"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/02/2019

Jurisprudência 2018 (180)


Incompetência absoluta;
remessa do processo*


1. O sumário de RL 15/11/2018 (266/16.4T8VIS.L1-6) é o seguinte:

Declarada a incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, e peticionada pelo Autor a remessa dos autos ao tribunal competente, com aproveitamento dos articulados, nos termos do artigo 99º nº 2 do Código de Processo Civil, o tribunal, perante oposição justificada do Réu, não pode deferir a tal remessa decidindo que a mesma se faz com aproveitamento apenas da petição inicial.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Os termos legais em que se move a questão, e bem assim os termos doutrinais e ainda os termos jurisprudenciais – se bem que, além dos acórdãos citados, bastantes outros vão no sentido indicado pela recorrente, ou seja, que não deve ordenar-se a remessa dos autos ao tribunal competente, mesmo que requerida pelo Autor, se houver oposição justificada, não necessariamente esmiuçada ou avançada com pormenor (é compreensível isto do ponto de vista da defesa) a essa remessa – estão adquiridos nos autos e constam nas menções feitas supra quer nas pronúncias dos RR. na oposição à remessa, quer nas alegações de recurso, e por isso para elas remetemos por concordarmos. E, sem dúvida, o tribunal recorrido também a elas aderiu. 

Simplesmente, em vez de em função da justificação da oposição manifestada determinar a improcedência do pedido do Autor de remessa dos autos ao tribunal competente, entendeu deferi-la, limitando o aproveitamento dos articulados à petição inicial. 

Ora, com o devido respeito, nem os RR. pugnaram, subsidiariamente, pelo aproveitamento do articulado do Autor – isto não resulta “a contrario” de se manifestarem contra o aproveitamento dos seus articulados – nem o artigo 99º nº 2 do Código de Processo Civil distingue entre remessa dos autos e aproveitamento dos articulados, nem o mesmo preceito pode ser entendido como possibilitando a remessa com aproveitamento apenas da petição inicial. Na verdade, se interpretarmos a norma do artigo 99º nº 2 do Código de Processo Civil que estabelece que “Se a incompetência for decretada depois de findos os articulados, podem estes aproveitar-se desde que o autor requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal em que a ação deveria ter sido proposta, não oferecendo o réu oposição justificada” no sentido de que para salvaguardar o interesse de defesa manifestado na oposição, se pode reduzir o aproveitamento dos articulados, na remessa ao tribunal materialmente competente, à petição inicial, porque o Autor pediu a remessa e neste pedido se encontra a sua vontade de se aproveitar da petição inicial, não só desconsideramos textualmente o segmento “articulados, podem estes aproveitar-se” – isto é, não só interpretamos contra o texto da lei (artigo 9º nº 2 do Código Civil) – como afinal mandamos, passe a expressão, os autos ao tribunal materialmente competente sem o Autor poder duas coisas: - vincular o Réu pela posição que já tomou, uma, e antecipar a defesa relativamente aos argumentos que previsivelmente, na sede materialmente competente, o Réu irá usar, outra. Ou seja, no fundo, cortamos o equilíbrio entre as partes que residia nas posições já manifestadas nos articulados de um e outro lado, e acabamos a tratar desigualmente, já não o Réu mas o Autor, em violação do princípio da igualdade das partes, constante não só dos artigos 13º e 20º da Constituição da República Portuguesa mas também, no plano de lei ordinária, dos artigos 2º e 4º do Código de Processo Civil. 

Significa isto que, a nosso ver e salvo o devido respeito, a consequência da oposição justificada – e sem dúvida as razões enunciadas nos pontos 3 e 4 do requerimento de pronúncia do R. Novo Banco sobre o pedido de remessa constituem justificação suficiente e razoável da oposição – a um pedido de remessa dos autos ao tribunal materialmente competente após o trânsito em julgado da decisão de incompetência material do tribunal, apenas pode ser o indeferimento total da remessa dos autos e não o deferimento da remessa com decisão de limitação do âmbito dos articulados a aproveitar. 

Nestes termos, procede o recurso, devendo revogar-se a decisão recorrida e substituir-se pelo presente acórdão que, em face da oposição dos Réus Novo Banco e Fundo de Resolução à remessa dos autos ao tribunal materialmente competente, indefere o pedido de remessa formulado pelo Autor.

Considerando que a decisão recorrida não deu vencimento ao Autor, requerente da remessa, que de facto não pediu que os autos fossem remetidos para aproveitamento apenas da petição inicial, entende-se que as custas não devem ser imputadas ao recorrido, que de resto também não contra-alegou, e que por isso não são devidas custas pelo presente recurso – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC."

*3. [Comentário] É interessante a argumentação da RL realizada com base no princípio da igualdade das partes (art, 4.º CPC). Efectivamente, o autor só pode estar interessado na remessa para o tribunal competente se esta remessa abranger também a contestação do réu. Se a remessa ficar restringida à petição inicial, origina-se realmente uma situação de desigualdade entre as partes no novo processo: o autor fica vinculado à petição inicial apresentada no tribunal incompetente, mas o réu pode apresentar uma nova contestação.

É precisamente isto que impede que se possa argumentar que, se o autor requer a remessa do processo para o tribunal competente, então também lhe pode ser atribuído menos do que isso, ou seja, apenas a remessa da petição inicial. Na realidade, os interesses do autor só ficam devidamente assegurados se o seu requerimento for julgado totalmente procedente e se, portanto, o processo (e não apenas uma parte dele) for remetido para o tribunal competente. Portanto, o tribunal ao qual é requerida a remessa só pode dar ao autor "tudo" ou, em alternativa, "nada". 

MTS