Providências cautelares;
periculum in mora
1. O sumário de RP 11/4/2019 (257/18.0T8AMR.P1) é o seguinte:
I – O fundado receio ou “periculum in mora” cuja verificação é necessária para a procedência do procedimento cautelar comum tem de resultar da alegação de factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
II – No caso, a requerente, partindo do facto de lhe ter sido pedido o pagamento de certa garantia autónoma e de ter recusado tal pagamento, após o que recebeu uma carta da requerida a conceder-lhe prazo para pagar, sob pena de instaurar a devida acção para obter o resgate de tal caução, diz temer a instauração de uma acção executiva, mais conjectura ainda que nesse processo será efectuada penhora antes da sua citação, e que essa penhora versará sobre (todos) os seus equipamentos informáticos e, com remoção dos mesmos, o que terá “efeitos catastróficos”, nomeadamente paralisará a sua actividade bancária.
III – Tais alegações assentam em cenários hipotéticos, simples conjecturas alarmistas e futuristas, criados pela imaginação da requerente, sem qualquer fundamento objectivo razoavelmente configurável, pelo que razoavelmente não podem preencher o requisito do “periculum in mora”.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Como é sabido, decorre dos art.ºs 362.º e segs. do C.P.Civil, que são pressupostos/requisitos do decretamento do procedimento cautelar comum, de verificação cumulativa:
1- que muito provavelmente exista, ou “summaria cognitio”, o direito tido por ameaçado, ou “fummus bonus juris” (art.ºs 362.º n.º1 e 368.º n.º 1);
2 - que haja fundado receio de que outrem, antes de proferida a decisão de mérito na acção principal, cause lesão grave e dificilmente reparável ao direito do requerente (art.º s 362.º n.º 1 e 368.º n.º1);
3 - que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas (art.º 362.º n.º 3);
4 - que a providência seja adequada a remover o “periculum in mora” concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado (art.º 362.º n.º 1);
5 - e que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar (art.º 368.º n.º 2).
No que respeita à probabilidade da existência do direito invocado, o julgador poderá fundar-se num simples juízo de verosimilhança, isto é, com uma prova sumária; outro tanto não acontece com a apreciação dos factos integradores do “periculum in mora”, em que se deve usar um critério mais rigoroso. Por outras palavras, em relação aos factos integradores do “periculum in mora”, o requerente tem que provar – não bastando um mero juízo de verosimilhança – os danos que visa acautelar, sendo certo, que se exige a prova da gravidade e da difícil reparação das consequências danosas da manutenção do “status quo”, isto como vista a evitar a admissão indiscriminada de protecção provisória, eventualmente com efeitos antecipatórios, capaz de fazer alcançar resultados inacessíveis ou dificilmente atingíveis num processo judicial pautado pelas garantias do contraditório.
Como decorre da própria letra da lei, para se verificar o requisito do “periculum in mora” não basta um qualquer receio: tem de ser um receio fundado, isto é, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
O que significa que apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento cautelar comum, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.
E podendo, como expressamente se consignou no texto da lei, ser a providência requerida do tipo conservatório, ou do tipo antecipatório.
As providências do primeiro tipo visam acautelar o efeito útil da acção principal, assegurando a permanência da situação existente quando se despoletou o litígio ou aquando da verificação da situação de periculum in mora.
Com as segundas, o tribunal, atenta a urgência da situação carecida de tutela, antecipa a realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal e que será objecto de execução. [...]
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Pretende a requerente/apelante pela via do presente procedimento cautelar impedir que a requerida/apelada accione em termos executivos a garantia bancária prestada por ela a favor da Junta de Freguesia G…, por considerar que o seu accionamento constitui abuso de direito, porque foi por via de uma transacção judicial feita entre a massa insolvente da sociedade garantida e a requerida/apelada, que para esta nasceu a obrigação de proceder ao pagamento de valor relacionado com os trabalhos executados, àquela massa insolvente.
Como bem se refere também na decisão recorrida, embora a pretexto de outra questão, a garantia bancária n.º …/…. que a requerida pretende accionar contra a requerente/apelante é, sem margem para dúvidas, uma garantia autónoma “on first demand”, de tipo independente, o que resulta, além do mais, do seu seguinte segmento textual: ”A B1… obriga-se a pagar aquela quantia à primeira solicitação do Junta de Freguesia G…, sem que este tenha de justificar o pedido e sem que o primeiro possa invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com o contrato atrás identificado ou com o cumprimento das obrigações que a D…, SA assumiu com a celebração do respectivo contrato”.
Segundo Galvão Telles, in “Revista de Direito e Economia”, ano VIII, pág. 283, a garantia autónoma é o contrato pelo qual o banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato – base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse mesmo contrato.
Entre os diversos tipos de garantias bancárias, podemos ainda distinguir as garantias autónomas simples e as garantias autónomas, automáticas, também designadas «à primeira solicitação» ou “in first demand”. Enquanto na primeira o beneficiário só pode exigir o cumprimento da obrigação do garante desde que prove o incumprimento da obrigação do devedor ou a verificação do circunstancialismo que constitui pressuposto do nascimento do seu crédito face ao garante, já tal prova não lhe é exigível na segunda, devendo nesta o garante entregar imediatamente ao beneficiário, ao primeiro pedido deste, a quantia pecuniária fixada, cfr. Ac. STJ de 13.01.2009, in www.dgsi.pt.
Como é sabido, no caso de garantia bancária autónoma, o garante não se obriga a satisfazer uma dívida alheia. Mais do que isso, ele assegura ao beneficiário determinado resultado, o recebimento de certa quantia em dinheiro, e terá de proporcionar-lhe esse resultado, desde que o beneficiário diga que não o obteve da outra parte, sem que o garante possa entrar a apreciar o bem ou mal fundado desta alegação. Pelo que acordada uma garantia autónoma à primeira solicitação pode admitir-se estar o credor dispensado da prova do evento que lhe permite fazer a exigência. Assim, verificado um caso de inversão do ónus da prova, basta ao credor exigir o pagamento da quantia garantida, alegando que não obtivera aquilo que lhe era devido.
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“In casu” a requerente/apelante alega que a requerida ao exigir-lhe o montante da garantia em apreço está a agir em abuso de direito. Porque alegadamente a requerida é devedora e não credora da ora massa insolvente da D…, SA.
É para nós evidente que são muito escassos nos autos os factos que nos permitam aquilatar da bondade/veracidade do assim invocado, contudo, tal como foi considerado em 1.ª instância, pode-se julgar verificado por “summaria cognitio”, o requisito do “fummus bonus juris”, ou seja, do direito/ interesse juridicamente protegido invocado pela requerente/apelante, facto, aliás, contra o qual e, como é evidente, não se insurge a apelante. [...]
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Temos por evidente que para se alcançar a conclusão de que o receio é fundado, impunha-se a alegação de factos que permitissem afirmar com objectividade e distanciamento a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo.
Pois que, como refere Abrantes Geraldes, in “Reforma de Processo Civil”, III, pág. 87, não bastam simples dúvidas, conjecturas ou receios meramente subjectivos ou precipitados, assentes em apreciação ligeira da realidade, embora, de acordo com as circunstâncias, nada obste a que a providência seja decretada quando se esteja perante simples ameaças, ainda não materializadas, advindas do requerido, mas que permitam razoavelmente supor a sua evolução para efectivas lesões. E no mesmo sentido, veja-se, o Prof. Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil, Anot.”, I, pág. 684, segundo o qual, o receio há-de ser de tal ordem que justifique a providência requerida e só a justifica quando as circunstâncias se apresentam de modo a convencer de que está iminente a lesão do direito.
Como é também sabido, quanto à lesão, a gravidade e a difícil reparação são requisitos cumulativos, pelo que não merecem tutela cautelar as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, ainda que irreparáveis, bem como as lesões graves mas facilmente reparáveis, havendo que lançar-se mão de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade entre o direito cuja lesão é receada e os factos em que o receio se traduz.
Assim a gravidade da previsível lesão deve ser aferida à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo em conta que, no concernente aos prejuízos materiais, eles são, em regra, ressarcíveis através da reconstituição natural ou da indemnização substitutiva.
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“In casu”, visto o alegado pela requerente/apelante muito bem aquilatou a 1.ª instância ao reputar que “(…) o seu receio se baseia na consideração de vários cenários hipotéticos que equaciona a partir de apenas dois factos: - a requerente, a 5 de Setembro do ano corrente, lhe ter concedido 10 dias para satisfazer a garantia bancária, sob pena de recorrer à via judicial; - e a requerente não ter satisfeito aquela garantia.
A partir daqueles dois factos a requerente refere que se a requerida propuser uma acção executiva, pode ser dispensada a sua citação prévia; que, neste caso, pode ser feita penhora; e que essa penhora pode incidir sobre os equipamentos informáticos.
São demasiadas conjecturas para se considerar que o receio da sua verificação é fundado, quando na sua base está somente uma carta da requerida, interpelando à satisfação da garantia bancária, e o facto de a requerente não ter satisfeito aquela pretensão (…)”.
Na verdade, e como já se referiu, o receio da requerente haveria de ser objectivo, isto é, deveria basear-se em factos de que resultasse a seriedade da ameaça duma lesão não verificada, mas iminente. Não basta a invocação de um qualquer receio para que logo seja requerida a providência. Ter-se-á de provar que o receio existe e é objectivo e justificado.
No caso em apreço, a requerente/apelante limitou-se a apontar cenários hipotéticos, criados pela sua imaginação e sem qualquer fundamento objectivo razoavelmente configurável. Pois que partindo do facto de lhe ter sido pedido o pagamento de certa garantia autónoma e de ter recusado tal pagamento, após o que recebeu uma carta da requerida a conceder-lhe prazo para pagar, sob pena de instaurar a devida acção para obter o resgate de tal caução, a requerente/apelante diz temer a instauração de uma acção executiva, mais conjectura ainda que nesse processo será efectuada penhora antes da sua citação, e que essa penhora versará sobre (todos) os seus equipamentos informáticos e, com remoção dos mesmos, o que terá “efeitos catastróficos”, nomeadamente paralisará a sua actividade bancária…, tudo sem qualquer contexto sério e objectivo, sendo antes meras e simples conjecturas alarmistas e futuristas.
Ora, sem necessidade de outros considerandos, é para nós manifesto ter de ser concluir que, perante os factos alegados no requerimento inicial da requerente/apelante, não são configuráveis todos os requisitos exigidos por lei para o decretamento da requerida providência cautelar, e, mais exactamente, o “periculum in mora”, com o alcance que se deixou definido supra."
[MTS]