"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/10/2019

Jurisprudência 2019 (101)


Excepção de caso julgado;
requisitos*

1. O STJ 30/4/2019 (4435/18.4T8MAI.S1) é o seguinte:

I - A excepção dilatória do caso julgado, reflectindo a função negativa do caso julgado, pressupõe a verificação cumulativa da tríplice identidade de sujeitos, pedidos e causas de pedir, nos termos do art.º 581.º do CPC.

II - Já a autoridade do caso julgado, diferente daquela, exerce a função positiva do caso julgado e tem a ver com a existência de prejudicialidade entre objectos processuais, tendo como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, como se depreende dos art.os 619.º e 62l.º, ambos do mesmo Código.

III - A qualidade jurídica a que se deve atender para efeito de aferição da identidade de sujeitos reporta-se às partes, pelo que, havendo representação, a parte é o representado e não o representante.

IV - A causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo demandante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC.

V - O autor não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as possíveis causas de pedir na acção que seja proposta, o que está de acordo com o princípio do dispositivo.

VI - Não existe identidade de causas de pedir entre uma acção estruturada a partir da incapacidade decorrente de interdição por anomalia psíquica do testador e, com base nela, foi pedida a declaração de nulidade e outra acção baseada na incapacidade acidental do mesmo testador.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Como é sabido, a excepção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira, entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir, ter sido decidida por sentença que não admita recurso ordinário, obsta ao conhecimento do mérito da causa e importa a absolvição da instância (cfr. art.ºs 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º, n.º 1, 581.° e 619.°, n.º 1, todos do CPC). [...]

[...] vejamos o caso dos autos.

A vertente da figura do caso julgado que está aqui em causa é a relativa à excepção dilatória de caso julgado, pois foi essa a que foi julgada procedente no despacho recorrido e é contra esse entendimento que se insurge o recorrente, sustentando que ela não existe por não se verificar identidade de sujeitos nem de causas de pedir.

E tem razão.

Relativamente à identidade de sujeitos, constata-se que a aqui ré BB foi demandada nesta acção, “por si e na qualidade de tutora do interdito CC”, enquanto que na acção supra identificada na alínea b) da fundamentação de facto interveio apenas nesta qualidade. Ao propor essa acção em representação do interdito, a parte é o representado, ou seja, o dito interdito e não ela, seu mero representante (cfr. art.ºs 124.º e 139.º, ambos do Código Civil e art.ºs 15.º e 16.º, n.º 1, ambos do CPC). Quer isto dizer que nessa acção não teve qualquer intervenção por direito próprio, ou seja, não foi parte.

Ainda que não obste à identidade das partes o facto de elas aparecerem no novo processo em posição inversa da que tiveram naquele em que foi proferida a sentença [...], no caso, não pode falar-se em inversão da posição, visto que na primeira acção a referida BB não teve qualquer intervenção para sustentar um direito próprio.

Também se nos afigura não ser caso de extensão da eficácia do caso julgado. Nada permite concluir que a BB está abrangida pela força do caso julgado formado com a prolação da sentença ali proferida e, assim, impedir a propositura desta nova acção por um interessado ali demandado, o qual nenhuma responsabilidade teve na propositura da primitiva acção e nada podia fazer para suprir a falta da intervenção daquela, nem recorrer da sentença na parte em que foi julgada improcedente, por lhe ser favorável.

Não existe, pois, identidade de sujeitos, contrariamente ao sustentado no despacho recorrido.

Passando à apreciação das causas de pedir de ambas as acções, constata-se que:

A 1.ª acção – a supra identificada sob a al. b) – foi estruturada a partir da incapacidade decorrente da interdição por anomalia psíquica do testador CC, partindo-se daí para a invalidade dos dois testamentos por ele outorgados, independentemente da data da sua outorga.

É o que resulta, de forma clara, da petição inicial, onde foi alegado que o referido CC outorgou dois testamentos, um em cada data – 3/4/2007 e 24/5/2011 – e que o mesmo foi declarado interdito por anomalia psíquica noutra data – 25/6/2010 – acabando, com base nela, por ser formulado o pedido de declaração de nulidade de ambos os testamentos.

E foi assim que o Tribunal que a apreciou a entendeu como fez constar logo que começou a apreciação de direito, escrevendo “A autora defende que os dois testamentos são nulos porque outorgados por um interdito por anomalia psíquica”.

Foi também perante a alegação de o testador ter sido declarado interdito por anomalia psíquica que o Tribunal entendeu, face ao teor dos art.ºs 2189.º, al. b) e 2190.º, ambos do Código Civil, e atenta a circunstância de aquela declaração só ter efeitos para futuro, ou seja, após o trânsito em julgado da sentença que a decretou (1/9/2010), que tal interdição apenas afectava o testamento de 24/5/2011, julgando procedente a acção relativamente ao pedido de declaração de nulidade deste segundo testamento.

Por sua vez, na presente acção, a causa de pedir foi estruturada com base na incapacidade acidental no momento da outorga do primeiro testamento, de 3/4/2007.

É o que consta da petição inicial, nomeadamente nos art.ºs 16.º a 34.º, onde foi alegado, em síntese, que:

- o referido CC sofre, desde a nascença, de debilidade mental, doença hereditária que lhe causa grave e irreversível atraso mental e intelectual;

- desde a nascença, apresenta um défice cognitivo grave, sendo incapaz de reger a sua pessoa autonomamente;

- no momento em que foi outorgado aquele primeiro testamento, mercê da sua constante debilidade mental, não podia perceber, minimamente, o sentido das declarações nele produzidas, nem se encontrava no exercício da sua vontade;

- nesse contexto, não tinha a mínima capacidade de entender ou de querer.

Confrontando as causas de pedir das duas acções, facilmente se constata que elas são diferentes. Enquanto a primeira é construída, relativamente aos dois testamentos, com base na nulidade decorrente da interdição por anomalia psíquica do testador CC, sanção prevista no art.º 2190.º do Código Civil, a segunda apresenta-se estruturada com base na incapacidade acidental no momento da outorga do primeiro testamento, o que o torna anulável nos termos do art.º 2199.º do mesmo Código [...].

Esta causa de pedir não foi objecto da primeira acção, nem podia ter sido, pela simples razão de que não foram alegados os respectivos factos, como, aliás, foi reconhecido na respectiva sentença.

O facto de nela se fazer referência à falta de alegação de factos integradores da incapacidade acidental, único vício que poderia afectar o primeiro testamento, tendo, por isso, improcedido, nessa parte, a acção, não obsta a que, em acções posteriores, como foi a presente, tal ocorrência viesse a ser “invocada para ser apreciada à luz de diferente enquadramento jurídico” [Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil, vol. I, pontos 7, 8, 9 e 11 da anotação ao art.º 581., citado pelo Prof. Paulo Pimenta, no parecer junto a estes autos, donde foi extraída a expressão acabada de transcrever].

É também este o
entendimento deste Supremo Tribunal, como se pode ver no, já mencionado, acórdão de 18/9/2018, proferido no processo n.º 21852/15.4T8PRT.S1, em cujo sumário se pode ler:


“1. A exceção de caso julgado material exerce uma função negativa consistente no impedimento de que as questões alcançadas por caso julgado anterior se possam voltar a suscitar, entre as mesmas partes, em ação futura, tendo como requisitos a tríplice identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, nos termos do artigo 581.º do CPC.

2. Para tais efeitos, a identidade do pedido afere-se pela identidade do efeito prático-jurídico considerado à luz do estatuído no quadro normativo aplicável ao litígio em causa.

3. Por sua vez, a causa de pedir, como facto jurídico de que procede a pretensão deduzida, consubstancia-se na factualidade alegada pelo impetrante como fundamento do efeito prático-jurídico visado, com a significação resultante do quadro normativo a que o tribunal deva atender ao abrigo do art.º 5.º, n.º 3, e nos limites do art.º 609.º, n.º 1, do CPC.

4. A densificação da causa de pedir requer uma substanciação adequada à individualização da relação material controvertida, como singularidade ontológica, que, para além de oferecer garantia de base do contraditório, sirva de ulterior delimitação objetiva do caso julgado.

5. Todavia, para delimitar determinada causa de pedir, não basta a mera identidade naturalística da factualidade alegada, havendo sempre que considerar a sua relevância em face do quadro normativo aplicável e em função da espécie de tutela jurídica pretendida.

6. Embora a diferenciação de causas de pedir seja feita, em regra, por via da conjugação da concreta factualidade alegada com o aludido quadro normativo aplicável, casos há em que a mesma factualidade empírica é suscetível de preencher quadros normativos distintos com estatuição de modos de tutela jurídica qualitativamente diversos. Nestes casos, tal diferenciação será feita, basicamente, em função do vetor normativo da causa de pedir.

7. Porém, perante uma pretensão deduzida e julgada numa ação, não basta empreender uma qualificação jurídica diferente sobre a mesma factualidade para, em ação posterior, se concluir por causa de pedir diversa, já que ao tribunal incumbe proceder às qualificações jurídicas que tiver por corretas, ao abrigo do disposto no art.º 5.º, n.º 3, do CPC, de modo a esgotar as possíveis qualificações dos factos alegados em função do efeito prático-jurídico pretendido, segundo o denominado “princípio de exaustão”.

8. Importa, no entanto, moderar essa liberdade de qualificação no sentido de não permitir uma convolação qualificativa tão ampla que conduza a um modo de tutela de conteúdo essencialmente diferente do visado pelo autor, extravasando o limite da condenação prescrito no art.º 609.º, n.º 1, do CPC e atentando contra os princípios do dispositivo e do contraditório, em função dos quais as partes pautaram a configuração do litígio e a discussão da causa.

9. ….”. De resto, relativamente aos efeitos preclusivos decorrentes da primeira acção, ao contrário do que sucede com o réu (que deve concentrar toda a defesa na contestação – art.º 573.º, n.º 1, do CPC - ou excepcionalmente em momento posterior nos termos do n.º 2 do mesmo artigo), quanto ao autor tal não ocorre, visto que não está sujeito a qualquer ónus de concentração de todas as possíveis causas de pedir na acção que seja proposta [...], o que está de acordo com o princípio do dispositivo. [...]."
Regressando ao caso dos autos, embora ambas as acções visem a invalidade do mesmo testamento – o de 3/4/2007 –, elas têm causas de pedir distintas, pelo que o trânsito em julgado da sentença proferida na primeira – supra identificada em b) – não obstava a que fosse instaurada a presente acção.

Não se verifica, por conseguinte, a excepção dilatória do caso julgado, contrariamente ao decidido no despacho recorrido."

*3. [Comentário] Segundo resulta das alegações do próprio recorrente, a causa de pedir da primeira acção foi a interdição do testador. Correcto teria sido que o autor tivesse pedido na primeira acção o seguinte:

-- A anulação do testamento de 2007 por incapacidade acidental do testador (art. 2199.º CC);

-- A declaração de nulidade do testamento de 2011 por falta de capacidade testamentária do testador (art. 2189.º, al. b) (na redacção vigente no momento do testamento) e 2190.º CC).

Quer dizer: o que o autor devia ter feito na primeira acção era a indicação de duas causas de pedir, uma relativa ao testamento de 2007 e outra respeitante ao testamento de 2011.

Houve, por isso, um duplo equívoco do autor:

-- Invocar, como causa de pedir, a interdição do testador; a verdadeira causa de pedir é a falta de capacidade testamentária;

-- Utilizar a mesma "causa de pedir" (a interdição do testador) para obter a invalidação de ambos os testamentos.
 
Na base equivocada em que o autor estruturou a primeira acção, bem se pode entender que o tribunal da acção só tenha conhecido da nulidade do segundo testamento (o de 2011). Mais: segundo informa o recorrente, o tribunal da primeira acção "determinou a improcedência do pedido de declaração de nulidade do testamento outorgado em 3.4.2007, «por a declaração de sentença do início de incapacidade, no caso reportando-a ao nascimento, não ter efeito retroactivo quanto ao início da interdição»".

O que se dispõe nos art. 580.º, n.º 1, e 581.º CPC pressupõe, além do mais, que tenha havido uma correcta indicação da causa de pedir na primeira acção. Só nesta base se pode aferir se a excepção de caso julgado ocorre ou não ocorre, porque só nela se pode saber se se verifica ou não verifica uma repetição da causa de pedir na segunda acção.

Mas, o que entender quando, por lapso do autor, na primeira causa não tiver sido invocada nenhuma causa de pedir para o pedido que se repete na segunda acção (e, portanto, quando não se verifica nenhuma repetição de causas de pedir)? A solução não pode deixar de ser a de que a excepção de caso julgado não opera nestas circunstâncias, dado que, afinal, não há repetição de causas de pedir nas duas acções. 

Em suma: a não verificação da excepção de caso julgado "salva" o autor que não actuou como devia ter actuado na primeira acção.

MTS