"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/02/2019

Jurisprudência 2018 (176)


Convenção de arbitragem; 
validade; competência material


1. O sumário de STJ 16/10/2018 (2258/16.4T8CBR.C1.S1) é o seguinte:

I. O efeito negativo da convenção de arbitragem, previsto no art.5º da LAV, só não determina a absolvição do réu da instância, por incompetência absoluta do tribunal, se o juiz puder concluir que a convenção de arbitragem é manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.

II. A existência de uma comunicação escrita, que a Autora enviou à Ré, pela qual pretendia “revogar” ou “resolver” a convenção de arbitragem, alegando “justa causa” e “alteração superveniente das circunstâncias”, não é elemento probatório suficiente para habilitar o juiz a concluir que, inequivocamente, a convenção de arbitragem deixou de produzir os seus efeitos. 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"4.3. A questão central do presente recurso é a de saber se o acórdão em revista fez a correta aplicação da lei ao considerar o tribunal judicial competente para apreciar o litígio, e ao entender que a convenção de arbitragem não se encontrava em vigor à data da prepositura da ação.

4.3.1. Para o conhecimento da questão deve ter-se presente o seguinte:

Do contrato de empreitada, que as partes celebraram em 13.9.2012, destinado à construção de um hotel, constava a seguinte cláusula:

“Para resolução de todos os litígios decorrentes deste contrato fica estipulada a competência do Centro de Arbitragem da AICCOPN – Associação dos Industriais da Construção Civil e Obras Públicas (…)”.

Esta convenção de arbitragem, tendo por objeto litígios eventuais emergentes de uma relação jurídica contratual, assume, no caso concreto, a natureza de cláusula compromissória, como previsto no art.1º, n.3 da LAV.

Em 22.03.2016, a Autora propôs ação no tribunal judicial (para dirimir um conflito respeitante àquele contrato), em vez de acionar a constituição do tribunal arbitral, alegando ter procedido à revogação/resolução da convenção de arbitragem, através de comunicação enviada à contraparte, em 09.11.2015.

O art. 5º da Lei da Arbitragem Voluntária (LAV), Lei n.63/2011, estabelece o “efeito negativo da convenção de arbitragem”, nos seguintes termos:

“1. O tribunal estadual no qual seja proposta acção relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível.”

Na sua contestação, a Ré invocou a exceção dilatória da incompetência do tribunal.

No saneador-sentença, a exceção dilatória de incompetência do tribunal foi julgada procedente (nos termos dos arts.577º e 578º do CPC) e a Ré foi absolvida da instância.

No âmbito do recurso de apelação interposto pela Autora, a segunda instância entendeu que a convenção de arbitragem não se encontrava em vigor, por ter sido validamente resolvida pela Autora, e determinou o prosseguimento dos autos no tribunal judicial.

4.3. 2. Em nosso juízo, o acórdão recorrido não fez a correta aplicação nem do art. 5º, nem do art.4º da LAV.

Assim, apesar de citar jurisprudência no sentido de que só não se verifica o efeito negativo da convenção de arbitragem quando esta for manifestamente ou indubitavelmente nula, ineficaz ou inexequível, o acórdão em revista acaba por decidir em sentido diferente, ou seja, concluiu que a convenção não estava em vigor, apesar de tal não resultar de forma inequívoca dos autos.

O acórdão dá como assente o seguinte:

“- em 9 de Novembro de 2015 a A. procedeu à resolução do compromisso arbitral;

- a presente acção judicial de condenação só deu entrada no Tribunal o quo em 22 de Março de 2016 e que o Réu não impugnou a resolução efectuada,

- não tendo, sequer, nestes autos deduzido pedido reconvencional, no sentido de ser declarado a ilicitude da resolução do compromisso arbitral”.

Tais conclusões não assentam em factualidade provada (porque não se produziu prova nesse sentido), mas sim numa determinada conceção sobre o modo de operar da resolução dos contratos em geral. Entendeu-se naquele acórdão que a comunicação da Autora à contraparte (independentemente de ser fundada ou não) produziu a extinção da convenção de arbitragem, na medida em que a Ré não teria invocado a ilicitude desse modo de extinção da convenção.

Ora a desvinculação por declaração unilateral de um dos contratantes não se encontra prevista na LAV entre os modos de extinção da convenção arbitral. Pelo contrário, o art.4º da LAV estabelece a regra do consenso desvinculativo. Determina esta norma:

“(...) 2 - A convenção de arbitragem pode ser revogada pelas partes, até à prolação da sentença arbitral. 
 
3 - O acordo das partes previsto nos números anteriores deve revestir a forma escrita, observando-se o disposto no artigo 2.º”

Acresce que, naquilo que o seu específico estatuto não prevê, sempre serão convocáveis as normas gerais dos contratos[2] e, no que ao caso concreto interessa, as normas sobre extinção dos contratos. Nesta matéria, surge, em primeiro lugar, o art.406º, n.1 do CC, no qual se consagra o denominado “princípio do contrato”, nos termos do qual os contratos se extinguem por acordo das partes, exceto nas hipóteses legalmente previstas.

4.3.3. Estas breves considerações são suficientes para se perceber, de imediato, que a exceção prevista na parte final do art.5º da LAV não se pode considerar preenchida, dado não ser inequívoco que a convenção de arbitragem tivesse perdido a sua validade ou eficácia em consequência da comunicação da Autora à Ré.

Deste modo, vale no caso concreto a regra do efeito negativo da convenção de arbitragem, a qual se articula com o princípio da competência da competência (art.18º da LAV).

A competência material do tribunal arbitral é, assim, aferida, em primeiro lugar, pelo próprio tribunal arbitral. Estabelece o art.18º, n.1 da LAV que:

“O tribunal arbitral pode decidir sobre a sua própria competência, mesmo que para esse fim seja necessário apreciar a existência, a validade ou a eficácia da convenção de arbitragem ou do contrato em que ela se insira, ou a aplicabilidade da referida convenção”.

Na parte final do n.1 do art. 5º da LAV prevê-se uma exceção a esta regra de determinação da competência do tribunal arbitral quando “manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível” [...].

O juiz deverá chegar a esta conclusão no momento em que tem de decidir se (face à invocação da exceção dilatória) deve ou não absolver o reu da instância. Tratando-se de um momento processual no qual ainda não há produção de prova (nomeadamente testemunhal ou pericial), o juiz irá socorrer-se dos elementos resultantes dos articulados, nomeadamente, da prova documental. E terá de concluir que a nulidade, a ineficácia ou a inexequibilidade da convenção de arbitragem são manifestas, ou seja, que a ausência de força vinculativa da convenção de arbitragem não lhe oferece dúvidas.

Nesta hipótese não faria sentido absolver da instância, pois caso o TA tivesse de se pronunciar sobre a sua própria competência, certamente concluiria que essa competência não existia, por não existir o alicerce do seu funcionamento, ou seja, a força vinculativa da convenção de arbitragem. E as partes acabariam por ter de regressar ao tribunal judicial, depois de terem ampliado os gastos de tempo e de recursos económicos.

O acórdão em revista considerou que a convenção de arbitragem não se encontrava em vigor porque o Autor/Recorrido tinha procedido à sua resolução, pelo que teria aplicação a exceção prevista na parte final do art.5º da LAV.

Todavia, não é esse o entendimento deste supremo tribunal.

A diversidade terminológica usada pela Autora/Recorrida (e acolhida pela decisão em revista), ora “revogação” ora “resolução”, para designar a declaração que a Autora enviou à Ré (em 09.11.2015), e a invocação de termos como “justa causa” e “alteração superveniente das circunstâncias”, permitem, desde logo, sustentar dúvidas quanto ao alcance e ao fundamento daquela comunicação.

Sabendo-se que, para além do (já referido) art. 4º, a LAV não prevê normas que autorizem a extinção da convenção de arbitragem por declaração de vontade unilateral, e que, fora do domínio da arbitragem, as expressões “revogação” e “resolução” são usadas pelo legislador, em diferentes contextos, com diferentes sentidos, e sabendo que “justa causa” e “alteração superveniente das circunstâncias” são conceitos indeterminados, cujo preenchimento depende de produção de prova, tal basta para se afirmar que, em concreto, não se podia ter concluído que a convenção era manifestamente nula, ineficaz ou inexequível.

4.3.4. Por outro lado, diferentemente do que se entendeu no acórdão recorrido, o facto de um tribunal arbitral não proferir a sentença dentro do prazo a que se encontra vinculado (o que põe automaticamente termo ao processo arbitral), não significa que as partes fiquem “impossibilitadas de obter justiça para o seu caso” (como aí se afirmou), pois, como estabelece o art.43º, n.3 da LAV, enquanto a convenção de arbitragem estiver em vigor, pode sempre ser constituído um novo tribunal e ter início uma nova arbitragem. [...]

4.3.6. Por tudo o que se deixou já dito, conclui-se que o acórdão em revista não fez a correta interpretação e aplicação dos artigos 4º, 5º e 18º da LAV. Assim, fica prejudicada, por desnecessária, a apreciação de outros fundamentos do recurso, nomeadamente a existência de eventuais inconstitucionalidades suscitadas pela Recorrente.

5. O entendimento que sustentamos na presente revista é aquele que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem seguido em casos equiparáveis. Vejam-se, por exemplo, os sumários das seguintes decisões:

- Ac. do STJ de 20.03.2018 (relator Henrique Araújo):

“Face ao princípio consagrado no art. 18.º, n.º 1, da LAV, segundo o qual incumbe prioritariamente ao tribunal arbitral pronunciar-se sobre a sua própria competência, apreciando para tal os pressupostos que a condicionam – validade, eficácia e aplicabilidade ao litígio da convenção de arbitragem –, os tribunais judiciais só devem rejeitar a excepção dilatória de preterição de tribunal arbitral, deduzida por uma das partes, determinando o prosseguimento do processo perante a jurisdição estadual, quando seja manifesto e incontroverso que a convenção/cláusula compromissória invocada é inválida, ineficaz ou inexequível ou que o litígio, de forma ostensiva, se não situa no respectivo âmbito de aplicação.
Suscitadas dúvidas sobre o campo de aplicação da convenção de arbitragem, devem as partes ser remetidas para o tribunal arbitral ao qual atribuíram competência para solucionar o litígio” [...].

- Ac. do STJ de 21.06.2016 (relator Fernandes do Vale):

“Ao apreciar a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral, devem os tribunais judiciais actuar com reserva e contenção, de modo a reconhecer ao tribunal arbitral prioridade na apreciação da sua própria competência, apenas lhes cumprindo fixar, de imediato e em primeira linha, a competência dos tribunais estaduais para a composição do litígio que o A. lhes pretende submeter quando, mediante juízo perfunctório, for patente, manifesta e insuscetível de controvérsia séria a nulidade, ineficácia ou inaplicabilidade da convenção de arbitragem invocada.

Manifesta inexistência (nulidade, ineficácia ou inexequibilidade) é aquela que não necessita de mais prova para ser apreciada, afastando, à partida, qualquer alegação de vícios da vontade na celebração do contrato e deixando ao tribunal judicial apenas a consideração dos requisitos externos da convenção, como a forma ou a arbitrabilidade” [...]."
 

[MTS]