Petição inicial; interpretação;
erro de direito
1. O sumário de RL 25/10/2018 (855/16.7T8AMD.L1-2) é o seguinte:
I - Não se realiza audiência prévia quando o processo tiver de findar no despacho saneador pela procedência de exceção dilatória, já debatida nos articulados, nestes se incluindo o articulado ou requerimento apresentado pelo autor, na sequência de convite do tribunal, ao abrigo do princípio do contraditório e da adequação formal, para se pronunciar sobre a matéria da exceção (artigos 3.º e 547.º do CPC).
II - A petição inicial, em especial o pedido, deve ser interpretada, à luz do princípio da prevalência do fundo sobre a forma, procurando-se identificar a pretensão materialmente formulada.
III - Percebendo-se que o autor, arrendatário, pretende, apenas e só, ver reconhecido o seu direito de preferência na compra e venda da fração arrendada, conforme peticionado e fundado na causa de pedir descrita, não se pode considerar inepta a petição inicial apenas porque o pedido não se mostra corretamente formulado, nele se incluindo o de anulação da referida venda e cancelamento do registo de aquisição a favor dos réus compradores.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Começando pela ininteligibilidade do pedido, lembramos que já Alberto dos Reis, no Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, obra que, nesta parte, mantém plena atualidade, explicava em que consistia o pedido ininteligível, dizendo que se tratava de formulação “obscura”: “o autor formula o pedido; mas formula-o em temos tais, que não chega a perceber-se qual é o seu pensamento, qual é o efeito jurídico que se propõe obter (…) O pedido deve ser formulado com toda a precisão, para que a petição possa considerar-se modelar, sob este aspecto; mas se, não obstante a falta de precisão completa ou apesar de haver alguma imprecisão, puder ainda assim saber-se qual é o pedido, o tribunal não deverá julgar inepta a petição. Petição inepta é uma coisa, petição incorrecta é outra. O melhor, nem toda a incorrecção, nem toda a imperfeição do requerimento inicial conduz à ineptidão. O autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter? A petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta”.
II - A petição inicial, em especial o pedido, deve ser interpretada, à luz do princípio da prevalência do fundo sobre a forma, procurando-se identificar a pretensão materialmente formulada.
III - Percebendo-se que o autor, arrendatário, pretende, apenas e só, ver reconhecido o seu direito de preferência na compra e venda da fração arrendada, conforme peticionado e fundado na causa de pedir descrita, não se pode considerar inepta a petição inicial apenas porque o pedido não se mostra corretamente formulado, nele se incluindo o de anulação da referida venda e cancelamento do registo de aquisição a favor dos réus compradores.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Começando pela ininteligibilidade do pedido, lembramos que já Alberto dos Reis, no Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, obra que, nesta parte, mantém plena atualidade, explicava em que consistia o pedido ininteligível, dizendo que se tratava de formulação “obscura”: “o autor formula o pedido; mas formula-o em temos tais, que não chega a perceber-se qual é o seu pensamento, qual é o efeito jurídico que se propõe obter (…) O pedido deve ser formulado com toda a precisão, para que a petição possa considerar-se modelar, sob este aspecto; mas se, não obstante a falta de precisão completa ou apesar de haver alguma imprecisão, puder ainda assim saber-se qual é o pedido, o tribunal não deverá julgar inepta a petição. Petição inepta é uma coisa, petição incorrecta é outra. O melhor, nem toda a incorrecção, nem toda a imperfeição do requerimento inicial conduz à ineptidão. O autor exprimiu o seu pensamento em termos inadequados, serviu-se de linguagem tecnicamente defeituosa, mas deu a conhecer suficientemente qual o efeito jurídico que pretendia obter? A petição será uma peça desajeitada e infeliz, mas não pode qualificar-se de inepta”.
Assim, sucede, desde já adiantamos, com a petição inicial em apreço.
Com efeito, a procedência de ação de preferência (na venda do imóvel arrendado) tem como consequência a substituição do adquirente pelo preferente no contrato de compra e venda e não a anulação deste negócio. Mesmo o cancelamento do registo de aquisição não faz qualquer sentido. A este respeito veja-se a deliberação do Conselho Técnico do Instituto dos Registos e Notariado, no P.º R. P. 170/2008 SJC-CT, relatada por Maria Madalena Rodrigues Teixeira, disponível em www.irn.mj.pt. Logo na nota de rodapé, se faz o devido enquadramento jurídico:
“Como tem sido assinalado por diversa doutrina e jurisprudência, da decisão judicial de procedência obtida em acção de preferência promana um efeito jurídico novo, que consiste na substituição do adquirente pelo preferente na titularidade do direito que o primeiro adquiriu sobre a coisa sujeita à prelação (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume III, 2.ª edição, pág. 383), e é justamente este efeito que pode assumir relevância tabular, concretamente quando se traduza na alteração da estrutura subjectiva de um direito sujeito a registo (art.s 2.º e 3.º, n.º 1, alínea a), do CRP) em regra, nas condições estabelecidas entre as partes iniciais.
A declaração judicial de que o autor é o titular do direito não tem por efeito a constituição de um novo direito ou sequer a aquisição de um direito pré-existente, antes visa significar a substituição do adquirente pelo preferente no negócio jurídico realizado, tudo se passando juridicamente, após a substituição e pelo que respeita à titularidade do direito transmitido, como se o contrato de alienação houvesse sido celebrado com o preferente. O efeito do exercício da preferência não é a aquisição de um ius in re, mas sim a aquisição da qualidade de parte ou sujeito de determinado contrato, por via do qual se adquire a posição real sobre a coisa alienada (Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais, págs. 221/222).
Assim é também no plano tabular, posto que o registo da acção convertido em definitivo não tem os mesmos efeitos de um registo de aquisição, apenas visa publicitar que naquele contrato o sujeito activo foi substituído pelo preferente, pelo que, a partir daí, se o adquirente já tiver obtido a inscrição da alienação no registo, o trato sucessivo há-de desenvolver-se tendo por base a titularidade do direito a favor do preferente ou, na falta de inscrição anterior, o registo de aquisição que vier a ser feito com base no aludido contrato há-de ter como sujeito activo o preferente, e já não aquele que no contrato figure como adquirente.”
Daí ter sido deliberado que: “A decisão judicial transitada em julgado que, reconhecendo o direito de preferência, declare o autor como titular do direito, em substituição do comprador (preferido), e determine o cancelamento do registo a favor do réu (preferido) só está, enquanto tal, sujeita a registo com referência à parte dispositiva de que resulte o efeito jurídico novo - a modificação subjectiva do direito -, porquanto só esta se enquadra na hipótese legal contida no artigo 3.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Registo Predial”.
No caso dos autos, não há dúvida que a Autora/Recorrente intentou uma ação de preferência e pretende ver reconhecido o direito de preferência que se arroga. Está, contudo, a Autora equivocada quanto ao efeito jurídico da ação de preferência. Mas daí não resulta que o pedido seja ininteligível, pois trata-se de erro jurídico, que pode ser corrigido, até porque o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – cf. artigo 5.º, n.º 3, do CPC.
Na verdade, esta situação é muito parecida com a que foi apreciada pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 3/2001, de 23-01-2001: “Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do art.º 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo art.º 664.º do Código de Processo Civil” - D.R. I-A, n.º 34, de 09-02-2001.
Aliás, da leitura da Contestação resulta, sem margem para dúvida, que estes Réus/Recorridos, únicos que contestaram, compreenderam perfeitamente a pretensão da Autora/Recorrente deduzida na petição inicial.
Servem estas considerações para afastar também a ineptidão fundada na suposta contradição entre pedido e causa de pedir (que a decisão recorrida considerou existir) ou decorrente de cumulação de pedidos substancialmente incompatíveis.
É que a Autora não pretendeu efetivamente a anulação do contrato de compra e venda, tanto assim que não invocou nenhum vício da vontade ou de forma de que possa resultar a nulidade ou anulabilidade do contrato.
A Autora limitou-se a pedir, incorretamente, como já vimos, a anulação ou a anulabilidade quando o que pretendia era tão só o efeito jurídico decorrente da procedência da ação de preferência que intentou.
Interpretar de forma diferente a petição inicial é inaceitável.
Percebendo-se que a Autora, arrendatária, pretende, apenas e só, ver reconhecido o seu direito de preferência na compra e venda da fração arrendada, conforme peticionado e fundado na causa de pedir descrita, não se pode considerar inepta a petição inicial apenas porque o pedido não se mostra corretamente formulado, nele se incluindo o de anulação da referida venda e cancelamento do registo de aquisição a favor dos Réus compradores."
[MTS]