Revelia; efeitos;
abuso do direito; abuso do processo*
1. O sumário de RP 22/10/2018 (528/11.7TVPRT.P1) é o seguinte:
I – A revelia operante tem por efeito a confissão dos factos articulados pelo autor, tal como estabelece o art.567.º/1, in fine, CPC. Tratando-se de um facto, a primeira caraterística ontológica que lhe assiste é evidente: o facto é. Ou se verifica, ou não. O «dever existir» está afastado do campo dos factos, por ser pertinente à valoração que se faz do facto.
II - Se na petição inicial, o autor alega uma hipótese («o réu sabia ou devia saber»), essa alegação não se torna num facto certo da vida real pelo silêncio do réu e consequente confissão ficta.
III - A boa-fé civil não tem apenas efeitos no campo substantivo mas também no campo processual, aí impedindo e sancionando o abuso de direito de ação, mormente por via da responsabilidade civil extracontratual.
IV – O abuso de direito no campo processual, numa perspetiva macroscópica, pode aferir-se tendo em conta, designadamente, os seguintes índices: - o exercício gratuito do direito com o único e manifesto propósito de negar interesses dos outros, revelando-se, em contrapartida uma falta de interesse objetivo para o exercente (ex. a vingança e a pura finalidade de prejudicar terceiros);- a afirmação de interesses próprios mas em que se patenteia uma lesão ponderosa (mas de todo escusada) de interesse alheio (ainda que não dolosa); - o exercício do direito desviado do interesse que lhe é imanente e que justificou a sua atribuição, sendo abusiva qualquer situação subjetiva processual que se desvie manifestamente desse interesse;- a ação por má vontade ou para pressionar o lesado (ex., a ação sem fundamento relativa a um imóvel e registo da mesma, com isso podendo impedir a comercialização do imóvel, causando danos em cadeia); - o pedido manifestamente vexatório ou desprovido de qualquer propósito real.
V – A tutela judicial efetiva, na área do urbanismo e no quadro das chamadas relações jurídicas poligonais, acha-se especialmente reforçada, em moldes semelhantes ao que a lei prevê para o consumidor.
VI - Uma situação de significativo desequilíbrio entre as partes (um particular comum de um lado, o município e uma grande empresa do setor imobiliário, do outro) impõe que na concretização do que seja abuso de direito se considere o fim económico e social do direito exercido, visando restabelecer um certo equilíbrio de posições, tanto quanto possível, à semelhança do que ocorre, por exemplo, quando se reconhece a vulnerabilidade do consumidor.
VII – Não é abusiva, mormente pela pretensa criação de danos patrimoniais prolongados, a ação administrativa proposta por particular contra o município e empresa promotora imobiliária, quando aquele se considera afetado por um ato de licenciamento a favor desta dirigido à construção de edifício com área de mais de 18.000 m2, e considerando ser tal ato ilegal, segundo fundamentos que expressa, tendo previamente falhado na tentativa de compor extrajudicialmente os seus interesses, ainda que registe a ação e não logre obter vencimento da causa administrativa.
VIII- Para efeitos de aplicação do disposto no art. 6.º, n.º7 RegCP (dispensa do pagamento remanescente da taxa de justiça), não pode deixar de se considerar de especial complexidade uma ação de natureza cível cuja finalidade reside na avaliação dos pedidos e causa de pedir apresentados perante a jurisdição administrativa em ordem a verificar se comportam abuso de direito de ação quando tal ponderação implica análise dos articulados apresentados naquela jurisdição, das decisões proferidas em primeira e segunda instâncias, no Supremo Tribunal Administrativo e, também, no Tribunal Constitucional, além da verificação dos institutos jurídicos convocados naquela ação de natureza administrativa.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O réu, mais do que ter o direito, tem o ónus de contestar a ação, na medida em que a revelia (sendo operante) produz efeitos que lhe são desfavoráveis. Por isso mesmo é que uma das informações a transmitir ao réu aquando da sua citação respeita às cominações em que incorre em caso de revelia (art.227.º/2, in fine e art.563.º).
A revelia operante tem por efeito a confissão dos factos articulados pelo autor, tal como estabelece o art.567.º/1, in fine, sendo que este regime tem lugar quando o réu, apesar de não contestar, tenha sido ou deva considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, ou, pelo menos, haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu é a chamada “confissão tácita ou ficta” [A solução do nosso sistema jurídico, comum à do direito alemão, não é a acolhida, por ex., na Itália, Espanha e França, onde o silêncio do réu opera como oposição ou contestação tácita – vide Miguel Mesquita, A revelia no processo ordinário, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, p. 1093].
Tal confissão distingue-se da confissão judicial expressa, que consiste numa declaração de ciência, através da qual se reconhece um fato cuja prova pertence à parte contrária (art.355.º ss). Por sua vez, a confissão a que conduz a revelia operante não depende de qualquer declaração nesse sentido, bastando a própria inércia do demandado.
Nos termos legais, não tendo o réu contestado e considerando-se confessados os factos alegados pelo autor, restará apenas decidir a causa “conforme for de direito” (art.567.º/2, in fine). Com efeito, confessados que passam a ter-se os factos articulados na petição, deixa de haver controvérsia nessa sede, limitando-se a questão à valoração jurídica desses mesmos factos. Cumpre ressalvar que o estado de revelia operante em que se encontra o réu não conduz, sem mais, à procedência da ação. É isto que mostra o art.567.º/2, in fine.
Propondo a ação, o autor formulou determinada pretensão de tutela jurisdicional e fê-lo por referência ao quadro fatual que verteu na PI. A operância da revelia leva a que se assuma como que verificado nos autos esse quadro fatual, mas não mais do que isso. Continua o juiz a ter de julgar a causa “conforme for de direito” e tal julgamento tanto pode conduzir à procedência da ação como não. Daí que se fale no efeito cominatório semi-pleno associado à revelia operante. Se o réu não contestar e a lei (art.364.º CC) ou as partes (cfr. art.223.º CC) exigirem documento escrito como forma ou prova de um negócio jurídico alegado na petição inicial e o autor não tiver junto esse documento aos autos, a falta de contestação não supre a falta daquele. Ou seja, os factos que só por via do documento possam ser demonstrados não são considerados confessados (cfr. art.568.º/d).
A revelia não produz efeitos quando se trate de factos para a prova dos quais se exija documento escrito. Se por lei (art.364.º CC) ou por convenção das partes (art.223.º CC) for imposta determinada forma para a emissão de declarações negociais, a lei de processo não pode permitir que a eventual falta de contestação conduza a um resultado contrário ao exigido pela lei substantiva ou pela convenção. Tenha-se em atenção que, neste caso, a inoperância da revelia é mais restrita do que nos anteriores. Quer dizer, por princípio, a falta de contestação implica a confissão de todos os factos articulados pelo autor, nos termos do art.567.º/1, salvo daqueles que, efetivamente, careçam de prova documental para a sua demonstração. Em caso de não impugnação também não se consideram assentes os factos que só podem ser provados por documento escrito (cfr. art.364.º CC) – art.574.º/2.
No que tange à terceira exceção (factos para cuja prova se exija documento escrito), à revisão do art.574.º/2 subjaz um fundamento em tudo equivalente à do art.568.º/d para o efeito cominatório da revelia: em matéria de declaração negocial, rege o princípio da consensualidade ou da liberdade de forma (cfr. art.219.º CC); porém, em diversas situações, a lei exige, sob pena de nulidade (cfr. art.220.º CC), o mero documento particular escrito (simples ou autenticado) ou outra forma ainda mais solene para a celebração (validade e forma) de certos negócios jurídicos (requisito ad substantiam ou mesmo ad constitutionem).
A revelia tem por pressuposto a vontade de não contestar. Se essa vontade estiver ausente, o sistema tem inconvenientes, de modo que “não pode o julgador aceitar passivamente afirmações inverosímeis, nem deve desprezar elementos probatórios contrários aos fatos deduzidos na inicial” [Bedaque, citado por Miguel Mesquita, cit., p. 1096].
Impõe-se fechar as considerações de direito acerca da confissão ficta com a referência ao que é um fato. Fato é todo o ato humano ou acontecimento natural. Será jurídico se a lei lhe atribuir um efeito jurídico.
Tratando-se de um fato, a primeira caraterística ontológica que lhe assiste é evidente: o fato é! Ou se verifica, ou não. O dever existir está afastado do campo dos factos, por ser pertinente ao dever ser ou à valoração que se faz do fato que existe ou não existe. Dito de outro modo: ou A fez ou não fez. Se não fez e devia ter feito, fato é que não fez e devia ter feito, e esta é a apreciação que podemos fazer sobre esse fato. Do mesmo modo, ou A sabia ou devia saber. Se sabia, é um fato; se não saia também é um fato; se devia saber, já pertence ao campo do dever ser e é, por isso, uma apreciação valorativa que pode ser jurídica ou não consoante a lei atribua ou não efeitos à ignorância.
Assim, quando a A. alega que os RR. sabiam ou deviam saber, o que se passa é o seguinte: não se trata de uma alegação de um fato, mas da invocação de uma hipótese que está destacada pela disjuntiva ou.
Na verdade, ou uma coisa ou outra: ou os RR. sabiam ou não sabiam (caso em que se diz, deviam saber).
A hipótese (ou suposição) que assim se coloca é convertida em fato real (sabiam?/não sabiam?) pela prova resultante da confissão ficta? Claro que não! O que nasce como hipótese não se torna num fato certo da vida real pelo silêncio de outrem."
*3. [Comentário] a) Não é possível avaliar o acórdão da RP sem deixar um apontamento crítico.
Antes do mais, não é facilmente compreensível o que se afirma no acórdão quanto à negação da confissão ficta, resultante de uma revelia operante (art. 567.º, n.º 1, CPC), relativamente à alegação pelo autor de que o réu sabia ou devia saber algo. A pergunta que se coloca é esta: se esse conhecimento ou dever de conhecimento integrar a previsão de uma regra jurídica, deve considerar-se que esta previsão não está preenchida pela circunstância de esse conhecimento ou dever de conhecimento decorrer de uma confissão ficta resultante de uma revelia operante?
Para o caso de se considerar -- como fez a RP -- que deve ser fornecida uma resposta afirmativa à resposta anterior, uma outra se coloca de imediato: se não há confissão ficta sobre esse conhecimento ou dever de conhecimento, então quando é que a parte autora pode procurar realizar a prova desse conhecimento ou dever de conhecimento? A resposta é: em momento algum da tramitação do processo, porque, recorde-se, se a revelia for operante, salta-se imediatamente para a fase da sentença (art. 567.º, n.º 2, CPC).
Disto só pode resultar que a revelia operante do réu não pode deixar de considerar adquirido para o processo tudo o que o autor tenha alegado e seja relevante, como facto jurídico, para o preenchimento de uma previsão legal. Isto vale necessariamente para um alegado conhecimento ou dever de conhecimento do réu.
Em suma: a posição assumida pela RP quanto à exclusão da confissão ficta não parece ter sustentação possível no direito positivo.
Disto só pode resultar que a revelia operante do réu não pode deixar de considerar adquirido para o processo tudo o que o autor tenha alegado e seja relevante, como facto jurídico, para o preenchimento de uma previsão legal. Isto vale necessariamente para um alegado conhecimento ou dever de conhecimento do réu.
Em suma: a posição assumida pela RP quanto à exclusão da confissão ficta não parece ter sustentação possível no direito positivo.
b) A RP faz, no seu acórdão, algumas considerações sobre o "abuso de direito de acção judicial".
A primeira observação que importa fazer é que, ao contrário do que muitas vezes se faz, importa distinguir claramente os casos em que há um exercício abusivo de um direito em juízo daqueles em que existe um abuso dos meios processuais. O primeiro caso é, nitidamente, um caso de abuso do direito que é sancionado pelo art. 334.º CC, pois que é irrelevante que esse abuso ocorra em juízo ou fora dele. Por exemplo: um venire contra factum proprium constitui um abuso do direito, seja ele praticado extraprocessualmente ou numa acção pendente.
Se o venire for praticado num processo pendente, este processo é apenas o ambiente em que ocorre o abuso do direito. O que há é, por isso, o exercício abusivo de um direito, não o abuso do processo. É, aliás, por isso que esse exercício abusivo conduz à improcedência da causa com fundamento no disposto no art. 334.º CC, não a uma sanção processual.
Esta observação tem importância para o caso concreto. Recorde-se que o que está em causa na presente acção é saber se a alegação da nulidade de um acto administrativo que licenciou uma construção é abusiva. Como é claro, para determinar o carácter abusivo ou não abusivo dessa alegação é completamente irrelevante o meio através do qual essa alegação é feita. Dito de outro modo: o que se pode discutir é se a alegação é abusiva em si mesma, independentemente do meio processual ou extraprocessual que é utilizado para a sua produção.
Portanto, o que podia ser discutido nesta acção era o carácter abusivo dessa alegação; a circunstância de essa alegação ser produzida em juízo não lhe retira o eventual carácter abusivo, nem atribui carácter abusivo ao uso dos meios processuais. Não há nenhum abuso dos meios processuais, mas antes um eventual abuso da alegação nos tribunais da nulidade do licenciamento. O que pode ser abusivo é o acto em si mesmo, não o uso do meio através do qual o acto é praticado.
É por isso que, no caso concreto, não tem sentido averiguar se existiu um abuso da acção (no sentido de abuso dos meios processuais), mas apenas analisar se a alegação da nulidade do licenciamento pode ser considerada abusiva. Aliás, a própria RP é bastante explícita em acabar por reconhecer isso mesmo:
"[...] a propositura da ação administrativa em 2010, quando os então AA. se achavam prejudicados, não se desvia do escopo globalmente considerado: a reposição do statu quo ante (ou a indemnização sucedânea que é atribuída quando aquele não pode ser alcançado, máxime quando é demasiado oneroso para o obrigado).
Abuso de ação existiria se a parte, ao propor a ação, pretendesse (direta ou indiretamente) algo que se desviasse excessivamente da finalidade dessa ação e da justa composição do litígio. Não sucede assim quando se verifica que o particular se vê afetado por um ato de licenciamento de uma construção manifestamente volumosa que considera ser ilegal, tendo previamente falhado na tentativa de compor extrajudicialmente os seus interesses."
Noutros termos, recorrendo às próprias palavras da RP:
-- Não faz sentido verificar o abuso da acção, porque a parte nada fez para evitar a justa composição da lide, isto é, não fez nenhum uso anómalo do processo;
-- Faz sentido discutir se houve abuso na alegação da nulidade do licenciamento urbanístico, mas há que concluir pela inexistência de qualquer abuso, porque o particular foi afectado por um acto de licenciamento de uma construção manifestamente volumosa que o mesmo considera violar o PDM.
Portanto, o que a RP acabou por reconhecer foi que a alegação da nulidade do licenciamento não é abusiva.
c) Questão distinta das situações em que se verifica o exercício abusivo de um direito em processo é a de saber qual o âmbito do abuso do processo ou dos meios processuais. Alguma doutrina -- e, segundo parece, também o acórdão da RP -- entende que o abuso do processo é independente da litigância de má fé.
A esta orientação, parece ser preferível aquela que considera que o abuso do processo não tem autonomia perante a litigância de má fé. A pergunta que, neste contexto, cabe fazer é a seguinte: é pensável um abuso do processo que não seja reconduzível ao disposto no art. 542.º, n.º 2, al. d), CPC, isto é, ao uso manifestamente reprovável do processo?
Pode responder-se: sim, porque, ao contrário do abuso do direito, a litigância de má fé pressupõe o dolo ou a negligência grade da parte (art. 542.º, n.º 1, CPC). Cabe, no entanto, perguntar: é imaginável que o uso reprovável do processo não resulte, pelo menos, de uma negligência grave? Em concreto: é pensável que a parte que propõe sucessivas acções, que dirige sucessivas reclamações ou que interpõe sucessivos recursos não actue, pelo menos, com negligência grave? A resposta parece impor-se: ninguém imagina que alguém proponha várias acções, dirija várias reclamações ou interponha vários recursos apenas por mera negligência ou mesmo sem nenhuma negligência, isto é, apenas abusando dos meios processuais.
Esta resposta não deixa, no direito português (e é apenas deste se que se está a tratar), nenhum espaço para o abuso do processo. Dito de outro modo: não há abuso do processo ou dos meios processuais que não seja subsumível à litigância de má fé pelo uso indevido dos meios processuais.
d) Na ordem jurídica alemã, o problema merece uma solução completamente diferente (cf., por último, Leidner, Rechtsmissbrauch im Zivilprozess (2019)). Mas isso sucede porque na ZPO nada há de semelhante ao disposto no art. 542.º CPC.
Esta resposta não deixa, no direito português (e é apenas deste se que se está a tratar), nenhum espaço para o abuso do processo. Dito de outro modo: não há abuso do processo ou dos meios processuais que não seja subsumível à litigância de má fé pelo uso indevido dos meios processuais.
d) Na ordem jurídica alemã, o problema merece uma solução completamente diferente (cf., por último, Leidner, Rechtsmissbrauch im Zivilprozess (2019)). Mas isso sucede porque na ZPO nada há de semelhante ao disposto no art. 542.º CPC.
MTS