"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



27/02/2019

Jurisprudência 2018 (185)


Execução;
abuso do direito*


I. O sumário de RL 15/11/2018 (796/17.0T8OER-A.L1-2) é o seguinte:

1 - Não constitui abuso de direito a instauração pela exequente de acção executiva contra a executada, com apresentação (como título executivo) de documento autenticado que contém um acordo entre as partes, nos termos do qual a executada se confessa e declara ser devedora à exequente da quantia de € 190.000,00, a pagar em três prestações iguais, mensais e sucessivas de € 63.333,33, já vencidas, e apesar de constar desse mesmo documento que “as partes comprometem-se a diligenciar e a envidar todos os esforços de modo a resolver por acordo qualquer litígio ou dúvidas de interpretação que possam eventualmente resultar ou emergir deste ACORDO ou de qualquer uma das respectivas cláusulas nele previstas”, uma vez que a executada não alega que se tenha manifestado qualquer controvérsia entre as partes sobre qualquer questão relacionada com a força executiva desse documento.

2 - Não há litispendência quando o credor, depois de instaurar execução hipotecária, reclama o seu crédito numa outra execução movida por um terceiro, em que foi penhorado o imóvel sobre o qual dispõe da referida garantia hipotecária.

3 - Não constitui fundamento de embargos de executado a circunstância do agente de execução, em execução hipotecária, não ter iniciado a penhora pelo imóvel hipotecado, antes tendo tentado a penhora de direitos de crédito da executada.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no art.º 334º do Novo Código de Processo Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O excesso manifesto dos limites impostos pela boa-fé ocorre quando o titular do direito viola o princípio da confiança que nele foi depositada pela contraparte, através da prévia aquisição da expectativa de uma conduta de sinal contrário à que se mostra adoptada.

Este sentido interpretativo é aquele que é seguido pela jurisprudência do S.T.J., como no acórdão de 12/2/2009 (relatado por Azevedo Ramos e disponível em www.dgsi.pt), aí se referindo que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara”. E no mesmo acórdão refere-se ainda que “o abuso do direito só deve funcionar em situações de
emergência, para evitar violações chocantes do direito e da justiça”.

Ou seja, e tendo presente o caso concreto, a propositura da acção executiva só se pode classificar como abusiva, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 334º do Código Civil, na medida em que da conduta das partes, aquando da outorga do acordo pelo qual a executada se declarou devedora à exequente da quantia de € 190.000,00, a pagar em três prestações mensais, iguais e sucessivas, com vencimento em 18/8/2015, 18/9/2015 e 18/10/2015, decorra que a exequente criou na executada a expectativa de que não poderia lançar mão da acção executiva para a realização coactiva da obrigação pecuniária em questão, sem que antes diligenciasse e envidasse “todos os esforços de modo a resolver por acordo” a questão do incumprimento da referida obrigação pecuniária.

Mas a contradição entre o conceito de direito à acção executiva (que pressupõe e prevê a existência de título executivo, e que no caso de se tratar de título extrajudicial há-de corresponder ao documento autêntico ou autenticado que importe a constituição ou reconhecimento de uma obrigação perante o credor, como emerge do art.º 703º, nº 1, al. b), do Novo Código de Processo Civil) e o conceito de litígio a resolver por acordo, é patente, afastando a interpretação pretendida pela executada.

É que a referência ao litígio pressupõe a existência de uma controvérsia sobre o direito, só assim sendo possível terminar o mesmo por transacção, através de concessões recíprocas (como decorre da noção de transacção de emerge do art.º 1248º do Código Civil).

Mas estando em causa a constituição de uma obrigação pecuniária pela executada, em documento que reveste todas as características de título executivo, a expectativa de confiança criada para cada uma das partes é que o litígio previsto nesse documento, relativamente ao qual as partes assumem o compromisso de “diligenciar e envidar todos os esforços” para a sua resolução, não pode ser o respeitante a qualquer controvérsia sobre o cumprimento da obrigação pecuniária (ou falta desse cumprimento), e do consequente direito à acção executiva (que assiste à exequente), para realização coactiva da obrigação em questão.

Assim, apresentando a exequente tal documento como título executivo, e não estando alegado pela executada que se tenha manifestado entre as partes qualquer controvérsia sobre qualquer questão relacionada com a sua força executiva (e desde logo não correspondendo à verdade a afirmação constante no ponto (i) da conclusão A) da sua alegação, no sentido de ter alegado na P.I. dos embargos que “não existiu qualquer contacto prévio da Exequente no sentido da resolução amigável de litígio emergente do não cumprimento tempestivo das obrigações pecuniárias assumidas pela Executada no mencionado “Acordo de Cessação do Contrato de Associação em Participação””), não se vê como é que a conduta da exequente é susceptível de ser caracterizada como excedendo manifestamente os limites impostos pela boa-fé, desde logo porque não se assume como violadora de qualquer princípio da confiança que haja sido em si depositada pela executada, no sentido de não haver lugar à demanda executiva em caso de incumprimento da obrigação pecuniária constituída no referido documento autenticado (sem que antes a exequente dialogasse consigo).

E sendo, para tanto, irrelevante, a existência (ou não) de tentativas da exequente no sentido da quantia exequenda lhe ser paga pela executada, não só porque tal não demonstra a existência de qualquer controvérsia sobre o direito de acção (executiva) da exequente, como porque as características da obrigação pecuniária constituída pela executada (designadamente o prazo certo de cada uma das prestações) dispensavam qualquer interpelação para cumprimento.

O que equivale a afirmar que, nesta parte, improcedem as conclusões do recurso da executada, não havendo que fazer qualquer censura à sentença recorrida, na parte em que afirmou não se verificar a invocada excepção do abuso no exercício do direito de acção da exequente."

III. [Comentário] Em anotação muito recente a um acórdão (Jurisprudência 2018 (184)), houve a oportunidade de deixar algumas reflexões sobre a necessidade de distinguir entre o exercício abusivo de um direito em processo e o abuso dos meios processuais (necessariamente reconduzível a uma situação de litigância de má fé).

Cabe salientar que a RL coloca correctamente o problema: o que estava em causa era efectivamente um eventual exercício abusivo do direito de crédito, não um uso abusivo do processo.

MTS