"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/10/2019

Jurisprudência 2019 (109)


Recurso;
prova documental; junção de documentos


1. O sumário de STJ 30/4/2019 (22946/11.0T2SNT-A.L1.S2) é o seguinte:


I. Da leitura articulada dos artigos 651.º, n.º 1, 425.º do CPC decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.

II. No que toca à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.

III. Quando o acesso ao documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus, devendo desconsiderar-se a inacessibilidade que seja imputável à falta de diligência da parte, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.

IV. No que toca à necessidade do documento, os casos admissíveis estão relacionados com a novidade ou imprevisibilidade da decisão, não podendo aceitar-se a junção de documentos quando ela se revele pertinente
ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas nos autos desde o primeiro momento.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"A questão ora em apreço, i.e., a junção dos documentos em sede de alegações de recurso, foi apreciada pelo Douto Tribunal recorrido como questão prévia.

Discorreu sobre esta questão o Tribunal recorrido nos seguintes termos:

Importa considerar que:
 
Ø As alegações de recurso datam de 14.11.2017 [...]

Sobre a junção de documentos em sede de alegações, importa ter em consideração que é jurisprudência constante, a junção de documentos na fase de recurso é admissível a título excepcional (artigos 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º).

Nesse caso, os recorrentes teriam de alegar e provar uma de duas situações:
 
Ø a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso;
 
Ø ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.

A impossibilidade respeita à superveniência do documento (com referência ao momento do julgamento em primeira instância) e pode ser objectivamente superveniente, por ter ocorrido posteriormente ou subjectivamente superveniente, por ter sido conhecido posteriormente ao momento considerado. A justificação acerca do conhecimento terá de radicar em razões atendíveis como o é a circunstância de se ter agido com a diligência adequada à defesa dos interesses.

Quanto ao elemento de novidade introduzido pela decisão (passível de justificar a junção do documento com o recurso pelo impacto na decisão). Excluídos são, pois, os documentos conexos com a matéria decidenda ab initio.

No caso dos autos, importa reter que do acervo documental sobressaem os indicados cheques que os recorrentes aludem ter sido apresentados para cobrança em sede de reclamação de créditos, o que inculcaria uma dupla cobrança dos valores titulados pelos mesmos e com base em dados incompatíveis.

Ora, resulta do exposto que não poderia proceder a requerida junção com base em superveniência dos documentos. Tampouco procede o argumento da novidade esgrimido pelos recorrentes.

Com efeito, os autos em várias fases apontavam já para a reclamação de créditos que só agora no recurso os recorrentes vêm juntar (fls. 99vº e artigo 36º do requerimento inicial).

Portanto, os documentos em causa estão conexos com o cerne do próprio
thema decidendum, nenhuma novidade tendo sido introduzida pela decisão recorrida que justifique a junção de documentos em fase de recurso, à luz dos assinalados preceitos”.

Contra esta decisão alegam, fundamentalmente, os recorrentes que se verificam os pressupostos do artigo 651.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 425.º do CPC, dizendo, mais precisamente:

“FF. Os documentos (…) são, com toda a certeza, supervenientes, pois os Recorrentes só deles tiveram conhecimento após a instauração do Recurso de Revisão, não lhes tendo por isso sido possível a sua junção, agravado ainda pelo facto do processo em Primeira Instância não ter tido qualquer Despacho de Saneamento, ou Audiência de Discussão e Julgamento, o que se previa e espectava nos termos do disposto no artigo 700.2, n.º 2 do C.P.C., tendo os Recorrentes sido surpreendidos com a imediata prolação da Sentença, impedindo-os de juntar quaisquer outros elementos probatórios antes do seu termo;

GG. Na realidade, os Recorrentes tendo acesso ao documento já na pendência do Recurso de Revisão, aguardavam que fosse proferido Despacho Saneador para que ao abrigo no disposto no artigo 423.2, n.s 2 do Código de Processo Civil procederem à junção do documento em causa; [...]."

Aprecie-se os argumentos à luz do regime aplicável.

Determina o artigo 651.º, n.º 1, do CPC que “[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.

Por sua vez, dispõe-se na norma remetida – o artigo 425.º do CPC – que “[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

Da leitura articulada destas normas decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância.

Como se esclarece no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 8.11.2011, Proc. 39/10.8TBMDA.C1 [...], relativamente à primeira hipótese, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou – acrescentar-se-ia – ao seu acesso posterior pelo sujeito. [...]

Ora, o recurso de apelação foi interposto pelos recorrentes em 14.11.2017 (fls. 270). Por seu turno, a relação de créditos reconhecidos e a relação de créditos não reconhecidos (Doc. 5, junto às alegações do recurso de revisão para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa) tem a data de registo de 5.07.2011 (fls. 99b e s.), logo, a reclamação de créditos é necessariamente anterior. De imediato se exclui a superveniência objectiva dos documentos, exclusão esta que é antecipadamente reconhecida pelos recorrentes.

Alegam os recorrentes, em contrapartida, existir superveniência subjectiva, que se deveria, primeiro, ao facto de só terem tido conhecimento do processo de insolvência após o óbito do réu (26.02.2016) e uma vez interposto o recurso de revisão, e, segundo, ao facto de só terem tido acesso ao documento na pendência deste recurso, não lhes tendo, além disso, sido possível apresentá-lo, então, porque a audiência de discussão e julgamento não se realizou [...] (conclusões R, S, FF, GG, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR, FFF, GGG, etc.).

Diga-se, desde já, que as alegações dos recorrentes são contraditórias, não se podendo aceitar que aleguem que a reclamação de créditos só veio ao seu conhecimento após a interposição do recurso de revisão (por exemplo, conclusão FF) quando nas respetivas alegações se referem, abundantemente, a ela e juntam “requerimento” dirigido à administradora da insolvência para a sua obtenção (Doc. 6).

Quanto ao argumento da falta de acesso anterior ao documento, tal como sucede quanto ao desconhecimento anterior, não é qualquer situação deste tipo que surte o efeito previsto na norma do artigo 425.º do CPC.

Conforme adverte Rui Pinto, “[n]o tocante à superveniência subjectiva não basta invocar que só se teve conhecimento da existência do documento depois do encerramento da discussão em 1.º instância, já que isso abria de par em par a porta a todas as incúrias e imprevidências das partas: a parte deve alegar – e provar – a impossibilidade da sua junção naquele momento e, portanto, que o desconhecimento da existência do documento não deriva de culpa sua. Realmente, a superveniência subjectiva pressupõe o desconhecimento não culposo da existência do documento” [Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, cit., p. 314].
O desconhecimento ou a falta de acesso anterior ao documento deve, em suma, assentar em razões atendíveis, não podendo ser imputável à falta de diligência dos sujeitos, sob pena de se desvirtuar a relação entre a regra e a excepção ditada, nesta matéria, pelo legislador.

Ora, como se viu, os recorrentes juntaram, na data da interposição de recurso de revisão para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, um “requerimento” dirigido à administradora da insolvência para a obtenção da referida reclamação de créditos (Doc. 6, fls. 93b). Neste “requerimento”, que mais não é do que uma mensagem de correio electrónico, apenas é absolutamente visível, no que toca à data de envio, o respectivo ano (2016). Isto é, porém, quanto basta para se afirmar que o argumento da superveniência subjectiva não colhe.

Sabendo – e não podendo deixar de saber – que aquela reclamação de créditos era um documento nuclear ou decisivo para fundamentar a revisão da sentença deveriam os recorrentes ter diligenciado a sua obtenção de forma mais firme ou insistente e, seguramente, menos displicente do que aquela que tal “requerimento” corporiza. Só assim ele poderia ter sido apreciado e, em conjugação com os restantes documentos juntos, em particular a relação de créditos reconhecidos e a relação de créditos não reconhecidos, porventura comprovar aquilo que os recorrentes alegavam (que os valores cujo pagamento o autor peticionou na acção contra o réu eram os mesmos que os valores reclamados, a título diverso, no processo de insolvência da sociedade). Quer dizer: quando a obtenção do documento está ao alcance da parte, a instrução do processo com a sua apresentação é um ónus [,,,].

Afastada a hipótese de superveniência, resta ver se se verifica a hipótese de necessidade revelada em resultado do julgamento proferido na 1.ª instância, como também alegam os recorrentes.

Os casos fundados no argumento da necessidade admissíveis estão relacionados com a novidade ou a imprevisibilidade da decisão, com a eventualidade de a decisão ser “de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo” [Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2018 (5.ª edição), p. 242].
Sobre esta hipótese alertam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, comentando a norma do artigo 651.º, n.º 1, do CPC, que “[a] jurisprudência tem entendido que a junção de documentos às alegações de recurso, de um documento potencialmente útil á causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”[ Cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I - Parte Geral e Processo de declaração – Artigos 1.º a 702.º, Coimbra, Almedina, 2018, p. 786]. E continuam: “[n]o que tange à parte final do n.º 1, tem-se entendido que a junção de documentos às alegações só poderá ter lugar se a decisão da 1.ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam”.

Resulta daqui que não é admissível a junção de documentos quando tal junção se revele pertinente ab initio, por tais documentos se relacionarem de forma directa e ostensiva com a questão ou as questões suscitadas. É, justamente, este o caso da reclamação de créditos e da documentação acessória que os recorrentes pretenderam juntar no recurso de apelação.

Como decorre dos autos, grande parte do recurso é alicerçada na alegação de que os valores cujo pagamento o autor peticionou na acção contra o réu são os mesmos que os valores reclamados, a título diverso, no processo de insolvência da sociedade (artigos 33.º, 34-º, 35.º, 36.º, 39.º, 58.º e conclusões AB, AC, AD, AH, AK, etc., das alegações de recurso de revisão para o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa e conclusões Y, YY, EEE, AAAAA, JJJJJ, etc., das alegações do recurso de revista). Sabiam, portanto, os recorrentes, desde o início, que a reclamação de créditos era um elemento fundamental para provar um facto central ao seu pedido, susceptível, portanto, de ponderar na decisão, não se compreendendo como podem alegar o contrário.

Por outras palavras e sinteticamente: o documento relaciona-se com factos que já antes da decisão da 1.ª instância os recorrentes tinham consciência de que estavam sujeitos a prova; não podem agora os recorrentes alegar que aquela decisão criou, pela primeira vez, a necessidade da sua junção, meramente porque, entre outros argumentos, a decisão se baseou no facto de aquele meio probatório não ter sido apresentado. Deve, por conseguinte, também rejeitar-se a junção do documento a pretexto da surpresa quanto ao resultado."
[MTS]