"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/10/2019

Jurisprudência 2019 (103)


Decisão interlocutória;
apelação; ampliação do âmbito do recurso

 
1. O sumário de STJ 30/4/2019 (425/12.9TBBAO.P1.S1) é o seguinte:

I - Aos casos em que o recorrido pode requerer a ampliação do âmbito do recurso nos termos do art. 636.º do Código de Processo Civil, deve juntar-se ainda o caso do recorrido ter interesse em impugnar uma decisão intercalar da 1ª instância que não admite apelação autónoma.

II - Não tendo o recorrido impugnado tal decisão no recurso de apelação interposto pela contraparte, transitou a mesma em julgado, ainda que dela tenha o recorrido interposto oportunamente recurso, mas que não foi admitido por não comportar apelação autónoma.

III - Ao tribunal de apelação não compete conhecer oficiosamente da questão que foi objeto desse recurso não admitido, da mesma forma que não compete ao Supremo Tribunal de Justiça fazer atuar as consequências da pretensa ilegalidade de tal decisão da 1ª instância.

IV - As presunções judiciais inserem-se no contexto do apuramento da matéria de facto, de sorte que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de sindicância por parte do Supremo Tribunal de Justiça.

V - Só assim não deverá ser - caso em que poderá então o Supremo censurar o uso que foi feito da prova por presunção - se as presunções extraídas violarem norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou arbitrariedade, ou se partirem de factos não provados ou de factos instrumentais não explicitados.

VI - Em sede de impugnação pauliana, para que exista má-fé do devedor e do terceiro não é necessário que com o ato oneroso haja intenção de prejudicar o credor, exigindo-se tão só a consciência do prejuízo que o ato é suscetível de causar aos credores do devedor.

2. No relatório e na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"I -RELATÓRIO

[...] Da respetiva alegação extraem os primeiros Réus (CC e mulher DD), patrocinados pelo mandatário que haviam constituído, as seguintes conclusões:

1. O presente processo converteu-se e desenvolveu-se a partir do insólito despacho proferido, em 1ª Instância, em 19 de abril de 2016, numa farsa judiciária, viabilizando uma tramitação. a todos os títulos inválida, assente em atas intercalares sucessivamente nulos, acumulando flagrantes violações dos mais elementares valores constitucionais que informam, como é próprio de um Estado de Direito, um processo judicial justo, submetido aos princípios da legalidade, do contraditório, da igualdade das partes e no pleno reconhecimento dos direitos de defesa, como corolário da essencialidade do patrocínio forense no interesse da boa administração da justiça, como é constitucionalmente reconhecida.

2. Teve como consequência um julgamento surrealista, moldado aos princípios inquisitoriais, onde os lºs RR foram julgados sem representação e assistência por advogado, com agravo por ser processo onde era e é obrigatória a constituição de advogado, sem que lhe tivessem sido notificados, por regra, os atas processuais, com o seu mandatário excluído da plataforma Citius e sem igualmente ser notificado de qualquer ato processual, do que de tudo protestaram de forma reiterada e veemente, mas sempre em vão.

3. Um processo onde o advogado signatário, com procuração nos autos, contra a sua vontade e da dos seus constituintes, foi despoticamente reduzido ao papel de mero assistente na bancada destinada ao público, sem poder ter qualquer intervenção, mas firme no respeito pela sua deontologia e pelos deveres de lealdade e solidariedade para com os seus constituintes, que não abandonou e jamais abandonará.

4. A tudo isto foi o Tribunal da Relação do Porto insensível, tendo optado pela alteração da matéria de facto dada como provada, assim validando o que é notoriamente inválido e sanando o que não é sanável, omitindo pronúncia sobre a proclamação da nulidade de todo o processado posterior a 19 de abril de 2016, incluindo a audiência de julgamento e a correspondente produção de prova.

5. Não sendo esta questão objeto do recurso de apelação, uma vez que a sentença da 1ª Instância foi inteiramente favorável aos RR, não poderia por estes ser impugnados os atos interlocutórios, por força do regime de proteção especial que lhes confere o disposto no artigo 644º nº 3. do CPC. [...]

HHI – FUNDAMENTAÇÃO

1. Quanto ao recurso dos primeiros Réus

Contrariamente ao que estes Recorrentes pretendem, o acórdão recorrido não cometeu qualquer ilegalidade nem incorreu em qualquer nulidade pelo facto de não ter decidido de forma a censurar o despacho intercalar de 19 de abril de 2016 (despacho que decidiu ter caducado o mandato forense do advogado que patrocinava os ora Recorrentes) e, em consequência, por não ter anulado o processado desde então.

Como é óbvio, o objeto possível do conhecimento desse acórdão eram as questões suscitadas pelos Apelantes (os Autores) no recurso que interpuseram contra a sentença, onde não se compreendia (nem podia compreender) o referido despacho intercalar (que era desfavorável aos primeiros Réus, mas não aos Autores).

Por outro lado, e também contrariamente ao que pretendem os Recorrentes, não havia nessa matéria lugar a qualquer conhecimento oficioso a exercer pelo tribunal ora recorrido, pois que em sítio algum prevê a alei tal oficiosidade. Importa ter presente que o tribunal de recurso não funciona como escrutinador e reparador geral de tudo o que possa ter sido eventualmente mal decidido ou mal praticado no processo, mas apenas controla (sistema de revisão ou reponderação) a legalidade ou regularidade da decisão recorrida. E, no caso, a decisão recorrida era a sentença e não também o referido despacho.

O que tudo significa que o acórdão recorrido não incorreu na ilegalidade e nulidade que os Recorrentes lhe apontam. Pelo contrário, ilegalidade e nulidade ocorreriam, aqui sim, se acaso o acórdão recorrido se tivesse envolvido no conhecimento da matéria da caducidade do mandato, assunto que extravasaria o objeto da apelação (tal como definido por quem recorreu) e que teria como efeito o controlo de uma decisão cujo escrutínio não vinha cometido à sua apreciação.

De outro lado, e passando agora para os poderes apreciatórios deste Supremo, é de dizer que é desprovida de fundamento jurídico a ideia dos Recorrentes (vertida na conclusão 7ª e na parte final da sua peça de recurso) aí onde revelam o propósito de que este Tribunal passe a “repor a ilegalidade” decorrente do referido despacho e anule os atos processuais contaminados pelo decidido no mesmo despacho. É que a este Supremo compete apenas (dentro do objeto do recurso) controlar a legalidade e regularidade processual do acórdão recorrido (e acabamos de ver que na parte aqui em discussão o acórdão não cometeu qualquer ilegalidade nem é nulo por não ter neutralizado o falado despacho da 1ª instância), e não já, suprimindo até um grau de jurisdição, sindicar diretamente uma decisão da 1ª instância (ainda por cima já passada em julgado, como a seguir se mencionará).

Aqui chegados, importa dizer que embora os Recorrentes se manifestem muito indignados contra o acórdão recorrido por não ter escrutinado o despacho de 19 de abril de 2016 e anulado os atos processuais subsequentes, só têm, na realidade, que se queixar de si próprios, isto por não terem levado o tribunal recorrido a proceder a tal escrutínio (com a consequente possibilidade de anulação do processado).

Senão vejamos:

É certo que os ora Recorrentes recorreram do falado despacho de 19 de abril de 2016. Porém, tratava-se de um despacho intercalar, do qual não cabia (claramente) apelação autónoma. E por isso a Relação do Porto não aceitou o recurso. Mas não sem que expressasse (embora sem obrigação de o fazer, ou seja, desnecessariamente) que o despacho sempre poderia ser impugnado, nos termos do n.º 3 do art. 644.º do CPCivil, num possível futuro recurso de apelação.

Os ora Recorrentes saíram vencedores na sentença produzida na 1ª instância, e por isso dizem bem quando dizem que não podiam ter recorrido dessa sentença.

Simplesmente, desde que os Autores recorreram da sentença, podiam os Réus, prevenindo desse modo a possibilidade de procedência da apelação, ter suscitado a ampliação do âmbito do recurso, fazendo compreender nele a impugnação a título subsidiário daquele despacho.

Mas não o fizeram.

Sucede que é também para este tipo de situações que existe o art. 636.º do CPCivil. É verdade que aí se preveem apenas os casos de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, da arguição da nulidade da sentença e da impugnação da decisão da matéria de facto, mas tal norma deve ser aplicada analogicamente à hipótese aqui em presença. Compreende-se que assim deva ser, pois que de outro modo a parte que não pôde recorrer autonomamente ficaria injustamente privada, no caso de decair no recurso interposto pela contraparte, de impugnar uma decisão pregressa que lhe fosse desfavorável, violando-se assim o princípio da igualdade das partes em matéria de recursos. [...]

Deste modo, da mesma forma que os Recorrentes vêm agora (embora a coberto de pretensos, mas inexistentes, poderes processuais do tribunal recorrido e deste Supremo) protestar contra a legalidade do despacho intercalar em causa, também o podiam (deviam) ter feito no âmbito da apelação interposta pelos Autores, levando assim o tribunal ora recorrido a sindicar tal despacho e a retirar da sua eventual revogação as devidas consequências anulatórias do processado. Não o tendo feito, transitou em julgado o despacho, de sorte que o que nele foi decidido se impõe no processo sem a menor possibilidade de discussão (não importa para o caso se o despacho decidiu bem ou mal).

E daqui que a afirmação dos ora Recorrentes de que foram violados as normas e princípios citados na conclusão 22ª não possa ter qualquer procedência. Sem dúvida que, em abstrato, tudo o que aí é reportado teria cabimento, mas importa ter presente que há regras processuais que, em decorrência do poder de modelação do iter processual que a Constituição da República não recusa ao legislador ordinário, têm que ser observadas pelas partes e pelo tribunal. Não tendo os ora Recorrentes feito uso das normas processuais que lhes conferiam o direito de levar à discussão por via de recurso o mérito do despacho em causa, de nada lhes aproveitam, em concreto, essas normas e princípios.

Improcede pois o recurso, não tendo o acórdão recorrido violado qualquer norma ou princípio ao não ter conhecido da matéria do despacho da 1ª instância que declarou a caducidade do mandato do advogado dos primeiros Réus. Da mesma forma que improcede o recurso na parte em que se visa de alguma forma que este Supremo providencie (“como último baluarte da legalidade no quadro hierárquico dos tribunais judiciais”, sic), pela reparação da pretensa ilegalidade do despacho e pela anulação do processado."

[MTS]