"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/10/2019

Jurisprudência 2019 (92)


Interesse em agir;
legitimidade processual*


1. O sumário de RE 2/5/2019 (6452/17.2T8STB.E1) é o seguinte:

O interesse em agir surge da necessidade do demandante obter a protecção de um interesse substancial, pressupondo a lesão desse interesse e a idoneidade da pretensão requerida tendo em vista a sua reintegração, destinando-se a assegurar a utilidade da decisão proferida.

É de reconhecer o interesse em agir como pressuposto processual autónomo inominado referente às partes, cuja falta consubstancia excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.

Tem interesse na instauração de acção de anulação de deliberação tomada pela AG de cooperativa o cooperante que vê ser contra si instaurado procedimento disciplinar em cumprimento dessa mesma deliberação.

A sentença não é nula por excesso de pronúncia se o juiz tinha o poder ou o dever de conhecer
ex officio da questão respectiva, não se verificando igualmente nulidade por pronúncia indevida quando o juiz conhece de questão indispensável à solução do litígio, ainda que não tenha sido suscitada por qualquer das partes.

Tendo sido licitamente conhecida a nulidade da cláusula estatutária, não estava vedado ao juiz declará-las, ainda que tal não tivesse sido pedido, atento o disposto no art.º 286.º do CC.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"ii. Da excepção dilatória da falta de interesse em agir

Sustenta ainda a recorrente que se verifica a excepção da falta de interesse em agir, uma vez que, não sendo a deliberação impugnada susceptível de lesar o autor/apelado, não tem este interesse na presente acção.

Faz-se notar, antes de mais, que tendo os contestantes invocado na contestação apresentada a falta de interesse em agir, fizeram-no por reporte à posição dos RR, arguição que veio a ser reconduzida pela Mm.ª juíza, cremos que bem, à também suscitada excepção da ilegitimidade, e como tal conhecida.

Vem agora a recorrente nas alegações invocar a falta de interesse em agir do autor/apelado, com o fundamento que se deixou referido, argumento cuja consistência cabe agora apreciar.

Por pressupostos processuais costumam designar-se aqueles requisitos de que depende dever o juiz proferir decisão sobre o mérito da causa, concedendo ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante”.

O interesse em agir, “cuja caracterização jurídica e autonomização face aos restantes processuais não é pacífica, tem sido definido como a necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção”. Numa outra idêntica formulação “O interesse em agir consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela jurisdicional”, “é o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, tornando por isso legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece”.

O interesse em agir surge assim da necessidade do demandante obter a protecção de um interesse substancial, pressupondo a lesão desse interesse e a idoneidade da pretensão requerida tendo em vista a sua reintegração. Não se destina a assegurar a eficácia da sentença, mas antes a sua utilidade, nisso se distinguindo da ilegitimidade porquanto, sendo uma das partes ilegítima, a decisão proferida será sempre ineficaz.

Assim sendo, entendemos ser de reconhecer o interesse em agir como pressuposto processual autónomo inominado referente às partes – a não ser exigido, a actividade jurisdicional seria exercida em vão –, cuja falta consubstancia excepção dilatória inominada, de conhecimento oficioso.

E por se tratar de excepção de conhecimento oficioso – cfr. art.º 578.º – não formando caso julgado a afirmação tabelar, em sede de prolação do despacho saneador, de que se não verificam outras excepções dilatórias (o caso julgado formal forma-se apenas em torno das questões concretamente apreciadas, solução expressamente consagrada no n.º 3 do art.º 595), nada obsta ao seu conhecimento nesta fase. Vejamos:

Face a uma deliberação da Assembleia-Geral da Cooperativa Ré no sentido de lhe ser instaurado processo disciplinar - e é este inequivocamente o sentido da deliberação, por mais que a apelante pretenda atribuir-lhe um outro, diverso - na sequência do que, conforme dão conta os autos, foi efectivamente instaurado processo dessa natureza, o autor sofreu uma lesão na sua esfera jurídica, tendo interesse em que tal deliberação, a ser, como defende, nula, não produza efeitos. O autor aspira portanto a que, suprimida a deliberação que fundamentou a abertura do processo, este venha a ser afectado na sua validade - questão sobre a qual, todavia, não nos cabe aqui pronunciar -, manifestando assim um interesse real e atendível na obtenção de uma decisão favorável. E é quanto baste para que lhe seja reconhecido interesse em agir, com a consequente improcedência da excepção agora invocada."

*3. [Comentário] Não se discute que o autor tenha interesse em agir, dado que retira uma vantagem da declaração de nulidade da deliberação da assembleia geral. 

Note-se, no entanto, que o que acórdão verdadeiramente analisa é a questão de saber se o mesmo autor tem legitimidade para solicitar a declaração de nulidade da deliberação. Esta questão é respondida, claramente em termos positivos, pelo disposto no art. 286.º CC: a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado; ora, tendo o autor interesse em obter a declaração de nulidade da deliberação, tem, desde logo, legitimidade processual.

MTS