"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/10/2019

Jurisprudência 2019 (100)


Standard probatório;
"probabilidade prevalecente"


1. O sumário de RG 19/9/2019 (3018/18.3T8BRG.G1) é o seguinte:

I – O standard de prova (regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira) no processo civil é o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não”;

II – Quando todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como “verdadeira”;

III – Quando assim sucede, não pode deixar de se concluir que perante o estado de incerteza daí decorrente a decisão só pode ser adotada mediante a aplicação da regra do ónus da prova objetivo;

IV – Quando o demandante invoca como causa de pedir da sua pretensão um mútuo ou empréstimo, sobre ele recai não só o ónus da prova da entrega da quantia reclamada como ainda o da assunção pelo demandado da obrigação de restituição;

V – Nesse caso, apresentando-se, quer a versão do demandante, quer a do demandado, com um nível baixo de apoio probatório, aplicando o referido ónus da prova, impõe-se considerar não provado que a entrega do dinheiro tenha ocorrido no âmbito do alegado empréstimo.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Para aferir da razoabilidade da convicção firmada pelo julgador a quo a respeito dos concretos pontos impugnados pelo Recorrente impõe-se ouvir e reponderar a avaliação da prova efetuada pela primeira instância.

Mas antes de passarmos à análise crítica da prova, cremos importante enfatizar que, como por diversas vezes temos vindo a dizer, num processo se pretende apenas alcançar “verdades relativas, contextuais, aproximadas”: apesar de ser necessário que a decisão se funde na melhor aproximação possível à realidade empírica dos factos, é inevitável que se trate em todo o caso de uma aproximação “relativa” (cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in Prova por Presunção no Direito Civil, pág. 136), sendo que o standard de prova (regra de decisão que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira) no processo civil é o da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não” (autor citado, no estudo “O Standard de Prova no Processo Civil e no Processo Penal”, acessível in http://www.trl.mj.pt, pág. 13), standard que, como assinala o referido autor, se consubstancia em duas regras fundamentais:

“(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;

(ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.” (última obra citada, pág. 6).

Em suma, como não se pretende, nem é de todo possível alcançarmos uma verdade absoluta, o que podemos obter é uma verdade provável, caracterizada pelo seu grau de probabilidade, que permita que o litígio seja resolvido de uma forma justa. O enunciado fáctico que será considerado verdadeiro, será aquele que beneficiar de um maior grau de probabilidade.

Não pode, porém, descurar-se a hipótese de acontecer que “todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como “verdadeira” (autor e obra citados, pág. 6).

Assim, como exemplifica o aludido autor: “Se vx recebeu uma confirmação probatória débil (v.g. porque os indícios são vagos, as presunções não são concordantes ou as provas são divergentes e contraditórias), pode simultaneamente ocorrer que: a) que fx haja recebido uma confirmação forte; b) que fx haja recebido também uma confirmação débil ou que c) fx não haja recebido confirmação. Na hipótese a), a escolha racional será escolher fx na medida em que recebeu uma confirmação probatória relativamente maior. No caso b) nenhuma das hipóteses opostas recebeu uma confirmação probatória relativamente maior e no caso c) nenhuma das hipóteses recebeu uma confirmação adequada.”

E, sendo certo que “estas situações de incerteza não permitem que se determine a verdade ou a falsidade do enunciado de facto x”, não se pode deixar de concluir que perante um tal estado de incerteza “a decisão só pode ser adotada mediante a aplicação da regra do ónus da prova objetivo”.

“Assim, se após a valoração da prova, o juiz entender que há factos que permanecem duvidosos e incertos (ocorre uma deficiência probatória), terá de recorrer ao ónus da prova, valorando a prova contra a parte a quem incumbia o respetivo ónus da prova, respondendo não provado ao artigo factual correspondente. Por isso é que as regras do ónus da prova são subsidiárias no sentido de que apenas operam, se necessário, posteriormente à valoração da prova.” (pág.s 8 e 9).

Aplicando estas considerações ao caso em apreço, desde já se dirá que, ouvida a prova gravada – e não apenas os momentos correspondentes aos extratos transcritos pelo Recorrente – e analisados todos os restantes elementos probatórios colhidos nos autos, estamos plenamente de acordo com a conclusão da primeira instância sobre a debilidade da confirmação probatória da versão factual apresentada pelo Autor, tendo particularmente em consideração que, para além de as declarações do mesmo apenas terem sido corroboradas pelo depoimento, quase inteiramente indireto, de uma testemunha – o seu filho, L. M. [...].

Face ao que veio de se dizer, por muitas que sejam as fragilidades da versão do Réu nunca se poderá considerar ter a versão do Autor recebido uma “confirmação adequada”.

Assim sendo, no caso concreto, independentemente do grau de confirmação probatória da versão apresentada pela defesa, forçoso sempre será fazer operar as regras do ónus da prova, o que redunda na imposição da decisão de “não provado” relativamente à versão factual apresentada pelo Autor." 

*3. [Comentário] a) O standard da "probabilidade prevalecente" na apreciação da prova tem vindo a ser referida em alguma jurisprudência (cf. Jurisprudência 2019 (43)). Salvo o devido respeito, sem razão, porque, como se procurou demonstrar noutra ocasião (clicar aqui), aquele standard não é compatível com o direito positivo português.

Em reforço do que então se disse cabe acentuar que o standard da "probabilidade prevalecente" não é sequer compatível com a distribuição do ónus da prova e, portanto, com o objecto da prova. Para que a teoria da "probabilidade prevalecente" possa operar, é necessário que existam provas de enunciados contrários ou contraditórios. Só nestas condições se pode ponderar qual das duas provas pode prevalecer sobre a outra.

Ora, no direito português (e em muitos outros), o ónus da prova é atribuído (apenas) a uma das partes; só depois de cumprido este ónus da prova por uma das partes, cabe à outra parte provar um facto contrário ou contraditório. Por exemplo: se o autor alegar (explícita ou implicitamente) que o contrato celebrado com o réu é válido e se esta parte alegar que o mesmo é inválido, é a este demandado que cabe o ónus da prova dessa invalidade (art. 342.º, n.º 2, CC). Quer dizer: o autor não tem de provar a validade do contrato "em competição" com a prova da invalidade pelo réu, para que, depois disso, o tribunal escolha qual das versões é, em termos de probabilidade, a prevalecente. Não é realmente assim: o autor tem, em juízo, a legítima expectativa de que o tribunal reconheça que o contrato não é inválido, apenas pela circunstância de a prova dessa invalidade realizada pelo demandado não ter sido convincente e sem que lhe seja exigida qualquer prova.

O standard da "probabilidade prevalecente" pressupõe provas de dois enunciados contrários ou contraditórios. Não se exclui que essas provas possam existir em qualquer processo, mas o sistema não as exige e trabalha sem essa dualidade de provas.
 
b) Voltando ao acórdão da RG, o mesmo acaba por demonstrar que o standard da "probabilidade prevalecente", apesar de ser nele referido como bordão linguístico, não é realmente aplicado. Se, afinal, seguindo uma opinião doutrinária citada no acórdão, se conclui neste que, apesar das "fragilidades da versão do Réu[,] nunca se poderá considerar ter a versão do Autor recebido uma «confirmação adequada»" e se, por isso, nenhuma das versões pode ser considerada provada, então fica claro que o standard da "probabilidade prevalecente" não é realmente suficiente para avaliar a prova. Se se seguisse o critério da "probabilidade prevalecente", seria sempre possível determinar qual das duas versões contrárias ou contraditórias seria mais provável que a outra e considerar uma delas provada e a outra não provada. 

Isto mesmo conclui, coerentemente, M. Taruffo (A prova (2014), 297): "A regra da «preponderância relativa» refere-se à hipótese na qual acerca do mesmo fato existam diversas hipóteses, ou seja, diversos enunciados que narram o fato de formas distintas e que tenham recebido alguma confirmação positiva das provas produzidas no processo [...]. Assim, [...] se existem vários enunciados acerca do mesmo facto que receberam confirmação probatória, a regra da preponderância relativa impõe que o juiz escolha como «verdadeiro» o enunciado que recebeu o grau relativamente maior de confirmação com base nas provas disponíveis".

A generalização desta orientação levanta, aliás, o interessante problema de saber o que acontece quando apenas um dos enunciados tenha recebido alguma "confirmação probatória". Será que se deve entender que esse enunciado está necessariamente provado, independentemente do grau dessa confirmação probatória, porque nenhum outro enunciado incompatível com ele obteve no processo qualquer confirmação?  

A ser-se consequente nesta matéria, ter-se-ia que aceitar que, quando apenas uma das versões tenha recebido alguma "confirmação probatória", então ela estaria necessariamente provada. Se, entre dois enunciados contrários ou contraditórios, há que escolher aquele que, em função da prova produzida, seja prevalecente em termos de probabilidade, então, se apenas um dos anunciados tiver recebido alguma "confirmação probatória", esse é necessariamente mais provável do que o outro sobre o qual não foi realizada nenhuma prova. Em suma: a teoria da "probabilidade prevalecente" acaba por operar com um efeito cominatório decorrente da falta de prova: se a parte não opôs à prova realizada pela outra parte a prova de um enunciado contrário ou contraditório, então a prova feita por esta parte (que é a única que existe no processo) tem de prevalecer sobre a falta de prova da outra parte.

A circunstância de assim não poder ser só demonstra a insustentabilidade do standard da "probabilidade prevalecente". O principal equívoco é o de que, segundo este standard, a avaliação da prova não depende tanto do que foi provado quanto a um facto, mas mais do que foi ou não foi provado quanto a um facto contrário ou contraditório. A verdade é que a avaliação de uma prova não é comparativa com a avaliação de outra prova, dado que, desde logo, não se pode excluir que nenhuma das provas seja suficiente para provar os respectivos factos e que, por isso, nenhum dos factos contrários ou contraditórios possa ser considerado provado. Acresce que, como se disse, tudo isto é incompatível com a distribuição do ónus da prova e com o próprio objecto da prova.

c) Verificado que, afinal, o acórdão não aplicou o critério da "probabilidade prevalecente", cabe agora salientar que ainda bem que assim foi, porque, de outro modo, correr-se-ia o risco de considerar provado um facto apenas porque, em função da prova produzida, ele é mais provável do que não provável. Isto não é aceitável. Seria efectivamente inaceitável que, entre a validade e a nulidade do contrato alegado pelo autor, se escolhesse uma em detrimento da outra em função daquela que fosse mais provável que a outra. Aliás, é precisamente porque não é inaceitável que uma acção de investigação da paternidade seja decidida por ser mais provável a paternidade do que a não paternidade que, hoje em dia, se utiliza comummente uma prova científica que fornece a prova da paternidade com uma medida próxima da certeza.

A este propósito tem interesse recordar o célebre acórdão do BGH (BGH 17/2/1970 (III ZR 139/67 (BGHZ 53, 245)), proferido no Caso Anastásia (uma pretensa filha do Czar Nicolau II). Nesse acórdão, o BGH disse, sobre o problema da medida da prova, o seguinte: "Em casos realmente duvidosos, o juiz pode e deve [...] satisfazer-se com um grau de certeza utilizável na vida prática, que impõe que se satisfaçam as dúvidas, sem as excluir totalmente. Isto é, todavia, frequentemente expresso no sentido de que o tribunal se deve dar por satisfeito com uma probabilidade na fronteira da certeza ("[...] mit einer an Sicherheit grenzenden Wahrscheinlichkeit [...]"); isto é incorrecto, se com isso se pretende dizer que se pode dispensar a obtenção de uma convicção própria do juiz sobre a verdade". Quer dizer: o BGH exige uma convicção sobre a verdade, não sobre a "probabilidade prevalecente" da verdade.

Curiosamente, no seu romance Gruppenbild mit Dame (publicado em 1971), H. Böll (1917-1985), antes de relatar a "vida corporal, espiritual e amorosa" de Leni Pfeiffer, tem o cuidado de prevenir o leitor de que "o que é aqui contado pode ser qualificado como exacto com uma probabilidade na fronteira da certeza" ("mit an Sicherheit grenzender Wahrscheinlichkeit"). Böll não é tão exigente como o BGH na medida da prova, mas também não se satisfaz com uma mera "probabilidade prevalecente". Pelos vistos, nem sequer na literatura a "probabilidade prevalecente" chega para construir uma história convincente. 

d) Cabe ainda referir que ninguém, na vida quotidiana, aceitaria pautar-se ou ser tratado pelo standard da "probabilidade prevalecente". O que se pensaria se as previsões meteorológicas fornecessem a informação, quanto ao tempo que vai estar no dia seguinte, de que é mais provável que chova do que faça sol? Alguém consideraria que constitui uma boa opção emprestar dinheiro apenas por se admitir que é mais provável que o mutuário pague a dívida do que não a pague? E o que se diria (e se sentiria) se a nossa reputação social ficasse dependente de ser mais provável termos tido um comportamento reprovável do que termos agido de forma irrepreensível? 

A verdade é que a "probabilidade prevalecente" não se mostra um standard praticável (e praticado) na vida quotidiana. A conclusão impõe-se: seria muito estranho que o que não chega para a vida quotidiana (e nem sequer para a literatura) fosse suficiente para decidir processos jurisdicionais.

MTS