"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/10/2019

Jurisprudência 2019 (89)

 
Assembleia de condóminos; acta;
pena pecuniária; título executivo

 
1. O sumário de RL 30/4/2019 (286/18.4T8SNT.L1-7) é o seguinte:
 
I. A assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das suas deliberações, nomeadamente, penas pecuniárias a aplicar ao condómino em mora no pagamento das quotas de condomínio.

II. A ata da reunião da assembleia de condóminos que deliberou a aplicação e o montante dessas penas constitui título executivo contra o proprietário em mora.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Nos termos do disposto no art. 1434 do CC (n.º 1, 2.ª parte), a assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das disposições do código, das deliberações da assembleia ou das decisões do administrador.
 
O n.º 2 do mesmo artigo estabelece um teto para aquelas sanções: o montante das penas aplicáveis em cada ano nunca excederá a quarta parte do rendimento coletável anual da fração do infrator.
 
Ao abrigo destas disposições, o condomínio exequente incluiu no seu regulamento as regras dos artigos 7.º e 22 [...], das quais resulta que a mora no cumprimento de certas obrigações dos condóminos, nomeadamente a mora no pagamento das quotizações dos condóminos, dará lugar a uma multa correspondente a 10% do somatório das importâncias em dívida e das multas já vencidas.
 
Na situação dos autos, as normas sancionatórias constam, como referimos, do regulamento do condomínio aprovado em assembleia de condóminos – e não de deliberação ad hoc da assembleia, que a norma também parece admitir.
 
Estas sanções, como lembra Rui Pinto Duarte, afastam-se da cláusula penal, prevista e regulada nos artigos 810 a 812 do CC, por não dependerem do acordo de todos os que as podem sofrer, e afastam-se da sanção pecuniária compulsória, prevista no art. 829-A do mesmo código, por não dependerem de decisão jurisdicional – Anotação ao art. 1434, in Código Civil Anotado, II, Ana Prata (coord.), Coimbra: Almedina, 2017, p. 289.
 
O condomínio exequente ofereceu à execução as atas das assembleias de condóminos que aprovaram o regulamento do condomínio e a alteração ao mesmo, que contemplam as penas pecuniárias aludidas. O condomínio completou o requerimento executivo com a alegação referente à mora do executado e juntou, ainda, ata da assembleia de condóminos de onde consta o valor da dívida do executado e a concessão à administração de autorização e poderes para atuar judicialmente, com vista à respetiva cobrança.
 
O tribunal a quo entendeu que aquelas primeiras atas não constituem título executivo para a cobrança das penas pecuniárias (serviriam apenas de título para a cobrança das quotas mensais em dívida), e indeferiu liminarmente o requerimento executivo naquela parte. É desse indeferimento liminar parcial que vem interposto o recurso.
 
Nos termos do disposto no n.º 1 do art. 6.º do DL 268/94, de 25 de outubro, epigrafado «Dívidas por encargos de condomínio», «a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.».
 
A solução do litígio passa, portanto, por saber se o novo título executivo previsto no artigo acabado de transcrever abrange as penas pecuniárias que um condómino deva ao condomínio, ou seja, há que descortinar se o trecho da norma que refere o «montante das contribuições devidas ao condomínio» abrange a pena pecuniária referente ao valor em dívida, deliberada em assembleia de condóminos.
 
Percebê-lo passa exclusivamente pela interpretação da norma, o que faremos socorrendo-nos dos parâmetros interpretativos das normas fornecidos pelo art. 9.º do CC. [...]
 
Antes do mais há que ler o texto do n.º 1 do art. 6.º do DL 268/94 no seu conjunto, pois o sentido de cada trecho desse número tem de ser avaliado em confronto com os demais, descobrindo-se dessa forma a coerência de cada parte e do todo.
 
Separemos os vários elementos da norma:
 
i. ata da reunião da assembleia de condóminos que tenha deliberado
 
ii. o montante das contribuições devidas ao condomínio ou
 
iii. quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio,
 
iv. constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
 
O facto de o legislador ter distinguido «contribuições devidas ao condomínio» e «despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio» parece-nos evidenciar que não quis deixar de fora qualquer tipo de valor que os condóminos ou alguns deles devam entregar ao acervo comum.
 
A interpretação textual da norma indica-nos que «as contribuições devidas ao condomínio» são todas as que ao condomínio forem devidas, com fundamento em qualquer norma válida, independentemente da fonte desta. O brocardo romano «ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus», acolhido no art. 9.º do CC, pela prevalência que este dá ao elemento literal da interpretação, tem aqui pleno sentido.
 
Outros cânones hermenêuticos indicam-nos o mesmo caminho. O objetivo do regime da propriedade horizontal delineado pelo DL 268/94, de 25 de outubro, está expresso no seu preâmbulo: «as regras aqui consagradas estatuem ou sobre matérias estranhas à natureza de um diploma como o Código Civil ou com carácter regulamentar, e têm o objetivo de procurar soluções que tornem mais eficaz o regime da propriedade horizontal, facilitando simultaneamente o decorrer das relações entre os condóminos e terceiros». Nos termos do seu art. 1.º, são obrigatoriamente lavradas atas das assembleias de condóminos e as deliberações nelas consignadas são vinculativas tanto para os condóminos como para os terceiros titulares de direitos relativos às frações.
 
Cumprindo o anunciado objetivo, o art. 6.º do diploma acrescenta ao universo dos títulos executivos a ata da assembleia de condóminos que tenha deliberado contribuições que cada condómino deva entregar ao condomínio, obviando a que o condomínio tenha de percorrer uma ação declarativa cada vez que um condómino entra em mora no pagamento dos devidos valores (o n.º 2 do artigo expressa que o administrador instaurará a ação judicial, executiva, destinada a cobrar as quantias referidas no número anterior). Deixar de fora parte das prestações devidas seria inviabilizar a eficácia expressamente intencionada.
 
É concebível que o legislador tenha querido que a ata valha como título executivo para quotizações fixas de condomínio (já de si, em termos absolutos, de baixo valor), mas não tenha querido conferir-lhe essa força para cobrança de penas que importam em pequena percentagem do valor das contribuições em dívida? Sendo que a imposição de penas pecuniárias é permitida por lei (art. 1434 do CC) e tem exatamente o mesmo fim de eficácia na gestão do condomínio que o art. 6.º do DL 268/94 pretende alcançar com a instituição de um novo título executivo. Terá o legislador querido sujeitar o condomínio a uma ação declarativa para ulteriormente poder cobrar valores tão baixos? Não o cremos, até porque isso corresponderia a tornar essas penalizações letra morta, pois os custos da sua cobrança (a incluírem uma ação declarativa) desencorajariam o esforço.
 
A interpretação do art. 6.º do DL 268/94 não tem sido unânime.
 
No sentido da posição que aqui defendemos e que justifica a decisão a proferir, podem ler-se, por ordem cronológica crescente: Ac. TRL de 08/07/2007, proc. 9276/2007-7; Ac. TRL de 20/02/2014, proc. 8801/09.8TBCSC-A.L1-2; Ac. TRG de 22/10/2015, proc. 1538/12.2TBBRG-A.G1; Ac. TRL de 07/04/2016, proc. 2816/12.6TBCSC-A.L1-2 (opinião expressa a meio do texto); Ac. TRP de 17/05/2016, proc. 2059/14.4TBGDM-A.P1; Ac. TRG de 02/03/2017, proc. 2154/16.5T8VCT-A.G1; Ac. TRL de 15/02/2017, proc. 9207/2006-2 (parte final do texto, antes da decisão); Ac. TRG de 30/11/2017, proc. 2159/168VCT-A.G1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
 
No sentido inverso – de que a expressão «contribuições devidas ao condomínio», constante do art. 6.º do DL 268/94, não abrange «penas pecuniárias devidas ao condomínio» –, podem ler-se, também por ordem cronológica crescente: Ac. TRG de 08/01/2013, 8630/08.6TBBRG-A.G1; proc. Ac. TRC de 21/03/2013, CJ XXXVIII, II, 19; Ac. TRC de 04/06/2013, proc. 607/12.3TBFIG-A.C1; Ac. TRL. de 01/07/2014, proc. 837/12.8YYLSB-A.L1-1; Ac. TRP de 16/12/2015, proc. 2812/13.6TBVNG-B.P1; Ac. TRL de 02/06/2016, proc. 16871-11.2T2SNT-8; Ac. TRC de 07/02/2017, proc. 454/15.0T8CVL.!.C1; Ac. TRP de 07/05/2018, proc. 9990/17.3T8PRT-B.P1; Ac. TRL de 11/12/2018, proc. 2636/14.3T8OER-A.L1-6; Ac. TRL de 22/01/2019, proc. 3450/11.3TBVFX.L1-7, publicados em www.dgsi.pt, na falta de outra indicação.

Na doutrina, no sentido da leitura restritiva da expressão «contribuições devidas ao condomínio», encontramos a seguinte passagem de Rui Pinto, Novos estudos de Processo Civil, Petrony, 2017, p. 192: «esta ata não constitui título executivo de quaisquer outras obrigações pecuniárias do condómino, como o pagamento das penas pecuniárias fixadas pela assembleia de condomínio, nos termos do art. 1434.º CC. Esta última conclusão decorre do princípio da taxatividade e literalidade das normas que prevêem títulos executivos e a que voltaremos adiante: as penalidades não são nem “contribuições”, nem “despesas”, mas obrigações sucedâneas por incumprimento.».

O argumento do Autor centra-se no entendimento segundo o qual na palavra «contribuições» não cabem «penalidades». O invocado princípio da taxatividade dos títulos executivos não afasta a posição por nós defendida, pois o que dizemos é que a norma do art. 6.º prevê que a ata da reunião da assembleia de condóminos que tenha deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio, incluindo nestas as penalidades a aplicar ao condómino inadimplente ao abrigo do art. 1434 do CC, constitui título executivo contra o proprietário em mora.
 
Encontramos, ainda, referência ao tema, em anotação de Rui Pinto Duarte ao art. 1424, no citado Código Civil Anotado, II, coord. de Ana Prata, p. 261: «A solução da terceira interrogação parece ser a de que as atas não valerão como títulos executivos a não ser quanto ao referido no art. 6.º do Dec.-Lei 268/94, de 25 de outubro. V., por ex., ac. do TRC de 29-3-2013 (in CJ, ano XXXVIII, tomo II, 2013, pp. 19 e ss.)».
 
No sentido que propomos e na linha da nossa argumentação, Sandra Passinhas no seu A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.ª ed., Almedina, 2002, pp. 274-275: «A ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das penas constitui título executivo contra o proprietário, enquadra-se na expressão “contribuições devidas ao condomínio”, e cai no campo de aplicação do artigo 6.º do DL 268/94. Embora, rigorosamente, a pena pecuniária não seja uma “contribuição devida ao condomínio”, esta é a solução mais conforme à vontade do legislador. Não faria sentido que a ata da reunião da assembleia que tivesse deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio servisse de título executivo contra o condómino relapso, e a mesma ata não servisse de título executivo para as penas pecuniárias, aplicadas normalmente para punir os condóminos inadimplentes».
 
Mais recentemente, a mesma Autora voltou a expressar a mesma posição, ainda que a propósito do desrespeito de uma deliberação da assembleia diferente da que estabelece o valor das quotas de condomínio: «Se a assembleia proíbe a circulação de animais à solta nas partes comuns de um edifício, e um dos condóminos pura e simplesmente não respeita a proibição, quid iuris? Nos termos do artigo 1434.º, a assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das suas deliberações e das decisões do administrador, sendo que a ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das penas constitui título executivo contra o proprietário, nos termos do artigo 6.º, do DL 268/94, de 25 de Outubro» – Sandra Passinhas, «Os animais e o regime português da propriedade horizontal», Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Vol. II (2006), disponível em https://portal.oa.pt/comunicacao/publicacoes/revista/ano-2006/ano-66-vol-ii-set-2006/.
 
Compreendemos que a questão suscitada e decidida neste recurso não tenha uma resposta unânime, o que é causado por uma menos clara redação conferida ao art. 6.º do DL 268/94, que uma futura intervenção legislativa poderá suprir.
 
Porquanto expusemos, entendemos que, na melhor interpretação, no âmbito da ata, enquanto título executivo, cabem não apenas as despesas extraordinárias necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício e as quotas fixas destinadas à satisfação das despesas comuns ordinárias (limpezas, manutenção de equipamentos, contribuições para o fundo comum de reserva, pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio, etc.), como todas as contribuições devidas ao condomínio, incluindo as penas pecuniárias fixadas ao abrigo do disposto no art. 1434 do Código Civil."
 
[MTS]