"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/02/2019

Jurisprudência 2018 (177)


Recurso; efeito devolutivo:
procedência; efeitos


1. O sumário de STJ 16/10/2018 (923/13.7TBGDM-B.P1.S1) é o seguinte:

I Sendo interposto recurso de uma decisão interlocutória, ao qual seja atribuído efeito devolutivo, o processo continua os seus termos, e decisão assim proferida, embora pendente de impugnação, é imediatamente exequível, tudo se passando no processo, quer a nível do seu andamento, quer ao nível da eficácia do que foi determinado, como se nenhuma impugnação tivesse existido.

II A atribuição ao recurso de um efeito meramente devolutivo, tem muitas vezes consequências perversas de produzir um volte face nas situações jurídicas constituídas: o que é agora determinado, poderá ser alterado por via do resultado final da decisão proferenda em sede recursiva, pois devolve-se o conhecimento da questão ao Tribunal hierarquicamente superior, sobre o qual impende o poder de rever a decisão com o objectivo de a confirmar ou revogar.

III Por assim ser, nunca se poderia ter como transitado em julgado um primeiro despacho que determinou a adjudicação do imóvel aos Autores, aqui Recorrentes, pois o mesmo foi objecto de recurso de Apelação pelo Réu, recurso esse ao qual foi atribuído efeito devolutivo, e subsequentemente, na reapreciação efectuada pelo Tribunal da Relação veio a ser proferido Acórdão a julga-lo procedente, tendo sido revogado o mesmo e ordenada a sua substituição por outro a reverter a situação primitivamente criada, no âmbito e exercício dos poderes do Tribunal da Relação em sede recursória.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"II A única questão que se coloca no âmbito da presente Revista é a de saber se transitou ou não em julgado a decisão que adjudicou aos Autores o imóvel.

Mostra-se provado o seguinte iter processual com interesse para a decisão:

- Os Autores, aqui Recorrentes, instauraram acção de divisão de coisa comum contra os Réus, Recorridos, alegando a indivisibilidade do imóvel constituído por um prédio urbano (…), pretendendo o fim da indivisão,e requerendo a sua adjudicação.

- Foi celebrada transacção, homologada por sentença transitada em julgado, em que as partes acordaram nos seguintes termos:

“1. As partes acordam que o prédio deverá permanecer indiviso.

2. Os réus prescindem do pedido quanto à usucapião.

3. As partes acordam que a área do prédio é de 1.462 m2.

4. Acordam em proceder à venda judicial, com início pela venda por propostas em carta fechada e com o valor mínimo, fixado na perícia, de € 64.712,74.

5. As partes acordam prescindir do prazo de trânsito.

6. Custas em partes iguais”.

- Designado dia para a abertura de propostas em carta fechada, apresentaram os Autores uma proposta no valor de € 66.200,00 e o Réu apresentou a proposta no valor de € 70.200,00, que foi aceite.

- Não tendo o Réu, notificado, em 8 de Fevereiro de 2016, para os efeitos do disposto no artº 824º, nº 2, do CPC, procedido ao depósito do preço, mas tendo, no decurso do prazo subsequente àquela notificação dirigido aos autos requerimento em que, alegando pretender comprar e pagar de imediato o que ainda faltava do preço, requeria que fosse dispensado de depositar a parte do preço não necessária para pagar a quota do consorte/requerente e que fosse determinada a liquidação da sua responsabilidade e se fixasse um prazo de dois dias para proceder ao depósito em falta, foi, em 11 de Abril de 2016, precedido de audição das partes, proferido despacho que considerou que o prazo para depósito do preço era improrrogável, dando a venda sem efeito a venda e, ao abrigo do disposto no artº 825º, nº 1, al. a), aceitou a proposta de valor inferior dos Autores.

- Deste despacho foi interposto recurso de Apelação pelo Réu, ao qual foi atribuído efeito devolutivo.

- Foi produzido Acórdão, transitado em julgado, que, julgando procedente a Apelação, revogou o referido despacho, ordenando a sua substituição por outro que determinasse a manutenção da venda ao proponente Réu, que se definisse qual o preço que ele teria que depositar e, por fim, que se fixasse prazo para a concretização do depósito.

- Remetidos os autos à 1ª Instância, foi ali proferido o seguinte despacho:

“Em obediência ao decidido no Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, determina-se a manutenção da venda do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, registado na Conservatória do Registo Predial de (…), ao ora R O preço a depositar pelo Réu é de 50% do valor de € 70.200,00, proposto e aceite por despacho de fls. 210 dos autos.

O prazo para depósito é de 10 dias.

Deve ainda o R. comprovar a satisfação das obrigações fiscais inerentes à transmissão.

Relativamente ao despacho de adjudicação proferido a fls. 314 (refª 369803373), a favor dos AA., considerando que o mesmo foi proferido com base na aceitação da venda constante do despacho de refª 367048173 (cfr. fls. 301), que foi revogado pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido a 09/02/2017, conclui-se que tal adjudicação não produz efeitos (v.g. artigo 195º nº 2 do CPC)”.

Insurgem-se os Autores/Recorrentes contra o Aresto em impugnação porquanto defendem que com o primitivo despacho que mandou adjudicar o imóvel aos Autores e a emissão do respetivo título de transmissão, foi posto termo à situação de indivisão da coisa comum tendo a subsequente decisão do Tribunal de 1.ª instância de 23 de Junho de 2016, produzida na sequência do Acórdão da Relação que determinou a manutenção da venda ao proponente Réu, que se definisse qual o preço que ele teria que depositar e, por fim, que se fixasse prazo para a concretização do depósito e que determinou a adjudicação do bem imóvel ao Réu e deu sem efeito aqueloutra, ofendeu o caso julgado então produzido.

Vejamos. [...]

A primeira perplexidade que nos é suscitada pela alegação conclusiva dos Recorrentes, prende-se com a circunstância de se chamar à colação a dado passo, uma eventual inutilidade superveniente da instância recursiva primeiramente encetada pelo Réu, aqui Recorrido, face à decisão de adjudicação do imóvel aos Autores e consequente passagem do título de transmissão, pois com este acto se teria esgotado toda e qualquer utilidade prática do Acórdão que ali foi proferido.

Como decorre do preceituado no artigo 628º do CPCivil a decisão só se considera transitada em julgado quando a mesma já não é passível de qualquer recurso ordinário ou de reclamação, sendo certo que aquela decisão que determinou a adjudicação do imóvel aos Autores, aqui Recorrentes e que estes esgrimem ter transitado em julgado, foi objecto de impugnação recursiva, não podendo por isso, ex adverso do que propugnam ter transitado em julgado.

É certo que a atribuição ao recurso então encetado, de um efeito meramente devolutivo, tem muitas vezes consequências perversas de produzir um volte face nas situações jurídicas constituídas: o que é agora determinado, poderá ser alterado por via do resultado final da decisão proferenda em sede recursiva, pois atribui-se ao Tribunal hierarquicamente superior o poder de rever a decisão com o objectivo de a confirmar ou revogar, devolvendo-se-lhe o conhecimento da questão, cfr Amâncio Ferreira, Manual Dos Recursos Em Processo Civil, 8ª Edição, 176.

A decisão assim proferida, pendente de recurso interposto ao qual é atribuído o efeito devolutivo é imediatamente exequível, tudo se passando no processo, quer a nível do seu andamento, quer ao nível da eficácia do que foi determinado, como se nenhuma impugnação tivesse existido.

Por assim ser, nunca se poderia ter como transitado em julgado aquele primeiro despacho que determinou a adjudicação do imóvel aos Autores, aqui Recorrentes, pois o mesmo foi objecto de recurso de Apelação pelo Réu, recurso esse ao qual foi atribuído efeito devolutivo, e subsequentemente, na reapreciação efectuada pelo Tribunal da Relação veio a ser proferido Acórdão a julga-lo procedente, tendo sido revogado o referido despacho e ordenando a sua substituição por outro a reverter a situação primitivamente criada, no âmbito e exercício dos poderes do Tribunal da Relação em sede recursória.

Por isso, e bem, foram os autos remetidos ao primeiro grau, que em cumprimento da decisão hierarquicamente superior, nos termos do artigo 205º, nº2 da CRPortuguesa, fez adjudicar o imóvel ao Réu, dando sem efeito o anterior despacho de adjudicação aos Autores, aqui se plasmando a consequência nefasta do efeito devolutivo da Apelação, a qual constitui regra, sendo a atribuição de efeito suspensivo excepcional, como resulta inequivocamente das regras gerais de processo civil, não violando a mesma qualquer normativo constitucional, maxime, o da defesa dos direitos dos Recorrentes, nem o do acesso ao direito, nem tão pouco os princípios que regem o Estado de direito democrático prevenidos nos artigos 202º, 20º e 2º daquela mesma Lei fundamental, sempre se acrescentando que mesmo que se tratasse de uma questão de «ignorância ou má interpretação da lei», sempre se teria de ter qualquer dessas situações como irrelevantes nos termos do artigo 6º do CCivil .

De facto, concretizando, o direito de acção dos Recorrentes mostra-se materializado através dos presentes autos, aos quais foram dadas todas as garantias quanto ao exercício dos respectivos direitos, os quais se mostram concretizados, sendo disso apanágio o inconformismo pelos mesmos demonstrado até este Supremo Tribunal de Justiça, no exercício do seu direito ao recurso.

Assim, o direito da tutela à efectiva compreende a proibição da indefesa que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os orgãos judiciais, que se verificará sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer os seus direitos, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª edição, 163/164 e Fundamentos da Constituição, 1991, 82/83; inter alia os Ac TC 508/2002 (Relator Nunes de Almeida) e 287/2003 (Relator Artur Maurício), in www.dgsi.pt.

Os aludidos princípios não se mostram beliscados pelo facto de o legislador ordinário no âmbito do seu poder de conformação ter optado por um sistema regra de efeito devolutivo à interposição de recursos, quer de Apelação quer de Revista, artigos 647º, nº1 e 676º, nº1 do CPCivil, sendo o efeito suspensivo excepcional, apenas nos casos prevenidos na Lei."
 
[MTS]