"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/10/2019

Jurisprudência 2019 (96)


Presunção registal; aquisição originária;
processo executivo; acção de reivindicação

1. O sumário de RP 11/4/2019 (4018/17.6T8VFR.P1) é o seguinte:

I – O registo não tem natureza constitutiva, no nosso ordenamento jurídico, e a presunção que do registo deriva (artº 7º CRegPred) cede perante uma comprovada usucapião, a qual, sendo um meio de aquisição originária, nos termos do artº 1287º CCiv, conduz à aquisição do direito.

II – Tendo o Autor colocado a procedência da sua pretensão no âmbito da aquisição originária, e tendo a Ré contestante impugnado a mesma invocada pretensão, para além de igualmente invocar a aquisição originária do prédio a seu favor (dela Ré), a matéria dos autos deverá resolver-se no âmbito da aquisição originária; apenas se não puder ser resolvida neste âmbito se poderá lançar mão das presunções registrais.

III - Se o terceiro deixou passar o prazo legal de dedução dos embargos, nem por isso fica desarmado, pois pode sempre fazer valer o seu direito de propriedade propondo acção de reivindicação dos bens penhorados e/ou vendidos.

IV – Não se trata porém, para o proprietário ofendido, de pedir qualquer espécie de anulação do acto da venda, pois que, para ele, tal acto não passa de uma “res inter alios acta”, limitando-se o proprietário a reivindicar o que é seu, como em qualquer caso em que a coisa se encontre em poder de terceiro, designadamente por via de aquisição
a non domino.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] quanto à invocada dependência da presente acção de reivindicação face às normas dos artºs 839º nº3 e 840º CPCiv, podemos já afirmar, com segurança, que não assiste razão à Ré/Apelante.

A venda judicial vem a constituir uma venda de direito público, mas subordinada às regras das vendas em direito privado – Prof. Vaz Serra, Bol.73/308.

É-lhe assim aplicável, por inteiro, o disposto nos artºs 408º nº1 CCiv e 879º al.a) CCiv – aqui, quanto à compra e venda, enquanto demonstrativos de que a transferência de direitos reais se dá por efeito do próprio contrato.

A mesma conclusão se pode extrair do disposto no artº 839º nº1 al.d) CPCiv, no sentido de que a venda fica sem efeito se a coisa não pertencia ao executado e foi reivindicada pelo dono.

Como é sabido, é nula a venda de coisa alheia, embora essa nulidade se relacione, mais propriamente, com relações comprador-vendedor, posto que, relativamente ao verdadeiro proprietário da coisa, a venda assume tão só um carácter de ineficácia em sentido estrito, o que tem como consequência que, relativamente a ele, verdadeiro dono, o que existe é, apenas, um eventual litígio em termos de direito real, podendo ele reivindicar sempre a coisa de terceiro, isto enquanto se não opere a usucapião a favor desse terceiro – cf. Ac.S.T.J. 16/11/88 Bol.381/651, relatado pelo Consº Fernandes Fugas.

É claro que a apreensão de bens e a venda em processo de execução pode importar a ofensa da posse ou a violação do direito de propriedade de terceiros.

Neste caso, consoante as hipóteses, pode haver lugar aos procedimentos incidentais de oposição à penhora (a cargo do Executado, em casos mais restritos), e ainda de embargos de terceiro (meio simples e directo de impugnação do acto da penhora – artºs 342ºss. CPCiv, que tem para o embargante a vantagem de suspender os termos da execução, quanto aos bens cuja titularidade ou posse sejam questionados – artº 347º CPCiv).

Mas se o terceiro deixou, p. e., passar o prazo legal dedução dos embargos, nem por isso fica desarmado, pois pode sempre fazer valer o seu direito de propriedade propondo acção de reivindicação dos bens penhorados e/ou vendidos (assim, Prof. J. Alberto dos Reis, Processo de Execução, II/453).

Nesta obra, observa-se depois o seguinte: “Efectuou-se a venda. Posteriormente foi julgada procedente acção de reivindicação. É claro que a venda fica sem efeito; o comprador tem que restituir ao proprietário os bens reivindicados (…). Quando a acção tenha sido proposta antes da venda, contra o Exequente ou o Executado, a eficácia da venda fica naturalmente dependente da sorte da acção e o comprador só se tornará proprietário se vier a apurar-se que o direito de propriedade pertencia ao executado, isto é, se a acção for julgada improcedente. No caso de a acção proceder, o comprador tem de largar os bens, porque, demonstrado o direito de propriedade do reivindicante, é claro que nenhum direito foi transmitido ao comprador (…)”.

Não se trata porém, para o proprietário ofendido, de pedir qualquer espécie de anulação do acto da venda, pois que, para ele, tal acto não passa de uma “res inter alios acta nec prodest nec nocet”, limitando-se o proprietário a reivindicar o que é seu, como em qualquer caso em que a coisa se encontre em poder de terceiro, designadamente por via de aquisição a non domino (assim, Prof. Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 1973, pg. 251).

A reivindicação pode, desta forma, ser anterior ou ser posterior ao acto da venda executiva.
Já o protesto pela reivindicação da coisa vendida (artº 840º CPCiv) configura uma verdadeira providência cautelar, que não dispensa seja intentada a acção respectiva.

Por sua vez, do disposto no regime legal dos artºs 840º e 841º CPCiv, resulta que, em caso de procedência da acção de reivindicação, o comprador tem direito de retenção sobre a coisa comprada, enquanto lhe não for restituído o preço.

O que se não pode dizer é que a reivindicação de um bem penhorado ou o pedido de anulação de uma venda judicial com fundamento em reivindicação intentada ou a intentar tenha qualquer efeito sobre a execução – nem prejudicando a venda agendada, e muito menos a venda realizada, nem tendo qualquer efeito suspensivo sobre a execução.

Nem se pode dizer que a reivindicação de um bem, como efectuada nos presentes autos, nos quais ao pedido típico de reconhecimento da propriedade se pede a declaração de nulidade da venda judicial invocadamente a non domino, se encontre dependente dos procedimentos e prazos dos artºs 839º nº3 e 840º CPCiv."

[MTS]