"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/02/2019

Jurisprudência 2018 (179)

 
Caso julgado; ofensa;
recorribilidade


1. O sumário de STJ 18/10/2018 (3468/16.0T9CBR.C1.S1) é o seguinte:

I - A admissibilidade excepcional do recurso pela via atípica prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 629º nº 2 do Código de Processo Civil não abarca todas as decisões que incidam sobre a excepção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a “ofensa” do caso julgado já constituído.

II - Com o caso julgado, visa-se assegurar a certeza do direito e a segurança jurídica indispensáveis à vida em sociedade. Daí a vinculação ao que foi decidido, bem como a insusceptibilidade de o tribunal voltar a pronunciar-se sobre o objecto da decisão proferida.

III - A noção de caso julgado pressupõe, de acordo com o disposto no artigo 580º nº 1 do CPC, a repetição de uma causa, depois de a primeira ter sido já decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, ou seja, transitada em julgado.

IV - A finalidade do caso julgado é a de evitar que, em novo processo, o juiz possa validamente estatuir, de modo diverso, sobre o direito, situação ou posição jurídicas concretas definidas por uma anterior decisão, com desconhecimento dos bens jurídicos por ela reconhecidos e tutelados.

V - O caso julgado visa, pois, obstar a decisões concretamente incompatíveis e tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior – cf. art. 580º, nº 2 do CPC.

VI - Sendo a finalidade prosseguida pelo instituto do caso julgado uma finalidade de certeza, segurança, paz social, prevenção de litígios futuros, quanto maior for a extensão do caso julgado proveniente de certo processo, tanto maior é o rendimento do mesmo processo em certeza, segurança, etc… Aumentando o domínio da indiscutibilidade, diminui o da litigiosidade.

VII - Na essência, caracteriza-se por conferir força e total eficácia à definição já antes dada à relação controvertida, impondo a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação o dever de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objectivo ou à actuação dos direitos subjectivos privados correspondentes.

VIII - O «caso julgado material» torna indiscutível, nos termos do artigo 619º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, a situação fixada na sentença transitada (
res judicata pro veritate habetur), ficando a decisão sobre a relação material controvertida a ter força obrigatória dentro e fora do processo, nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º, isto sem prejuízo de revisão extraordinária, ao abrigo dos artigos 696º a 702º, todos do Cód. Proc. Civil.

IX - Não pode haver dois acórdãos incompatíveis, o recorrido, (de 12.04.2018) a pugnar pela existência de um título executivo contra o executado e pelo prosseguimento da execução e o anterior, (de 23.04.2013) transitado em julgado, a dizer que a execução não pode prosseguir contra o executado.
 
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A questão colocada e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, consiste em saber, pela invocação do disposto no artigo 629º nº 2 alª a) daquele código, se houve ofensa de caso julgado.

A revista tem por fundamento a «ofensa de caso julgado», pelo que se impõe verificar, se ocorre essa condição de admissibilidade do recurso, através da via «atípica» prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 629º do Cód. Proc. Civil.

Cumpre decidir.

Para tal, importa considerar que “a admissibilidade excepcional do recurso não abarca todas as decisões que incidam sobre a excepção dilatória de caso julgado, mas apenas aquelas de que alegadamente resulte a “ofensa” do caso julgado já constituído, efeito que tanto pode emergir da assunção expressa de que a decisão recorrida não representa a violação de caso julgado, como do facto de ser proferida decisão sem consideração (ofensa implícita) do caso julgado anteriormente formado.

Estão, por isso, excluídas desta previsão especial as situações em que o juiz afirme a existência da excepção de caso julgado, ou se assumam os efeitos da autoridade de caso julgado emergente de outra decisão. Efectivamente, nestes casos não se verifica qualquer violação do caso julgado, antes a prevalência de outra decisão já transitada em julgado, situação que fica sujeita às regras gerais sobre a recorribilidade (artº 629º nº 1) e oportunidade da impugnação (artºs 644º e 671º)” [António Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2018, 5ª edição, págs. 50-51].

Com o caso julgado, visa-se assegurar a certeza do direito e a segurança jurídica indispensáveis à vida em sociedade. Daí a vinculação ao que foi decidido, bem como a insusceptibilidade de o Tribunal voltar a pronunciar-se sobre o objecto da decisão proferida [Varela, Bezerra e Nora, in Manual de Processo Civil, pág. 309; e Calvão da Silva, in Estudos de Direito Civil e Processo Civil, pág. 212].

Efectivamente, na óptica de salvaguarda do instituto, é totalmente coerente que se admita sempre o recurso quando o caso julgado seja desrespeitado numa decisão, mas já não quando esse mesmo caso julgado tenha sido respeitado nessa mesma decisão. A anomalia não reside em os tribunais respeitarem o caso julgado, mas antes no desrespeito do caso julgado pelos tribunais. O que se espera – e o que pode ser considerado normal – é que os tribunais respeitem os casos julgados de decisões anteriores e, nessa perspectiva, o que interessa é assegurar sempre a possibilidade de reacção contra o anómalo, não contra o normal, este sim condicionado às regras gerais sobre a recorribilidade [Ac. STJ de 24.05.2018, Proc.º nº 2332/14.1TBALM.E1.S2 [...]]. 
 
[MTS]