um dever de diligência no uso desse meio processual sendo exigível às partes que se abstenham da interposição de recurso para os quais não tenham fundamento sério. Devendo, em princípio, considerar-se que um recurso não apresenta fundamento sério, conduzindo à sua manifesta improcedência quando:

a) - é meramente dilatório ou baseado em distorção factual;

b) - as posições expressas são contrárias à jurisprudência estabilizada;

c) - as posições expressas não têm suporte nas posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou nos conceitos ou princípios consolidados ou se baseiam em argumentos patentemente ilógicos e contraditórios ou em raciocínios objectivamente carentes de sustentabilidade;

d) - as posições expressas, ainda que se não possam dizer manifestamente infundadas, se referem as questões menores, a verdadeira minudências sem relevância substancial para a solução do litígio.

Quem não respeita esse dever de parcimónia deve ser sancionado.

E não se argumente que esse dever de parcimónia constitui uma ilegítima restrição do direito de acesso à justiça ou da defesa intransigente dos direitos ou expectativas das partes, pois que o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem faz apelo a esse dever aquando da apreciação da admissibilidade das queixas a ele dirigidas (cf. Bock v. Alemanha, 19JAN2010, Aplicação 22051/07 e Korolev v. Russia, 1JUL2010, Aplicação 25551/05).

No caso da legislação portuguesa essa sanção está configurada como um pagamento adicional, correspondendo ao custo da sobrecarga do sistema a que deu azo através de uma taxa sancionatória excepcional (artº 531º do NCPC).

O presente recurso afigura-se-nos como um dos casos em que a parte não agiu com a prudência ou diligência devidas na medida em que o recurso se afigura parcialmente (na parte atinente à ilegitimidade, à prescrição e à junção de documentos) baseado, conforme o acima exposto, na ausência de fundamentos e sem qualquer suporte nas posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou nos conceitos ou princípios, e por isso nessa parte manifestamente infundado; estando, assim, preenchidos os pressupostos legais para a aplicação de taxa sancionatória excepcional.

Tratando-se, porém, de uma sanção importa, antes da sua aplicação que se ofereça à parte possibilidade de defesa."
 
[MTS]