"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/02/2019

Jurisprudência 2018 (171)


Usucapião; propriedade horizontal;
litisconsórcio natural; convite ao aperfeiçoamento*

 
1. O sumário de STJ 4/10/2018 (4080/16.9T8BRG-A.G1.S1) é o seguinte:

I. A aquisição originária de um bem imobiliário por usucapião só é legalmente possível se a posse recair sobre coisa imóvel ou parte de coisa imóvel suscetível de constituir objeto de direito real.

II. A usucapião, enquanto ato jurídico de aquisição originária de direitos reais, não opera validamente sobre coisa que, nesse domínio, se traduza em objeto legalmente impossível, nos termos do artigo 280.º, aplicável por via do art.º 295.º, ambos do CC.

II. O exercício de posse usucapível sobre parte delimitada de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos do artigos 1414.º e 1415.º do CC.

VI. Face ao disposto do artigo 1417.º, n.º 1, do CC, a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos artigos 1414.º e 1415.º do CC, mormente sobre frações em condições de constituírem unidades independentes, distintas e isoladas ente si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

V. Só assim poderão ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º, n.º 1, do CC.

VI. A ação em que se vise o reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião terá de correr entre todos os condóminos para que a respetiva sentença possa ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles. 

VII. No âmbito das pretensões de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião, a causa de pedir deverá integrar duas vertentes essenciais, a saber:

i) - a factualidade respeitante ao exercício da posse usucapível do prédio urbano ou parte dele sobre que se pretende o reconhecimento da propriedade horizontal;

ii) – a descrição das características quer físicas, estruturais e funcionais, quer técnicas do objeto sobre que incide essa posse em termos de corresponder ao que é legalmente exigível para o reconhecimento de uma situação factual de propriedade horizontal, em especial no que se refere à concreta individualização e especificação das frações autónomas, de harmonia com o disposto nos artigos 1414.º e 1415.º do CC e ainda com a regulamentação aplicável das edificações urbanas.

VIII. Num caso como o dos autos, em que os A.A. pretendem a constituição da propriedade horizontal por usucapião sobre duas partes de uma fração autónoma já constituída, mas pedem que os R.R. realizem obras numa dessas partes para que possa ser destacável, chegando mesmo a admitir a possibilidade do não fracionamento, uma tal pretensão contradiz a necessária verificação de pré-existência de uma situação de facto inerente ao regime da propriedade horizontal.

IX. Nestas circunstâncias alegatórias, o suprimento de uma tal contradição implicaria a reformulação da causa de pedir, num segmento essencial, muito para além do aperfeiçoamento em sede de factos complementares ou concretizadores dos já alegados.

X. Em tal situação, não se mostra útil um convite ao aperfeiçoamento para o adequado aproveitamento da pretensão deduzida de modo tão insuficiente, em termos de justificar que o tribunal use do poder-dever conferido pelo artigo 590.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4, do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
 
"Como já foi dito, no que aqui releva, os A.A. pretendem, em primeira linha, o reconhecimento perante os R.R. do seu invocado direito de propriedade, com fundamento em usucapião, sobre uma parte da fração autónoma E, com a área de 56 m2 que, alegadamente, vêm possuindo como donos exclusivos desde 1985.

Sucede que um tal reconhecimento depende, necessariamente, de essa parte ser também reconhecida como nova fração autónoma integrada na propriedade horizontal do respetivo prédio urbano, pois só assim poderia ser reconhecida a constituição de propriedade horizontal por usucapião sobre as duas unidades em que se desdobraria a fração E.. [...]
 
 
Nessa conformidade, o exercício de posse usucapível apenas sobre parte de uma fração autónoma em regime de propriedade horizontal não conduz, por si só, à aquisição de um direito de propriedade singular sobre essa parte, destacável daquela fração, já que essa parte não é suscetível, no quadro daquele regime, de constituir unidade independente, nos termos do artigos 1414.º e 1415.º do CC.

Questão diferente é a respeitante à constituição da própria propriedade horizontal por usucapião, nos termos permitidos pelo artigo 1417.º do mesmo Código.

Rui Vieira Miller [In A Propriedade Horizontal no Código Civil, Almedina, 3.ª Edição, pp. 96-97], sobre a forma de constituição da propriedade horizontal por usucapião, escreve o seguinte:

«[…] são todos os condóminos que têm de actuar sobre o prédio, por eles parcelado em fracções susceptíveis de corresponderem às exigências da sua utilização em regime de propriedade horizontal, como se efectivamente este regime estivesse regularmente constituído, usando, pois, cada um a sua fracção autónoma com exclusão dos demais e fruindo todos, como comproprietários, mas com as limitações inerentes a essa especial forma de compropriedade as partes comuns do prédio, todos contribuindo também, na proporção de valor das suas fracções, ou apenas aqueles que de tais coisas se servem, para as despesas com a conservação e fruição das partes comuns que alguns utilizem exclusivamente, todos ainda se constituindo em assembleia para administrarem as partes comuns através de um administrador que nesta elegerem, todos enfim actuando pela mesma forma que actuariam como se fossem contitulares de um direito de propriedade horizontal regularmente constituído sobre o prédio.»

Também Aragão Seia [In Propriedade Horizontal – Condóminos e Condomínios, Almedina, 2001, p. 34] considera que:

«A aquisição por usucapião de fracções autónomas, por quem é mero possuidor sem título do direito de propriedade horizontal, não é apto, por si só, a constituir um edifício em propriedade horizontal, embora seja o seu acto gerador. Para que possa ser fonte desta precisa de uma sentença que a declare e de onde constem discriminadamente os requisitos (…) dos artigos 1414.º, 1415.º e 1418.º, n.º 3 [do Código Civil]».

Por sua vez, Carvalho Fernandes [In Lições de Direitos Reais, Quid Juris, 1996, p. 313], relativamente à particularidade da constituição da propriedade horizontal por usucapião, observa que:

«Para além de se recordar que, naturalmente, a correspondente posse há-de traduzir-se num comportamento que seja equivalente ao que assumiria um condómino, em relação a certa unidade de um prédio urbano, vale também para a usucapião a exigência dos requisitos legalmente impostos para a constituição da propriedade horizontal. Se eles não se verificarem (…), só pode ter-se como adquirida uma situação de compropriedade proprio sensu

Ora, face ao disposto do artigo 1417.º, n.º 1, do CC não sofre dúvida que a propriedade horizontal pode ser originariamente constituída por usucapião, mas, à luz dos ensinamentos expostos, tal constituição tem de assentar em exercício de posse usucapível sobre prédio urbano, ou porventura parte dele, que reúna, desde logo, as características exigidas pelos artigos 1414.º e 1415.º do CC, mormente sobre frações já constituídas de facto em unidades independentes, distintas e isoladas entre si com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via pública.

O mesmo é dizer que a posse usucapível, para tal efeito, deve ser exercida sobre coisa que detenha já todas essas características, em termos ficar a constar da sentença de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião as especificidades obrigatórias a que se refere o artigo 1418.º, n.º 1, do CC, como são a individualização de cada fração, o seu valor relativo, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.

Tal sentença é meramente declarativa de reconhecimento da situação possessória pré-existente e das características do prédio urbano ou parte dele sobre que incide essa posse que revelem já as condições físicas e técnicas inerentes à propriedade horizontal, nomeadamente uma realidade de facto correspondente à estrutura e funcionalidade de frações autónomas.

Nessas condições, afigura-se que seja admissível a constituição por usucapião de duas frações autónomas por decomposição de uma fração autónoma já existente, desde que devidamente integradas no respetivo condomínio.

Neste caso, a ação que vise o reconhecimento de uma tal constituição terá, obviamente, que correr entre todos os condóminos, pois se, para a divisão convencional de frações em novas frações, o artigo 1422.º-A, n.º 3, do CC exige a aprovação dos condóminos sem qualquer oposição, por maioria de razão, em caso de divisão potestativa, como é a operada por via da usucapião, têm de ser convocados também todos os condóminos, só assim podendo a sentença ter eficácia de caso julgado material em relação a todos eles. [...]

Não bastará [...] alegar uma posse usucapível sobre uma parte delimitada de um prédio urbano que, porventura, pudesse constituir fração autónoma. Torna-se necessário alegar também que as frações sobre as quais se pretende obter o reconhecimento da propriedade horizontal por usucapião já se revelem de facto dotadas de todas as características adequadas a tal reconhecimento. [...]

Sucede que, no caso dos autos, os A.A. laboraram nalguns equívocos graves no que respeita à consubstanciação das suas pretensões de reconhecimento da propriedade horizontal por usucapião sobre a sobredita 1.ª unidade da fração E.

Desde logo, começaram por desenhar tais pretensões dirigidas apenas aos R.R., como se o reconhecimento pretendido só àqueles e aos A.A. dissessem respeito, com completo alheamento dos demais condóminos, quando é certo que a pretendida “divisão” da fração E em duas novas frações autónomas diz, necessariamente, respeito a todo o condomínio em que estas frações se passariam a integrar. Só mais tarde vieram então requerer a intervenção dos demais condóminos.

Por outro lado, parece existir alguma confusão entre a prioridade dada ao pedido de reconhecimento de aquisição por usucapião da dita 1.ª unidade da fração E, face aos R.R., quando, como já foi dito, este reconhecimento depende necessariamente do reconhecimento da constituição daquela unidade como fração autónoma integrado no condomínio do prédio.

Acresce que a constituição da propriedade horizontal, por usucapião, sobre aquela 1.ª unidade, que os A.A. dizem possuir a título exclusivo, não pode ser desgarrada da 2.ª unidade da mesma fração E que, segundo eles, seria possuída também a título exclusivo pelos R.R.

No entanto, os A.A. nada alegaram quanto ao modo de comunicação dessa 2.ª unidade com parte comum do prédio ou com a via pública e, mesmo no que respeita ao modo de comunicação da 1.ª unidade, com parte comum do prédio – através de terraço do rés-do-chão -, nada dizem sobre a conformidade desse acesso com a regulamentação legal. Também não especificam em que consiste a “parede divisória” entre as duas unidades, nem esclarecem se tal divisória está em conformidade com a regulamentação das edificações urbanas.

Mas mais grave do que isso é o facto de os A.A. pretenderem que os R.R. obtenham autorização e realizem obras na 2.ª unidade para permitir destacá-la como fração autónoma, admitindo mesmo que tal não seja possível, já que formulam um pedido subsidiário de reconhecimento do seu invocado direito de propriedade sobre toda a fração E.

Isto só pode significar que, afinal, a fração E não se encontra já, nem muito menos desde o início da posse, constituída por duas frações de facto autónomas.

Ora, como foi dito, o pretendido reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião, que teria de recair simultaneamente sobre as duas ditas unidades da fração E, supõe que a posse usucapível invocada tenha sido exercida sobre tais unidades dotadas já das características de facto inerentes a frações autónomas e não sobre unidades que necessitem ainda de obras de adaptação para tal efeito.

De resto, seria contraditório proferir sentença a reconhecer a constituição da propriedade horizontal sobre aquelas unidades como frações autónomas e ao mesmo tempo condenar os R.R. a realizar obras para adaptar a 2.ª unidade às características que já deveria ter como fração autónoma.

Tais deficiências não se mostram sequer supridas com os esclarecimentos complementares prestados pelos A.A. junto do Tribunal da Relação através da peça reproduzida a fls. 198/ v.º a 199/v.

Pretendem agora os A.A./Recorrentes que o tribunal use dos seus poderes oficiosos para superar as insuficiências verificadas, apelando ao disposto no artigo 652.º, n.º 1, alíneas b) e d), do CPC, querendo, quiçá, reportar-se ao art.º 662.º, n.º 2, alíneas a) e b), do mesmo diploma.

Todavia, não estão aqui em causa medidas de suprimento quanto a diligências probatórias como são as ali preconizadas para serem oficiosamente usadas pela Relação no âmbito da reapreciação da decisão de facto.

Quando muito, o que aqui se poderá suscitar é o uso dos poderes oficiosos do tribunal com vista ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada nos articulados, ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 2, alínea b), e n.º 4, do CPC, com a possibilidade de a Relação ordenar ao tribunal da 1.ª instância que convide os A.A. a aperfeiçoarem a matéria insuficientemente alegada.

Não se ignoram os poderes hoje reforçados do tribunal em sede de aperfeiçoamento, nomeadamente, quanto a factos complementares ou concretizadores da matéria já alegada nos articulados.

No entanto, convém não exagerar no seu alcance de forma a, por essa via, subverter o ónus de alegação que incumbe às partes nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC.

Sucede que, no caso dos autos, não se trata de suprir factos meramente complementares ou concretizadores do já alegado pelos A.A..

Tratar-se-ia antes de reformular a causa de pedir num segmento essencial, no sentido de conter, afinal, os elementos reveladores de que as duas unidades da fração E em causa reuniam já, desde o início da posse, todas as características necessárias ao pretendido reconhecimento da propriedade horizontal, perante um quadro alegatório em que, além das verificadas insuficiências, se mostra contraditório, a ponto de se admitir a necessidade de realizar obras na 2.ª unidade ou de nem sequer ser possível o fracionamento da referida fração E."

*3. [Comentário] Nada há a opor ao decidido no acórdão, pelo que se justificam apenas as seguintes observações:

-- Embora o acórdão não o qualifique, a necessidade da demanda de todos os condóminos decorre da circunstância de entre eles se verificar um litisconsórcio necessário natural (art. 33.º, n.º 2 e 3, CPC);

-- Embora, em 1.ª instância se tenha chegado a encarar a hipótese de ineptidão da petição inicial por contradição entre a causa de pedir e o pedido (art. 186.º, n.º 2, al. b), CPC), parece que, depois disso, se entendeu que o problema não era processual, mas antes substantivo; entendeu-se bem, porque, em abstracto, não há nenhuma contradição entre a aquisição da propriedade horizontal por usucapião e o pedido de reconhecimento dessa aquisição; o que se verifica é que, no caso concreto, não estão preenchidos os requisitos para a aquisição dessa propriedade por usucapião.

MTS