"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/10/2019

Jurisprudência 2019 (107)

 
Prescrição presuntiva;
ilisão
 

I. O sumário de RL 30/4/2019 (99096/17.6YIPRT.C1) é o seguinte:

1. Os créditos respeitantes a cursos profissionais de Cabeleireiro, prestados por uma empresa que tem por objeto a formação profissional, e aprovados pelo I.E.F.P., recaem no âmbito da al. a) do artigo 317º CC.

2. A assinatura de um documento de reconhecimento de dívida, pelo preço total de tais cursos, a suportar em prestações mensais, em simultâneo com a assinatura do contrato, não equivale a ato incompatível com a presunção prescritiva de pagamento.

3. Tal presunção de pagamento é ilidível mediante prova em contrário, incumbindo ao credor a prova do não pagamento, prova que apenas pode ser efetuada mediante confissão do devedor.

II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"[...] ao contrário do sustentado apelante, a procedência de tal exceção presuntiva não acarretará, sem mais, a extinção dos créditos da autora.

A prescrição comum, essa sim, embora não extinguindo o direito prescrito [...], confere ao seu beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito – artigo 304º do CC.

Na prescrição comum, o beneficiário só precisa de invocar e demonstrar a inércia do titular do direito no seu exercício durante o tempo fixado na lei, conferindo-lhe o poder de recusar o cumprimento [...].

A sua força reside no facto de não poder ser afastada com a prova de que a dívida não está satisfeita – operada a prescrição ordinária, pode o devedor invocá-la e ela é eficaz, mesmo que confesse não ter pago [...].

Nas prescrições presuntivas, integrando meras presunções de cumprimento – artigo 312º do CC –, o decurso do prazo apenas faz presumir que o cumprimento se verificou, tendo por finalidade libertar o devedor da prova do pagamento.

“As prescrições presuntivas são presunções de pagamento, fundando-se em que as obrigações a que se referem costumam ser pagas em prazo bastante curto e não é costume exigir quitação do seu pagamento. Decorrido o prazo legal, a lei presume, pois, que a dívida está paga, dispensando, assim, o devedor da prova do pagamento, prova que lhe poderia ser difícil ou, até, impossível, por falta de quitação [Cfr., Adriano Vaz Serra, “Prescrições Presuntivas (…)”, RLJ Ano 98, pág. 241 e 242, RLJ Ano 109, pág. 246, e “Prescrição Extintiva e Caducidade”, BMJ nº 106, Maio 1961, pág. 45]”.

A presunção de cumprimento que funda a prescrição presuntiva é uma presunção iuris tantum, podendo ser ilidida mediante prova em contrário, tal como sucede na generalidade das presunções (artigo 350º, nº2 do CC).

Contudo, no que toca à presunção prescritiva, o seu afastamento só pode resultar de confissão do devedor originário ou daquele a quem a dívida tiver sido transmitida por sucessão – artigo 313º nº1 CC.

Visando as prescrições presuntivas conferir proteção ao devedor que paga uma dívida e dela não exige ou não guarda quitação, não poderia admitir-se que o credor contrariasse a presunção de pagamento com quaisquer meios de prova. Exige-se, por isso, que os meios de prova do não pagamento provenham do devedor [...].

A confissão pode ser judicial ou extrajudicial. A confissão extrajudicial só pode ser feita por escrito (art. 313º, nº2). A confissão judicial é feita em juízo e pode ser espontânea ou provocada. É espontânea quando produzida por iniciativa do confitente. É provocada quando feita por iniciativa do juiz ou a requerimento do credor em depoimento de parte.

Ou seja, ao contrário das prescrições extintivas, as prescrições presuntivas apenas dispensam o beneficiário do ónus de provar o pagamento, fazendo deslocar o ónus da prova do não pagamento para o credor, pelo que, existindo a presunção de pagamento a favor do devedor, competirá ao credor ilidir essa presunção, demonstrando que não pagou, provando a confissão expressa ou tácita do devedor [...].

Como se refere no Acórdão do STJ de 22-01-2009 [...], o decurso do prazo de prescrição presuntiva não confere ao devedor a faculdade de se opor à cobrança do crédito, não lhe dando o direito de não pagar como sucede com a prescrição extintiva, apenas o dispensando da prova do respetivo pagamento.

O legislador presume o cumprimento, libertando o devedor do ónus da prova, mas sem excluir, de todo, a prova do não cumprimento, ou seja a ilisão da presunção.

Assim sendo, a verificação do decurso do prazo de presunção, implicaria que, beneficiando a Ré da presunção de que pagou, presunção ilidível mediante prova em contrário, seria à autora que incumbira a prova de que o pagamento nunca fora efetuado, prova essa que só poderia ser efetuada mediante confissão das rés, por escrito ou no âmbito do depoimento de parte.

No caso em apreço, confrontada com a invocação por parte das rés da prescrição em causa, para a qual foi até expressamente chamado a pronunciar-se, a autora limitou-se a apresentar em audiência uma testemunha e a juntar um documento contabilístico da sua autoria, e, foi com base no depoimento desta testemunha e no documento (elaborado pela autora) apresentado como sendo a conta corrente dos pagamento efetuados pela Ré, que a sentença recorrida veio a dar como provado sob o ponto 9. “Da quantia global acima indicada, a Ré apenas liquidou a quantia de 4.480,88 €, sobre o capital em dívida, indicado supra ponto 2”.

Tal depoimento e documento não tinham qualquer idoneidade para ilidir a presunção de pagamento do artigo 317º, pelo que, não sendo admissíveis tais meios de prova, e não tendo sido requerido o depoimento de parte de qualquer uma das rés, não se pode dar como “provado” que as rés não tenham procedido ao pagamento da quantia reclamada pela autora.

Em consequência, determina-se a eliminação do ponto 9. dos factos dados como provados, considerando-se “não provado”, que a Ré não tenha procedido ao pagamento da quantia de 5.010,88 €.

Reconhecida a aplicação ao caso em apreço da presunção de pagamento prevista na al. c) do artigo 317º, CC, a não prova de que o pagamento não se encontra efetuado, acarretará a improcedência da ação."
 
[MTS]