"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/04/2018

Jurisprudência (832)

Partilha de herança; documento autêntico; força probatória;
revelia; matéria de facto; matéria de direito


1. O sumário de STJ 2/11/2017 (420/16.9T8STR.E1.S1) é o seguinte: 

I – A regra constante do nº 1 do art. 567º do CPC, segundo a qual a falta de contestação do réu que haja sido regularmente citado na sua própria pessoa leva a que se tenham como confessados os factos articulados pelo autor, não é absoluta, sendo afastada nos casos excecionais enunciados no subsequente art. 568º, nomeadamente no da sua al. d): “Quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito.”

II – A afirmação de que numa escritura foram dados a três imóveis valores inferiores ao valor comercial, ou ao valor de mercado, desses bens envolve um conceito a preencher com o valor que, em termos de normalidade expetável, seria fixado como preço da respetiva compra e venda e ao qual se não pode atribuir a qualificação de conceito jurídico.

III – A afirmação de que o valor comercial, ou de mercado, desses imóveis é superior ao declarado para cada um na escritura representa a constatação de uma caraterística factual dos mesmos, não sendo um juízo de valor.

IV – O conceito de facto acolhe os eventos do foro interno, nomeadamente a vontade real e a intenção do declarante.

V – Sendo uma escritura de partilha um documento autêntico, e fazendo os documentos autênticos prova plena dos factos neles referidos como praticados pela autoridade ou oficial público respetivo e, também, dos factos neles atestados com base nas perceções da entidade documentadora – art. 371º, , nº 1 do CC -, aquela escritura prova plenamente as declarações prestadas pelos respetivos outorgantes perante o notário, nomeadamente a de que foram recebidas as tornas nela atribuídas.

VI – Sendo diferentes, por um lado, a declaração de que se recebeu e, por outro, a efetiva ocorrência desse recebimento, é possível pôr este último em causa apesar da existência daquela.

VII – A declaração, feita na escritura de partilha, de que foi recebida uma quantia a título de tornas, na medida em que extingue o correspondente direito de crédito, é um facto desfavorável para quem delas é credor e favorável para o respetivo devedor, pelo que tem a natureza de confissão;

VIII – Esta confissão, constando, como é o caso, de documento autêntico, tem a força probatória deste, ou seja, tem força probatória plena, “ex vi” arts. 352º, 358º, nº 2 e 371º do CC;

IX - Esta força probatória plena pode ceder perante prova em contrário, que não poderá, em todo o caso, assentar em presunções judiciais nem em prova testemunhal – art. 351º e 393º, nº 2 do CC -, cabendo ao credor das tornas o ónus de provar o seu não recebimento.

X – Esta prova pode ser feita por confissão, nomeadamente a resultante da não contestação da ação pelos réus que teriam pago as tornas.

XI - É válida a doação entre vivos da totalidade ou de parte dos bens a herdeiro(s) legitimário(s), com o consentimento dos demais herdeiros legitimários não donatários – art. 2029º, nº 1 do CC.
XII – Dissolvido um casal por óbito de um dos cônjuges, e feita a respetiva partilha por escritura na qual não participou uma das filhas do casal, com atribuição aos outros filhos da nua propriedade dos imóveis, com a futura consolidação, na sua titularidade, da propriedade plena dos mesmos bens por via da extinção do usufruto então constituído a favor do cônjuge sobrevivo e sem que a este fossem pagas as tornas que lhe cabiam, mas que na escritura foram mentirosamente dadas como pagas, é obtido, no tocante à futura sucessão do cônjuge sobrevivo, um resultado igual ao de uma partilha em vida.

XIII – A partilha assim efetuada prossegue um fim proibido por lei, pelo que é nula, nos termos do artigo 281º do CC.

XIV – Não cabendo este caso no âmbito dos previstos nos arts. 70º e 71º do Código do Notariado, desta nulidade da partilha não resulta a nulidade da escritura pela qual foi celebrada.
 


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A recorrente defende que a matéria alegada [...], na medida em que descreve a intenção das partes no negócio jurídico, constitui matéria de facto que, dada a falta de contestação, há que ter como confessada e, por isso, provada.

Vejamos.

Antunes Varela, depois de afirmar que “… o facto é o acontecimento concreto da realidade empírico-sensível, em si mesmo considerado (…)” [ Cfr. Manual de Processo Civil, 1984, pág. 392, nota 1], ao discorrer sobre a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito, exprime o seguinte entendimento [Cfr. ibidem, pág. 392]: “Dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas os acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem – ex propriis sensibus, visus et audictus), mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (v. g., a vontade real do declarante (…); o conhecimento dessa vontade pelo declaratário (…); o conhecimento por alguém de determinado evento concreto (…); as dores físicas ou morais provocadas por uma agressão corporal ou uma injúria (…).”

E, logo de seguida, acrescenta: “Nada obsta, por conseguinte, a que, assim como se faz prova sobre os factos externos por meios puramente indiciários, se admita a prova sobre os chamados factos internos, mediante o recurso a elementos de igual natureza.”  [Cfr. ibidem, pág. 393]

Na mesma linha, Manuel de Andrade [Cfr. Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 194] escreve o seguinte: "Podem ser objeto de prova os factos (...) tanto os factos do mundo exterior (factos externos: uma convenção oral ou escrita, um choque de viaturas, a morte duma pessoa, etc), como os da vida psíquica (factos internos: o dolo, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção, etc)".

E também Artur Anselmo de Castro afirma, sem reservas, que “A aplicação da norma pressupõe (…) a averiguação dos factos concretos, dos acontecimentos realmente ocorridos …” e que “… são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos (…)” [Cfr. Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, pg. 268].

Esta ideia está, desde há muito, subjacente à jurisprudência do STJ.

Assim, no seu acórdão de 13.01.89 [Processo nº 076575, relator Cons. Cura Mariano, acessível em www.dgsi.pt], considerou-se que a intenção das partes constitui matéria de facto e que podia, na altura, ser lavada ao questionário.

E no acórdão do mesmo Tribunal de 9.10.2003 [ Proc. 03B1816, relator Cons. Santos Bernardino, acessível em www.dgsi.pt], escreveu-se assim:

“Não é fácil (ou nem sempre é fácil) a distinção entre matéria de facto e matéria de direito. Os factos, no domínio processual, abrangem as ocorrências concretas da vida real e o estado, a qualidade ou situação real das pessoas e das coisas. Neles se compreendem não só os acontecimentos do mundo exterior directamente captáveis pelas percepções (pelos sentidos) do homem, sim também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do indivíduo (o dolo, a determinação da vontade real do declarante, o conhecimento de dadas circunstâncias, uma certa intenção, etc.). Ora, no caso em apreço, aquilo que a recorrente diz serem meras conclusões ou simples juízos de valor são, na realidade, factos - eventos do foro interno do (…), reveladores de uma determinada intenção, de um certo propósito deste.”

Ao lado do facto puro e simples, enquanto acontecimento real e concreto, distingue-se ainda o juízo de facto, expressão com a qual Antunes Varela designa duas ideias diferentes. Por um lado, a ideia de “juízo de facto” pode traduzir uma ocorrência virtual ou hipotética, como a colheita de frutos que ao proprietário teria sido possível se não tivesse estado privado do prédio [Cfr. obra citada, pág. 393-394].

Mas pode igualmente traduzir um juízo de valor sobre matéria de facto, “(…) a meia encosta entre os puros factos (…) e as questões de direito (…)” [Cfr. Revista de Legislação e [de] Jurisprudência, ano 122º, pág. 219], do que é exemplo a afirmação da velocidade excessiva de um veículo ou a de que a velocidade foi, face às circunstâncias da estrada, adequadamente reduzida.

Aplicando estes princípios ao caso dos autos, alcançaremos, como se verá, conclusões diferentes daquelas a que se chegou no acórdão impugnado.

Nos arts. 21º e 35º da p. i., a autora, aqui recorrente, alegou que na escritura de partilha foram declarados para os três imóveis valores inferiores ao valor comercial, ou ao valor de mercado, desses bens; trata-se de conceito a preencher com o valor que, em termos de normalidade expetável, seria fixado como preço da respetiva compra e venda e ao qual se não pode atribuir a qualificação de conceito jurídico.

Por outro lado, a afirmação de que o valor comercial, ou de mercado, desses imóveis é superior ao declarado para cada um na escritura representa a constatação de uma caraterística factual dos mesmos, não sendo um juízo de valor.

E, tratando-se de facto que não está abrangido por qualquer das exceções previstas no art. 568º do CPC, tem de ser considerado como confessado pelos réus que, ao não contestarem, reconhecem que o valor por si declarado como sendo o dos imóveis é muito inferior ao seu valor comercial ou de mercado.

Nos arts. 23º a 25º, 32º e 33º da p. i. é alegado que na escritura de partilha os réus intervieram movidos por uma determinada intenção – a de pretenderem enganar a autora dando a aparência de estarem apenas a partilhar a herança da sua mãe e de pretenderem, também, prejudicá-la por a excluírem da sucessão na herança de seu pai, GG, cuja partilha anteciparam.

Visto que, como acima dissemos, o conceito de facto acolhe os eventos do foro interno, nomeadamente a vontade real e a intenção do declarante, também quanto a este ponto deve reconhecer-se que a revelia dos réus conduz a que a alegada intenção se tenha como confessada.

Deve notar-se que, neste momento, está apenas em causa a intenção dos intervenientes na escritura de partilha, sem que daí se extraia qualquer conclusão quanto à eficácia da mesma, isto é, quanto à obtenção, ou não, do resultado almejado.

Procedem, deste modo, as conclusões 2ª a 4ª da recorrente, pelo que se aditam à matéria de facto constante do acórdão recorrido os seguintes factos provados:

19 - O valor atribuído aos imóveis na escritura de partilha é muito inferior ao seu valor comercial ou de mercado;

20 - Com a escritura de partilha os réus pretenderam enganar a autora dando a aparência de estarem apenas a partilhar a herança da sua mãe e pretenderam, também, prejudicá-la, excluindo-a da sucessão na herança de seu pai, GG, cuja partilha anteciparam.

3. [Comentário] a) O acórdão roda à volta do conceito de facto para efeitos processuais e, em especial, de prova. 

Neste contexto, um facto é uma descrição de um estado de coisas. A "chuva" não é um facto, mas já o é "está (ou estava) a chover". Essa descrição pode ter elementos valorativos, sem que a mesma deixe de se referir a um facto. Por exemplo, "está (ou estava) a chover torrencialmente" é um facto. 

O facto é verdadeiro se a descrição corresponde ao estado de coisas e falso se esta correspondência não se verifica. Por exemplo: afinal, não está (ou estava) a chover torrencialmente ou não está (ou estava) sequer a chover.

b) Esta verificação -- a de que as qualificações ou valorações são elementos integrantes dos factos -- impõe uma interpretação cuidada do restrição da competência decisória do STJ à matéria de facto (cf. art. 46.º LOSJ; art. 682.º, n.º 1, CPC). Se é certo que o STJ está vinculado aos "factos materiais" fixados nas instâncias (na expressão do art. 682.º, n.º 1, CPC), também é verdade que o STJ não pode ficar vinculado aos "factos qualificados" ou aos "factos valorados" pelas instâncias. Assim, por exemplo, o STJ não tem de estar vinculado a aceitar que, no momento do acidente, estava um "nevoeiro cerrado" quando a prova constante do processo não confirma este facto.

[MTS]