"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



22/02/2019

Jurisprudência 2018 (182)


Escritura pública;
título executivo;


1. O sumário de RC 13/11/2018 (4990/17.6T8VIS-A.C1) é o seguinte:

1- Uma escritura pública na qual se constitua em simultâneo um contrato de mútuo e uma hipoteca como garantia desse mútuo, mais ainda sendo tal mútuo destinado à aquisição de habitação própria permanente e concedido por uma institução de crédito autorizada a conceder crédito à habitação, como o é a aqui exequente, constitui título executivo à luz da al b) do art 703º CPC, porque importa a constituição e o reconhecimento de obrigação.

2 - E sem necessidade da complementação a que se refere o art 707º CPC - que se refere à exequibilidade dos documentos autênticos ou autenticados - visto que a dívida em causa não vem configurada nessas escrituras – na de 8/3/2017 ou na de alteração de 24/2/2015 - como resultante de obrigação futura ou condicional.

3 - Trata-se esse titulo executivo de um título extrajudicial de obrigação pecuniária garantida por hipoteca.

4 - Os documentos juntos com o requerimento executivo, em que avulta, para este efeito, uma livrança com vencimento à vista, e a invocação pela exequente de que tendo esta sido apresentada a pagamento aos executados, não foi paga, bem como a junção ao requerimento executivo das cartas de interpelação e da “Declaração” a que se reporta o ponto 11 da matéria de facto, de que resulta que o montante da dívida corresponde ao inscrito naquela livrança, permitem, ao abrigo do disposto no art 715º - tambem aplicavel à exigibilidade – que se conclua para efeitos liminares na execução que aquela obrigação pecuniária garantida por hipoteca se mostra vencida. De todo o modo, se o juiz assim o não entendesse, deveria ter potenciado o suprimento pelo exequente dessa insuficiência probatória, mediante outros meios probatórios, e não indeferir liminarmente a prossecução da execução com base na escritura pública de 8/3/2017.

5 - A exequente dispõe como base para a execução, para além da livrança, também do título previsto na al c) do nº 2 do art 550º CPC, pelo que esta deverá correr na forma sumária.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Vejamos, assim, se a exequente dispõe em função dos documentos juntos, de «título extrajudicial de obrigação pecuniária vencida garantida por hipoteca».
 
Atente-se melhor nos documentos juntos ao nível em questão.
 
Com o requerimento executivo foram juntas três escrituras públicas: uma realizada em 8/3/2007, intitulada de “Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca”, que se refere à compra pelos executados para habitação própria permanente e pelo preço de oitenta mil euros do prédio urbano descrito na CRP de ..., e à constituição junto do exequente, C..., de um empréstimo naquele montante, ao abrigo do Regime Geral do Crédito à Habitação, para financiar aquela aquisição, bem como à constituição a favor da mutuante (aqui exequente) de hipoteca sobre o referido imóvel para garantia do pagamento do capital mutuado; outra, realizada em 24/2/2015, em que outorgaram, para além dos aqui executados e exequente, também a Herança Aberta por óbito de F..., representada pelas suas únicas e universais herdeiras, a executada M... e (a requerida interveniente) M..., mediante a qual estabeleceram um contrato que designaram de “Aditamento e alteração de empréstimo à habitação com hipoteca”, alteração esta que no essencial consistiu no alargamento do prazo do empréstimo e na redução dos respectivos juros, vantagens que a exequente lhes concedeu em contrapartida do reforço da garantia do empréstimo assim alterado obtida através de nova hipoteca, esta de imóvel pertencente à Herança Aberta por óbito de F..., como já se referiu, representada pelas suas únicas e universais herdeiras, M... e M...; e uma terceira escritura, esta de constituição desta segunda hipoteca.
 
As escrituras públicas, enquanto inquestionáveis documentos exarados por notário (art 363º/2 CC), desde que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigação, constituem um dos títulos executivos (taxativamente) enumerados no art 703º – cfr respectiva al b). 
 
São títulos executivos extrajudiciais privados de natureza negocial. 
 
No que se reporta às escrituras públicas juntas aos autos, a que teve lugar em 8/3/2007 mostra-se constitutiva da aquisição do direito a uma prestação – constitutiva como é de contrato de mútuo de valor superior a €25.000,00, cfr art 1143º CC – e correlativamente, como recognitiva da obrigação de restituição própria do mútuo – art 1142º CC. Efectivamente, a entrega aos mutuários, aqui executados, dos 80.000€ correspondentes à quantia mutuada verificou-se, segundo o exarado na correspondente escritura, na própria data da mesma - cfr documento complementar à dita escritura de que consta que «a quantia referida mutuada é entregue nesta data aos mutuários, por crédito na conta de depósito à ordem dos Mutuários com o NIB… designado por DO …», bem como «os Mutuários confessam-se e constituem-se solidariamente devedores das quantias referidas …». 
 
Como é sabido, a própria existência do contrato de mútuo depende da entrega do dinheiro ou da coisa fungivel a que se refira, por estar em causa um contrato real “quoad constitutionem” - «Aquele para cuja constituição (ou celebração) a lei exige, alem das declarações negociais das partes, a entrega da coisa que constitui o seu objecto» - Dicionário Jurídico, Ana Prata, 4º ed p 330 , não se vendo, nas circunstâncias referidas, qualquer motivo para retirar, ou de qualquer modo condicionar, a natureza ou a suficiência de título executivo, a uma escritura como aquela a que se vem fazendo referência, dita de “Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca” Refere Rui Pinto «Manual da Execução e Despejo» Coimbra Editora , 1ª impressão Agosto de 2013 , em nota de pé de pagina a fls 189: «A escritura pública de mútuo em que está previsto o prazo de restituição e as condições do emprestimo e na qual os mutuários tenham declarado no final que “aceitam o contrato na forma exarada“, implica o reconhecimento da obrigação de restituir , pelo que pode ser utuilizado como titulo executivo».
 
Diga-se de passagem que nesta matéria de compra e venda com mútuo, mesmo sem hipoteca, desde que referente a prédio ou fracção destinado a habitação e em que o mutuante seja instituição de crédito autorizada a conceder crédito à habitação, desde o DL 255/93, de 15/7, que se permite a respectiva celebração por documento particular, (ainda que com reconhecimento de assinaturas), sem que se ponha em causa que tal documento constitua, sem mais, título executivo. 
 
Acresce também a este respeito, que ainda hoje é dominantemente entendido que os instrumentos particulares constitutivos de empréstimos hipotecários lavrados nos estabelecimentos de crédito predial (mesmo que anteriores ao referido DL 255/93, de 15/7), porque se deva entender que o Decreto de 7/1/1876 se mantém em vigor, se devem entender equiparados, para todos os efeitos, às escrituras públicas Neste sentido, cfr Ac STJ 3/5/90, BMJ 397º-418 e ss; Ac STJ 24/1/1995 (Fernando Fabião), Ac RC 5/5/2015 (Alexandre Reis), Ac RP 30/11/2015 (Augusto Carvalho). 
 
No mesmo sentido , invocando para tanto o parecer de Antunes Varela “Constituição de hipoteca a favor de bancos prediais “ in CJ 1991, Tomo III , pag 46 e ss e o parecer de Menezes Cordeiro “Hipotecas a favor de Bancos Prediais” in CJ 1991, pag 56 e ss, Mª Isabel Meneres Campos, «Da Hipoteca – Caracterização , Constituição e Efeitos», Maio de 2003, p 199 nota 652 . 
 
No sentido oposto, ac R L 3/10/89 , CJ TIV 141 e ss , constituindo também eles título executivo.
 
Dúvidas não pode haver, assim, que uma escritura pública na qual se constitua em simultâneo um contrato de mútuo e uma hipoteca como garantia desse mútuo, mais ainda sendo tal mútuo destinado à aquisição de habitação e concedido por uma institução de crédito autorizada a conceder crédito à habitação, como o é a C..., constitui título executivo à luz da al b) do art 703º CPC.
 
E sem necessidade da complementação a que se refere o art 707º CPC- que se refere à exequibilidade dos documentos autênticos ou autenticados - visto que a dívida em causa não vem configurada nessas escrituras – na de 8/3/2017 ou na de alteração de 24/2/2015 - como resultante de obrigação futura ou condicional.
 
Pires de Lima/Antunes Varela, em anotação ao nº 2 do art 686º CC - «Código Civil Anotado», Vol , 2ª ed revista, p 629 - norma de que resulta, desde logo, que a obrigação garantida por hipoteca pode ser futura ou condicional - exemplificam as obrigações futuras a que o mesmo faz referência com as referidas nas als b), c) e d) do art 705º CC, postulando como denominador comum a tais obrigações, a circunstância de relativamenete a elas haver «uma relação juridica pré-constituida». 
 
É o que sucede – no que ao mútuo se refere – com os contratos de abertura de crédito, que funcionam na prática como contratos promessa de mútuo - Contrato de abertura de crédito «é o contrato pelo qual um dos contraentes , designado por creditante, se obriga a conceder ao outro, o creditado, crédito até certo montante e em certas condições, crédito que o creditado usará (ou não) quando entender e , em principio para os fins que lhe aprouverem » - Dicionário Jurídico Ana Prata, 4ª ed p 10, acrescentando que «é discutida a natureza de contrato de abertura de crédito , dividindo-se os autores essencialmente entre aqueles que os consideram um contrato promessa de mútuo, um contrato normativo, um contrato misto ou um contrato bancário atípico» . Tendo em mira entre outros, estes contratos, pondera Isabel Meneres Campos - Obra citada, p 105 : «É frequente o registo provisório da hipoteca, antes de ser entregue ao devedor a quantia mutuada (…) Nestes casos, a garantia surge antes da dívida, mas já existe uma relação juridica entre o credor e o devedor», concluindo que nesses casos «se deve entender que o registo provisório da hipoteca equivale mais a uma promessa de hipoteca do que a uma hipoteca efectivamente constituida».
 
Rui Pinto define obrigação futura como «a obrigação exequenda decorrente de um contrato a que o credor está obrigado, pelo titulo executivo, a constituir mediante a entrega de uma coisa ao devedor». - Obra citada, p 193 
 
Relativamente às obrigações condicionais, que Pires de Lima/Antunes Varela na referida anotação ao art 686º CC designam por obrigações «puramente eventuais», ponderam esses autores: «Embora a hipoteca (…) não tenha a sua base em qualquer relação juridica actual, em cuja vida a obrigação possa nascer, as necessidades práticas recomendam solução idêntica à da primeira hipótese considerada». 
 
A respeito das mesmas e em função da sua coordenação com a norma do art 707º CPC, pronuncia-se Rui Pinto - Obra e lugar atrás citados do seguinte modo: «Contrariamente à obrigação futura stricto sensu a obrigação diz-se eventual se a obrigação exequenda vier a decorrer de um contrato que as partes não estavam obrigadas, pelo título executivo, a constituir». Explicitando a seguir: «Essa obrigação foi objecto de “previsão” das partes, como está na letra do art 50º in fine = art 707º nCPC, ou seja, de negociação pré-contratual, e ela foi, eventualmente, associada à mesma garantia real constituida para uma contemporânea obrigação actual ou apenas futura, nos termos da 1ª parte daquele artigo». Referindo ainda, para melhor compreensão: «A exequibilidade assegurada pelos art 50º=707º NCPC permite assim usar, por exemplo, uma escritura de abertura de mútuo, com opção de mais e eventuais mútuos, acompanhada da constituição de uma hipoteca genérica ao abrigo do art 686º/2 CC, ou a própria escritura dessa hipoteca».
 
Estas “obrigações eventuais” surgem – no que respeita ao mútuo - como associadas às “hipotecas genéricas”. Nas palavras de Isabel Mereres Campos - Obra citada, p 106 , «trata-se de hipotecas voluntárias em que se convenciona que o devedor constitui hipoteca «para todas e quaisquer dividas, assumidas e a assumir, independentemente da sua causa». Referindo-se mais adiante - Obra citada, pag 113, no que respeita especificamente a este tipo de hipotecas, que diz preferir designar por “hipoteca global”: «Caracteriza-se por garantir uma dívida que não está determinada ab initio, sendo apenas determinado o montante máximo que assegura. As obrigações garantidas podem ter a mais variada natureza e não é limitado o seu número: pode ser abrangida pela hipoteca toda e qualquer obrigação, desde que integrável num dos critérios de globalização convencionados e desde que caiba na quantia máxima constante do registo e do titulo constitutivo (…) Relativamente a estas hipotecas (globais) é necessário que se preencham certos requisitos minimos para determinação do crédito garantido, designadamente, é preciso identificar, na data da sua constituição, a relação juridica da qual derivará a obrigação a garantir, e só se esta vier a nascer e se tornar autonomamente exigivel é que havera desenvolvimento da garantia hipotecária». 
 
Quer no caso de obrigações futuras, quer no caso de obrigações eventuais, não basta ao título executivo o documento autêntico ou autenticado, havendo que fazer a prova complementar do título nos termos do art 707 º CPC, que deve ser feita por documento passado em conformidade com as cláusulas constantes do documento exequendo – podendo utilizar-se, para tanto, extractos de conta-corrente ou outros documentos contratuias – ou sendo o documento exequendo omisso a esse respeito, por documento revestido de força executiva própria – por exemplo, letras e livranças- devendo ter-se presente que «o titulo executivo não é o documento complementar, ainda que revestido de força executiva própria, mas, sim, o documento exarado ou autenticado». - Rui Pinto, obra citada, p 187 
 
No caso de obrigações futuras a prova complementar traduzir-se-á, na terminogia do art 707º, na «de que alguma prestação foi realizada para conclusão do negócio» O que permite conferir a esta expressão o conteúdo que Lebre de Freitas já lhe conferia no âmbito da anterior redacção do art 50º. Para este autor a expressão “prestação futura” deverá ser feita coincidir com prestação constitutiva dum contrato real quoad constitutionem, por isso engobando os contratos de abertura de crédito, os contratos de fornecimento, as promessas de comodato depósito ou locação - cfr «A Acção Executiva depois da Reforma», 4º ed p 54 /55, e, com maior abundância de informação, «Código de Processo Anotado», I, 2ª ed, p 106-107 ; e no caso de obrigações eventuais, a respectiva prova complementar advirá da prova de que «alguma obrigação foi constituida na sequência da previsão das partes».

[MTS]