"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/10/2019

Jurisprudência 2019 (90)


Suspensão de deliberações sociais;
inversão do contencioso*


I. O sumário de RC 2/4/2019 (8510/18.7T8CBR.C1) é o seguinte:

1 - Nas sociedades por quotas, o direito de participar nas deliberações não tem de ser exercido pessoalmente pelos próprios sócios; porém, atenta a vertente personalista deste tipo societário, restringe-se fortemente o leque de possíveis representantes, como resulta do art. 249.º/5 do CSC, segundo o qual, na ausência de expressa previsão do contrato social, a escolha só pode recair sobre o cônjuge, ascendente, descendente ou outro sócio.

2 - Quando o sócio é uma pessoa colectiva, discute-se, na ausência de cláusula contratual, se tal sócio (que é pessoa colectiva) se pode fazer representar através dum terceiro/mandatário ou se se aplica, sem qualquer adaptação, a regra do art. 249.º/5 do CSC (restringindo a representação voluntária a outro sócio).

3 - Não é, porém, discutível/discutido que o contrato de sociedade possa dirimir a questão e que possa dizer que “os sócios podem livremente designar quem os representará nas assembleias gerais”, hipótese em que abre expressamente a representação dos sócios (sejam ou não pessoas colectivas) a pessoas totalmente alheias à sociedade.

4 - Assim como não é discutível, ainda que tal não conste dos respectivos estatutos, que a administração de tal sócio (pessoa colectiva) se possa fazer representar, “sem necessidade de cláusula contratual expressa”, por terceiros na tomada de deliberações (no seio de sociedades participadas), como resulta dos art. 252.º/6 e 391.º/7 do CSC.

5 - Impedir ilicitamente um sócio de participar numa AG constitui, só por si, um vício procedimental relevante e, por isso, causa de anulabilidade (nos termos do art 58.º/1/a) do CSC) das deliberações que em tal AG venham a ser tomadas, ou seja, ainda que se logre provar que as deliberações seriam idênticas (que passariam a chamada “prova de resistência”), nem por isso as mesmas deixariam de ser anuláveis.

6 – Quando é cedida uma quota, é cedida toda a relação entre o titular de tal participação social e a sociedade, pelo que, cedida uma quota não liberada, é o novo titular da quota (o cessionário) quem fica com a obrigação de pagar o valor da entrada em dinheiro ainda em falta.

7 – Sem prejuízo da cessão de quota (não liberada) não eximir o cedente de toda a responsabilidade pela não realização da quota (quando a cedeu), podendo vir a ser responsabilizado pela diferença entre a parte da entrada em dívida e o produto da venda da quota, porém, apenas em tais estritos termos existe tal responsabilidade, a qual, como resulta da economia dos arts. 204.º, 205.º e 206.º do CSC, só surge após a exclusão do sócio remisso e venda da respectiva quota.

8 – Deliberada a exclusão dum sócio com fundamento em ser “sócio remisso”, é tal deliberação de exclusão, caso não estejam reunidos os pressupostos do art. 204.º/1 do CSC, nula (cfr. art. 56.º/1/c) do CSC) por violar os preceitos imperativos do CSC que estabelecem os termos em que um sócio pode ser excluído.

9 – Só podem ser suspensas deliberações ainda não executadas, embora tal deva ser entendido em termos hábeis, ou seja, não se trata de impedir os órgãos sociais da sociedade dum qualquer acto de execução instantânea da deliberação em causa, mas sim de paralisar os efeitos jurídicos – não raras vezes, duradouros, persistentes e prolongados – que a deliberação em causa é susceptível de produzir.

10 – O “dano apreciável” causado pela execução da deliberação – o “periculum in mora” do procedimento cautelar de suspensão de deliberações sociais – tem que ficar em concreto provado, não sendo a sua existência de presumir, porém, tal concreta prova pode/deve resultar da apreciação que o tribunal deve fazer da globalidade dos concretos factos que estão alegados/provados (e não tem necessariamente que ser extraível apenas de factos e comportamentos posteriores à data da deliberação).

11 – Sendo o “dano apreciável” a prevenir um dano futuro, tal acontece, só por si, pelos efeitos duma deliberação de exclusão de sócio, já que, quando alguém é excluído de sócio, não perde apenas e só a sua participação social, mas também tudo que isso significa e representa, em termos de efeitos jurídicos, estando o “dano apreciável” nos direitos sociais que se retiram ao sócio excluído, em ver-se afastado da vida da sociedade, não podendo participar e influir nas decisões (designadamente, não podendo opor-se à entrada de novos sócios), passando os restantes sócios a poder deliberar, da forma como bem entenderem, sobre o destino da sociedade.

12 – Sendo o sócio excluído de modo bastante irregular, deve considerar-se que é muito séria e forte a probabilidade de serem significativos os prejuízos decorrentes da perda de qualidade de sócio, ou seja, que se encontra preenchido o perigo do “dano apreciável”.
II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Uma providência cautelar é por definição uma decisão provisória destinada a antecipar, em atenção ao periculum in mora, o efeito jurídico da decisão definitiva, ou seja, destinada a evitar o dano jurídico que pode vir a ocorrer no lapso de tempo que sempre leva a tomada duma decisão definitiva.

Daí que repetidamente se refira que na providência cautelar se efectuam dois tipos de juízos: um juízo de simples/mera probabilidade quanto à verificação do direito invocado pelo requerente; e um juízo de certeza ou, pelo menos, de probabilidade muito séria quanto ao “periculum in mora”.

É o caso que da presente providência cautelar de suspensão de deliberação social, em que o direito invocado é a invalidade, supra apreciada, da deliberação em causa, traduzindo-se o requisito do “periculum in mora” na demonstração de que, se tal deliberação for executada, daí resultará dano apreciável (cfr. art. 380.º/1/in fine do CPC).

Temos pois que uma providência de suspensão, como é o caso, só faz sentido com a alegação/prova dos prejuízos que possam decorrer da execução da deliberação; uma vez que, mais do que restaurar provisoriamente a legalidade, interessa prevenir danos futuros.

É justamente também por isto que só podem ser suspensas deliberações ainda não executadas, embora tal deva ser entendido em termos hábeis, ou seja, não se trata de impedir os órgãos sociais da sociedade dum qualquer acto de execução instantânea da deliberação em causa[23], mas sim de paralisar os efeitos jurídicos – não raras vezes, duradouros, persistentes e prolongados – que a deliberação em causa é susceptível de produzir.

Periculum in mora” que, na presente providência, corresponde à verificação, em termos de probabilidade, do perigo de ocorrência dum “dano apreciável”. [...]

Isto dito, revertendo às concretas questões colocadas:

A requerida/apelante diz, sintetizando, que não se provou – ou sequer alegou – o “dano apreciável” causado ou a causar pela execução da deliberação; e que, ao invés, até se provou ser superior o prejuízo resultante da suspensão.

Não tem, a nosso ver, razão.

Quanto à ineptidão da PI – por, segundo a requerida, não terem sido alegados factos concretos (mas meras “alegações vagas, genéricas, conclusivas e não concretizadas”) que consubstanciem o “dano apreciável” – basta dizer, sem sair do campo processual, que estamos perante uma causa de pedir complexa – que é integrada pela alegação da qualidade de sócio, pela alegação das razões da invalidade da deliberação e pela alegação dos factos de onde resulte o perigo de ocorrência de dano apreciável provavelmente decorrente da futura execução da deliberação – pelo que, se por hipótese de raciocínio nada tivesse sido alegado quando ao “dano apreciável” (o que não é o caso[26]), estaríamos tão só perante uma alegação insuficiente e não perante o vício processual da ineptidão da PI.

Enfim, não se verifica a ineptidão da PI, repetidamente invocada, sendo até muito evidente o equívoco conceitual em que a requerida incorre [...], ao referir-se e ao invocar tal vício, uma vez que o que está verdadeiramente (e sempre) a suscitar é a questão de “fundo”, ou seja, a sustentar que o que foi alegado e o que está alinhado nos factos não preenche o requisito do “dano apreciável” e/ou que o prejuízo resultante da suspensão é superior.

Concentremo-nos pois sobre o “dano apreciável”.

A requerida bate incontáveis vezes na mesma “tecla”; diz, repetidamente, que:

Não foram alegados e provados factos concretos que permitam aferir da existência dos prejuízos e da correspondente gravidade; [...]

Que dizer?

Inquestionavelmente, o “dano apreciável” – o requisito do “periculum in mora” – tem que ficar em concreto provado, não sendo a sua existência de presumir, porém, tal concreta prova – tal questão de facto (como a requerida refere na sua conclusão 29) – pode/deve resultar da apreciação que o tribunal deve fazer da globalidade dos concretos factos que estão alegados/provados.

Mais, tal concreta prova não tem única e necessariamente que ser extraível de factos e comportamentos (da requerida) praticados em data posterior à deliberação sob escrutínio.

Se assim fosse, fácil seria obstar ao sucesso da generalidade dos procedimentos de suspensão de deliberação: bastaria para tal que, no curto prazo (10 dias) de proposição da providência, nenhuma execução ou efeito fossem extraídos da deliberação em causa.

São pois as próprias consequências e efeitos práticos de tal entendimento – segundo o qual teriam que estar alegados/provados concretos factos e comportamentos ocorridos em data posterior à deliberação sob escrutínio – que o desautorizam [...].

Escreveu-se atrás que o “dano apreciável” a prevenir é um dano futuro, porém, acrescentou-se que não raras vezes as deliberações produzem efeitos duradouros, persistentes e prolongados.

É bem o caso dos efeitos da deliberação de exclusão de sócias imposta à requerente e à C (…); já que tal deliberação tem como consequência a perda da qualidade de sócias, sendo-lhes retirada a titularidade da participação social, enquanto conjunto unitário de direitos e deveres da socialidade.

O que, só por si, mantendo-se tal perda durante o lapso de tempo que leva a ser tomada uma decisão definitiva, evidencia um prejuízo significativo, de importância relevante, longe dos danos irrisórios ou insignificantes.

Não divergimos pois da requerida, quando a mesma sustenta que “o dano que serve de fundamento à medida cautelar tem de transcender e destacar-se do valor da quota”, porém, é essa “transcendência” que em boa verdade sempre ocorre quando se exclui alguém de sócio, ou seja, quando alguém é excluído de sócio, não perde apenas e só a quota.

Do ponto de vista cautelar, isto é, circunscrevendo-nos apenas ao dano que decorre da natural demora da decisão definitiva, a perda da quota e do valor da quota até será o dano menos “significante”, na medida em que a decisão definitiva poderá reconstituir a titularidade da quota.

A questão – o “dano apreciável” que cautelarmente merece tutela – está no que significa e representa, em termos de efeitos jurídicos, o simples facto de alguém deixar de ser proprietário duma participação social; o “dano apreciável” está nos direitos sociais que se retiram ao sócio excluído (está na extinção da relação jurídica que liga permanentemente o sócio à sociedade).

Está, concretizando, na perda da qualidade de sócia da requerente, em ver-se afastada da vida da sociedade, não podendo participar e influir nas decisões (designadamente, não podendo opor-se à entrada de novos sócios), passando os restantes sócios da requerida a poder deliberar, da forma como bem entenderem, sobre o destino da sociedade. [...]

O “dano apreciável”, repete-se, é um dano futuro e sobre o futuro é sempre difícil fazer previsões (quanto mais ter certezas), porém, pelo modo como a AG decorreu e como a requerente e a C (…) foram excluídas de sócias – não as deixando sequer participar, por razões descabidas, na AG que visava excluí-las de sócias e invocando-se, em relação à requerente, uma causa de exclusão que claramente não se verifica – pode/deve extrair-se que é muito séria e forte a probabilidade de serem significativos os prejuízos decorrentes da perda de qualidade de sócia da requerente, ou seja, o modo atrabiliário como a requerente e a C (…) foram, na AG sub judice, afastadas da participação na vida da sociedade, não augura nada de bom e faz legitimamente temer (preenchendo o perigo do “dano apreciável”) que, quem assim procedeu, visou ter campo livre para, no entretanto (até à decisão definitiva), poder deliberar, da forma como bem entender, sobre o destino e gestão da sociedade/requerida. [...]

Verificam-se assim todos os requisitos da providência cautelar de suspensão de deliberação social no início referidos [...].

Enfim, repetindo e sintetizando, o que o direito aplicável/convocável reputa como factualmente relevante consta dos documentos/actas juntos, ou seja, a prova relevante produzida é/foi documental.

Sendo também justamente por isto que foi, e bem, decretada a inversão do contencioso.

Efectivamente, de acordo com o disposto no art. 369.º/1 do CPC, o juiz, mediante requerimento, na decisão que decrete a providência, pode dispensar o requerente do ónus de propositura da acção principal se a matéria adquirida no procedimento lhe permitir formar convicção segura acerca da existência do direito acautelado e se a natureza da providência decretada for adequada a realizar a composição definitiva do litígio.

Quanto à “convicção segura” acerca do direito, são a nosso ver evidentes, como fomos referindo, as invalidades que inquinam o deliberado, estando assim em muito ultrapassado o juízo de simples/mera probabilidade (quanto à verificação do direito invocado) que é exigido pela tutela cautelar; mais, sendo documental toda a prova relevante, o nível de segurança da convicção sobre tais invalidades (na medida em que estiveram sob apreciação/julgamento fundamentalmente questões de direito) é, pode dizer-se, o mesmo que existiria para a apreciação e reconhecimento das invalidades em causa na acção principal, caso esta tivesse que ser instaurada.

Quanto à aptidão da presente providência suspensiva para se consolidar como composição definitiva do litígio, sem necessidade de confirmação por decisão ulterior, quer-nos também parecer que o decretamento da suspensão da deliberação social – suspendendo a eficácia integral da deliberação, através da proibição da sua execução – tem a virtualidade de realizar a composição definitiva do litígio, conferindo um efeito equivalente à procedência da acção de nulidade ou de anulação da deliberação social [...]."

*III. [Comentário] Voltando a um tópico já várias vezes referido neste Blog, subscreve-se, sem qualquer hesitação, a afirmação de que "importa nunca perder de vista que a ponderação das consequências constitui um momento de argumentação jurídica, pelo menos para todos aqueles que entendem – e são hoje muitos – que a inferência jurídica não pode ficar alheia dos efeitos práticos da solução inferida". 

Isto vale para a interpretação e aplicação do direito material, mas também, necessariamente, para a interpretação e aplicação do direito processual civil. Se se tiver presente que este último deve assegurar uma tutela eficiente com o menor custo possível, aquela orientação consequencialista é susceptível de, além do mais, evitar muita duplicação inútil de meios processuais.

[MTS]