"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/02/2019

Jurisprudência 2018 (169)


Impugnação pauliana;
bens comuns; legitimidade passiva*


1. O sumário de STJ 4/10/2018 (588/12.3TBPVL.G2.S1) é o seguinte:

I. A apreciação da decisão de facto impugnada pelo Tribunal da Relação não visa um novo julgamento da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros da decisão.

II. No âmbito dessa apreciação, incumbe ao Tribunal da Relação formar a seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em primeira instância e objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [ cfr. nº 2, als. a) e b) do artigo 662º do CPC], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

III. O Tribunal da Relação, tal como decorre do preceituado nos artigos 5º, nº 2, alínea a), 640º, nº 2, alínea b) e 662º, nº1, todos do Código de Processo Civil, tem um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa e não está adstrito aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes nem aos indicados pelo Tribunal de 1ª Instância, apenas relevando o fator da imediação prevalecente em 1ª Instância quando o mesmo se traduza em razões objetivas.

IV. Em sede de reapreciação da decisão de facto é conferido ao Tribunal da Relação o poder de se socorrer, mesmo oficiosamente, de todos os meios de prova constantes do processo bem como do uso a presunções judiciais, nos termos permitidos pelos artigos 349º e 351º, ambos do Código Civil.

V. Consistindo as presunções judiciais em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos e estando-se no âmbito de uma ação de impugnação, é perfeitamente admissível o recurso a tais presunções para prova dos factos de natureza psicológica, já que estes, em regra, não são passíveis de demonstração direta, mas antes por via de circunstâncias e comportamentos exteriores que, à luz, da experiência comum, indiciem condutas e atitudes, de índole cognitiva, afetiva ou volitiva, dos agentes visados, como é o caso do comportamento dos contraentes na realização do ato oneroso de alienação objeto de impugnação pauliana.

VI. Tendo o recorrente, em sede de recurso de apelação, impugnado apenas a factualidade vertida na resposta dada pelo Tribunal de 1ª Instância a determinado ponto da matéria de facto e tendo o Tribunal da Relação, nos termos do art. 662º, nº 2, al. c) do Código de Processo Civil, decidido anular parcialmente o julgamento, por falta de resposta integral a este mesmo artigo, e ordenado a repetição do julgamento tão só quanto a esta matéria de facto, não pode o recorrente, em novo recurso de apelação, vir impugnar matéria de facto que não foi objeto de impugnação no primeiro recurso nem foi objeto deste novo julgamento.

VII. A repetição do julgamento com vista a suprir a deficiência da decisão sobre determinado ponto da matéria de facto não abrange a decisão de facto não viciada, consolidando-se, nesta parte, o julgamento da matéria de facto.

VIII. A decisão do Tribunal da Relação de, num segundo recurso de apelação, restringir a apreciação da impugnação da matéria de facto apenas e tão só à factualidade tida por deficiente e de considerar precludida a possibilidade de impugnação da matéria de facto não viciada, já anteriormente fixada, não integra a nulidade prevista no art. 195º, nº 1 do Código de Processo Civil, nem constitui decisão surpresa, atentatória do princípio do contraditório, consagrado no art. 3º, nº 3 do mesmo código no art. 20º, nºs 1 e 4 da Constituição da República Portuguesa.

IX. O nosso atual modelo de processo civil, assente no primado do direito substantivo sobre o direito adjetivo e no princípio da gestão processual, torna inevitável a flexibilização do princípio do pedido contido no art. 609º, nº1 do Código de Processo Civil, no sentido da necessidade de se apreender realmente o âmbito objetivo do pedido que foi formulado na ação.

X. Pedindo a autora, na ação de impugnação pauliana, a restituição dos bens ao património do réu transmissário para aí poderem ser executados, não constitui excesso de pronúncia, não enfermando, por isso, da nulidade prevista no artigo 615º, nº1, al. e) do Código de Processo Civil, a decisão judicial que limitou-se a declarar que a autora podia executar tais bens no próprio património do obrigado à restituição, pois estamos perante uma mera correção da forma como a autora formulou tal pedido, sem alteração do seu teor substantivo, de modo a conformá-lo com o regime legalmente consagrado nos artigos 616º, nº1 e 618º, ambos do Código Civil e garantir a efetividade da sentença.

XI. A interpretação dos arts. 610°, 612° e 616°, n° 1, 1696°, n° 1 e 1697°, n° 1 e n° 2, todos do Código Civil no sentido de que os requisitos de uma ação pauliana, intentada na sequência da transmissão para um terceiro de bens comuns do casal e sendo a dívida da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges, não têm que se verificar em relação aos dois cônjuges intervenientes no ato impugnado, podendo o credor executar tais bens no próprio património do obrigado à restituição, não padece de inconstitucionalidade, por violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos arts. 2°, 13°, n° 1, 18°, n° 2 e 20°, n° 4 da Constituição da República Portuguesa, pois é a que melhor corresponde aos interesses em jogo: o interesse do credor em perseguir o bem, o interesse dos transmissários na não execução do bem transmitido e o interesse do cônjuge não devedor na não impugnação.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte: 

"3.2.4. Nulidade do acórdão recorrido por contradição entre os fundamentos e a decisão. 

Persiste o recorrente em sustentar que, do cotejo das alíneas a), c) e d) do segmento decisório da sentença de 1ª instância é manifesta uma insanável contradição lógica, pois começa por absolver a Ré mulher de todos os pedidos, para, depois, acabar por condená-la, de forma paradoxal e contraditória, na medida em que julga ineficaz a venda dos bens comuns do casal, identificados nas alíneas d), f), g), h), i), j), m), o), p), q) e r) no ponto 2 da fundamentação de facto e reconhece à autora o direito penhorar, no património da Ré DD, esses mesmos bens, na hipótese dos bens próprios do réu BB, identificados nas alíneas a) a c), e), k), l) do referido ponto 2, não serem suficientes para satisfação integral da quantia exequenda do processo de execução nº 534/11.1TBPVL instaurado contra o Réu BB. 

Mais sustenta que o acórdão recorrido, ao não reconhecer tal nulidade, prevista no art. 615º, nº 1, al. c) do CPC, incorre em igual vício, impondo-se, por isso, a sua anulação.


*
No que concerne à causa de nulidade prevista na c) do nº 1 do citado art. 615º, vem a doutrina e a jurisprudência entendendo, sem controvérsia, que a oposição entre os fundamentos e a decisão constitui um vício da estrutura da decisão.

No dizer de Alberto dos Reis [
In, “Código de Processo Civil, Anotada”, vol. V, pág. 141] e de Antunes Varela [In, “Manual de Processo Civil”, 1ª ed. ,pág. 671], trata-se de um vício que ocorre quando os fundamentos indicados pelo juiz deveriam conduzir logicamente a uma decisão diferente da que vem expressa na sentença.

Dito de outro modo e na expressão do Acórdão do STJ, de 02.06.2016 (proc nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1), «radica na desarmonia lógica entre a motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diverso».

Ou seja, refere-se a um vício lógico na construção da sentença: o juiz raciocina de modo a dar a entender que vai atingir certa conclusão lógica (fundamentos), mas depois emite uma conclusão (decisão) diversa da esperada.

Por sua vez, a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos de algum trecho, e a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade.

Ora, nada disto acontece no caso dos autos e nem é a esta realidade que o recorrente pretende aludir.

Na verdade, contrariamente ao decidido no acórdão recorrido, defende o recorrente que, tendo a ré mulher sido absolvida de todos os pedidos formulados pela autora AA, SA, não podia, a final, ser condenada a reconhecer a ineficácia da transmissão dos bens de que é titular em comum com o Réu marido.

Mas, se assim é, evidente se torna que não está a por em causa a regularidade intrínseca do acórdão recorrido, antes o seu mérito.

Daí concluir-se não ter o recorrente caracterizado qualquer situação evidenciadora da invocada contradição entre os fundamentos e a decisão insertos no acórdão recorrido, nem da sua ininteligibilidade, carecendo de qualquer fundamento a apontada nulidade. [...]


*
3.2.6. Violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos arts. 2º, 13º, nº 1, 18º, nº 2 e 20º, nº 4 da CRP. 
Sustenta o recorrente que a interpretação feita dos arts. 610°, 612° e 616°, n° 1, 1696°, n° 1 e 1697°, n° 1 e n° 2 do Cód. Civil, no acórdão recorrido (e também na sentença de 1ª instância) no sentido de que os requisitos de uma ação pauliana, intentada na sequência da transmissão para um terceiro de um bem comum do casal onde apenas um dos cônjuges é devedor, não têm que se verificar em relação aos dois cônjuges intervenientes no acto impugnado, consubstancia, uma violação grosseira dos princípios da igualdade e da proporcionalidade previstos e consagrados nos arts. 2°, 13°, n° 1, 18°, n° 2 e 20°, n° 4 da CRP, pois equivale a aceitar-se, por um lado, um benefício manifestamente excessivo, desproporcionado e injustificado para o credor (que, sem justificação, vê alargadas as garantias do seu crédito).

E, por outro lado, uma penalização também ela manifestante excessiva, desproporcionada e injustificada para o cônjuge não devedor (que, sem justificação, fica sem possibilidades de defender o seu património e de, designadamente, lançar mão do art. 740° do Cód. Proc. Civil, para lá de ainda ter que indemnizar o terceiro adquirente.

*
Visto ocorrer, quanto à decisão do mérito da causa, dupla conformidade entre a sentença proferida pelo tribunal de 1ª Instância e o acórdão recorrido, obstativa da reapreciação desta matéria em sede de recurso de revista, centraremos a nossa atenção apenas e tão só na questão da alegada inconstitucionalidade.

E nesta vertente importa ter presente que, tal como nos dá conta no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 632/2008, de 23-12-2008 [...], na esteira de jurisprudência já firmada, «a
ideia de proporção ou proibição do excesso - que, em Estado de direito, vincula as acções de todos os poderes públicos - refere-se fundamentalmente à necessidade de uma relação equilibrada entre meios e fins: (…)
O princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios:

Princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos);

Princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato);

Princípio da justa medida ou proporcionalidade em sentido estrito ou critério da justa medida (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos).»

Decorre, assim, deste princípio, que, na avaliação das circunstâncias específicas do caso a decidir e, por isso, aquando da aplicação do direito ao caso concreto, o juiz não pode deixar de fazer um juízo de proporcionalidade, no sentido de conseguir estabelecer uma relação “calibrada”, de justa medida, entre os fins prosseguidos pelas normas, os bens, interesses e valores em conflito, as medidas possíveis e os seus efeitos, o que exige uma ponderação de todos estes fatores.

Conforme já se deixou dito, estamos no âmbito de uma ação de impugnação pauliana em que os interesses em jogo são o interesse do credor em perseguir o bem, o interesse dos transmissários na não execução do bem transmitido e o interesse do cônjuge não devedor na não impugnação.

Ora, ponderando todos estes interesses, facilmente se vê que a solução preconizada pelas instâncias responde, adequadamente, a todos os interesses em presença, na medida em que, tal como refere Paula Costa e Silva [“Impugnação pauliana e execução, in Cadernos de Direito Privado, nº 7 julho/setembro 2004, págs. 62 e 63], ela «permitiu harmonizar a responsabilidade substantiva por dívidas próprias de um dos cônjuges com os interesses do credor impugnante e do cônjuge não devedor. E, como se viu, só num momento terminal o cônjuge não devedor se vê confrontado com uma perda no património do casal. Dir-se-á que ele vai ter de aguardar pela partilha para repor a sua situação patrimonial (só neste momento a dívida será levada a crédito do património comum que, até lá, estará empobrecido) e que não teria de ter este compasso de espera no caso de execução directa do património comum do casal (citado para a execução, poderia provocar imediatamente a partilha).

Mas, neste caso, sabemos que há mais interesses em equação para além dos interesses específicos dos cônjuges. E foram eles que determinaram a inversão do regime legal em matéria de execução patrimonial comum do casal. É opção que pode ser contestada, mas que atende seguramente a interesses também eles legítimos.

No entanto, sempre restará ao cônjuge que, tendo transmitido para terceiro bem comum do casal, viu esta transmissão ser impugnada por um credor do seu cônjuge, sendo ulteriormente demandado pelo transmissário para restituir o preço recebido, lançar mão de uma acção tendente à simples separação judicial de bens!».

E muito menos se vê que o entendimento sufragado pelo acórdão recorrido seja atentatório do princípio da igualdade, consagrado no art. 13º da CRP, pois, não estando as partes em situações essencialmente desiguais, é este mesmo princípio que proíbe sejam tratadas de igual forma.

Como acentua Rui de Alarcão [
In, “Introdução ao Estudo do Direito”, Coimbra, lições policopiadas, 1972, pág. 29, citado no Acórdão Tribunal Constitucional n.º 39/88 [...]], «A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que a situações substancialmente desiguais se dê tratamento desigual mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade'»".


*3. [Comentário] Salvo o devido respeito, não se acompanha a orientação defendida no acórdão quanto à inexistência de contradição entre a absolvição da Ré mulher de todos os pedidos e a sua condenação a reconhecer a ineficácia da venda dos bens comuns do casal. Será que não é mesmo contraditório absolver uma parte demandada do pedido de impugnação pauliana e, ao mesmo tempo, condená-la a aceitar os efeitos dessa mesma impugnação?

A contradição é ainda mais patente pela circunstância de a transmissão dos bens comuns para o terceiro ter sido realizada por ambos os cônjuges. Aliás, dado que foram transmitidos bens comuns do casal, o problema que se colocaria seria, na hipótese de a transmissão ter sido realizada por apenas um dos cônjuges, não o da necessidade da impugnação dessa transmissão, mas antes o da validade dessa mesma transmissão. Quer dizer: a circunstância de a transmissão ter sido realizada por ambos os cônjuges constitui mesmo um pressuposto da impugnação pauliana, pelo que esta só pode julgada procedente contra ambos os cônjuges.
 
O reconhecimento e a sanação da referida contradição pelo STJ -- como é permitido pelo disposto no art. 684.º, n.º 1, CPC -- teria também resolvido, sem nenhuma dificuldade, a questão analisada no ponto 3.2.6. do acórdão. A condenação de ambos os cônjuges nos efeitos de uma impugnação pauliana relativa um acto praticado por ambos os cônjuges teria tornado inútil a discussão sobre a admissibilidade de a execução recair sobre bens comuns quando essa impugnação tenha sido obtida contra apenas um dos cônjuges.  


MTS