"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/02/2019

Jurisprudência 2018 (167)


Compensação; exequente;
embargos de executado; efeito preclusivo*

I. O sumário de RC 11/10/2018 (646/14.0TBVCT-A.G1) é o seguinte:

1 - Traduzindo-se a compensação num direito potestativo extintivo que tanto pode ser exercido por via extrajudicial ou judicial, nada impede que a mesma seja invocada no requerimento de instauração da execução, desde que verificados os requisitos necessários para que possa operar, previstos no art. 847º do C. Civil

2 - O princípio da proporcionalidade no âmbito da penhora, consagrado legalmente no art. 735º, nº 3 do C.P.C., determina que esta não deve exceder os bens necessários para assegurar o pagamento da dívida exequenda e das despesas prováveis da execução.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Conforme resulta da sentença proferida nos autos principais, aí a Ré X – Engenharia e Construção, Lda foi condenada a pagar à aí Autora P. – Pinturas de Construção Civil, Unipessoal, Lda a quantia de 27.976,93€, acrescida de juros de mora a contar de 7/3/2004, sobre a quantia de 27.545,08€, à taxa legal aplicável às operações comerciais, até efetivo pagamento. Nessa mesma decisão, a reconvenção foi julgada parcialmente procedente e a A. condenada a pagar à Ré a quantia de 5.393,56, acrescida de juros contados sobre esta quantia desde 30/04/2004, à taxa legal aplicável às operações comerciais, até integral pagamento.

O art. 847º do C. Civil admite uma forma de extinção das obrigações denominada “Compensação”.

Diz-nos este preceito, no seu nº 1, que “Quando duas pessoas sejam reciprocamente credor e devedor, qualquer delas pode livrar-se da sua obrigação por meio de compensação com a obrigação do seu credor, verificados os seguintes requisitos:

a) Ser o seu crédito exigível judicialmente e não proceder contra ele exceção perentória ou dilatória, de direito material;
 
b) Terem as duas obrigações por objeto coisas fungíveis da mesma espécie e qualidade.

Como referem Pires de Lima e Antunes Varela [
in Código Civil anotado, vol. II, pág. 135], a compensação é uma forma de extinção das obrigações que, no lugar do cumprimento, como sub-rogado dele, o devedor opõe o crédito que tem sobre o credor. Ao mesmo tempo que se exonera da sua dívida, cobrando-se do seu crédito, o compensante realiza o seu crédito libertando-se do seu débito, por uma espécie de ação direta.

A compensação baseia-se na conveniência de evitar pagamentos recíprocos quando o devedor tem, por sua vez, um crédito contra o seu credor. Assim, através da compensação o devedor livra-se da obrigação, por extinção simultânea do crédito equivalente de que disponha contra o seu credor. [...]

No caso, verificam-se os requisitos necessários para que possa operar a compensação de créditos, nomeadamente a exigibilidade dos mesmos, tal como acima se analisou, no entanto, a Embargante/Apelante considera que não houve qualquer declaração por parte da exequente dirigida à executada em que procedesse a declaração da compensação.

Ora, no requerimento de instauração da execução a Exequente refere que pretende fazer operar a compensação entre os dois créditos acima referidos.

Segundo o preceituado no art. 848º, nº 1 do C. Civil, a compensação torna-se efetiva mediante declaração de uma parte à outra.

Conforme refere Menezes Cordeiro [
in Da Compensação no Direito Civil e no Direito Bancário, pág. 129], a declaração pode ser feita em termos comuns, sem dependência de forma.

“A declaração de compensação é um negócio jurídico unilateral, podendo denominar-se negócio potestativo porque, através dela, é exercido o direito potestativo do declarante. Consequentemente, traduzindo-se a compensação num direito potestativo extintivo que tanto pode ser exercido por via extrajudicial ou judicial, por via de ação ou de defesa por exceção, ou por reconvenção, conforme a situação.” [
Ac. R. L. de 7/5/15 [...]].

Deste modo, nada impede que a compensação seja invocada no requerimento de instauração da execução, não obstando à sua invocação o facto de a aqui Executada ter já intentado ação executiva para cobrança do seu crédito para com a ora Exequente, podendo eventualmente tal circunstância, conduzir a uma inutilidade superveniente dessa outra lide.

Conclui-se, pois, como na primeira instância, pela improcedência dos embargos deduzidos pela Embargante X."

*III. [Comentário]. a) Nada há a opor à orientação segundo a qual a compensação pode ser deduzida pelo exequente no requerimento executivo (tal como o pode ser pelo autor na petição inicial). Efectivamente, nada obriga a que a compensação só possa ser invocada pelo réu, depois de o autor ter pedido a condenação desta parte na totalidade do seu crédito. É claro que o autor pode descontar no seu crédito -- se assim se pode dizer -- um crédito que reconhece ao réu.  

Nesta hipótese, o que se pode discutir é se, na eventualidade de a execução (ou de a acção) ser inadmissível e de não chegar a haver uma decisão sobre o crédito do autor, ainda assim se considera operada a compensação. Parece dever entender-se que, de modo a evitar que, mesmo sem estar assegurada a existência do crédito do autor sobre o réu, aquele seja obrigado a reconhecer um crédito do réu sobre ele próprio, a compensação não pode considerar-se operada. 

Dito de outro modo: sem o reconhecimento em juízo do crédito do autor sobre o réu, não pode valer o reconhecimento pelo autor de um crédito do réu sobre ele próprio. Não pode deixar de ser assim, porque a compensação pressupõe a existência de dois créditos recíprocos. Portanto, a alegação da compensação por uma das partes só pode valer para a hipótese de o seu próprio crédito sobre a parte ser igualmente reconhecido em juízo. 

Este problema é bastante discutido na doutrina alemã (cf., pela óptica da excepção de compensação alegada pelo réu, Stein/Jonas/Althammer (2016), § 145 63 ss.; Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozessrecht (2018), 619).

b) O problema que o acórdão levanta é, no entanto, outro. Conforme se refere no próprio acórdão, o crédito compensado constituía objecto de uma outra execução instaurada pelo agora executado contra o agora exequente. A questão que então se coloca é a de saber se pode ser provocada a extinção de um crédito exequendo através de uma compensação que é provocada numa outra execução.

O problema prende-se com a qualificação dos embargos de executado como um meio possível de oposição à execução ou como um meio necessário para essa execução. Conforme se defendeu recentemente (Jurisprudência 2018 (164)), os embargos de executado são o único meio de oposição à execução, pelo que, se houver motivos para extinguir o crédito exequendo por compensação, essa extinção não pode deixar de ser realizada na própria execução, nos termos do disposto nos art. 729.º, al. h), 730.º e 731.º CPC.

Aliás, a situação em análise mostra claramente os inconvenientes da orientação que entende que a não utilização dos embargos não tem nenhum efeito preclusivo. Nesta óptica, ter-se-ia que entender que, uma vez instaurada uma execução, a extinção do crédito exequendo por compensação poderia ser obtida -- como o acórdão aceitou -- fora da execução e mesmo fora de qualquer processo, ou seja, por declaração extraprocessual. 

Apesar da orientação defendida no acórdão, supõe-se que é fácil compreender que não pode ser assim. A extinção de uma execução por um acto de uma das partes só pode ocorrer se esse acto for praticado na própria execução, não numa outra execução.

Nesta óptica, não é defensável afirmar que, uma vez operada a compensação numa segunda execução, a primeira execução se extingue por inutilidade superveniente da lide (cf. art. 277.º, al. e), CPC). É enorme a estranheza que esta solução não pode deixar de levantar, pois que não se compreende como é que se pode justificar uma extinção por inutilidade superveniente com base numa compensação que foi provocada fora da execução, mas que poderia, através dos meios próprios (que são os embargos de executado), ter sido provocada na própria execução. 

Quer dizer: se o executado na primeira execução tem um contracrédito contra o exequente, é nessa execução que ele tem o ónus de provocar a extinção do crédito exequendo, deduzindo os respectivos embargos de executado (art. 729.º, al. h), 730.º e 731.º CPC). O que não pode suceder é a extinção desse crédito exequendo ser provocada pelo executado numa outra execução em que agora tenha a qualidade de exequente.

A estranheza de que não pode deixar de se revestir a referida inutilidade superveniente da primeira execução constitui uma convincente demonstração de que os embargos de executado não podem ser entendidos como um meio facultativo de oposição à execução. Neste sentido, o acórdão acaba por fornecer um importante argumento contra a orientação -- que até talvez seja maioritária na jurisprudência -- de que a dedução de embargos de executado é facultativa e a sua omissão não produz nenhum efeito preclusivo. 

A ser realmente assim, só restam soluções tão artificiais e estranhas como a referida inutilidade superveniente de uma primeira execução por uma compensação do crédito exequendo operada numa segunda execução.

MTS