"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/10/2019

Jurisprudência 2019 (93)


Registo; falta de publicitação;
terceiros; oponibilidade


1. O sumário de STJ 11/4/2019 (22616/16.3T8LSB-A.L1.S2) é o seguinte:

I. O registo predial tem como função prioritária garantir, através da sua publicidade, a segurança do comércio jurídico imobiliário, tanto no plano estático como no plano dinâmico ou fenoménico, em ordem a conferir certeza no respetivo tráfego.

II. Nessa medida, a publicidade registal constitui condição de eficácia dos atos sujeitos a registo relativamente a terceiros e, no caso da hipoteca, até entre as próprias partes, nos termos dos artigos 4.º e 5.º, n.º 1, do Código de Registo Predial (CRP).

III. Para proporcionar uma adequada e segura publicidade registal, o registo predial assenta em dois pilares fundamentais: por um lado, a descrição de cada prédio, através da qual este é identificado física, económica e fiscalmente (art.º 79.º, n.º 1, do CPC); por outro lado, as inscrições das diversas situações ou vicissitudes jurídicas dos prédios mediante o extrato dos factos a eles respeitantes (art.º 91.º, n.º 1, do CRP) feitas com referência às correspondentes descrições.

IV. Além disso, a lei estabelece os mecanismos através dos quais deve ser veiculada tal publicidade, mormente mediante certidões do registo contendo a reprodução da descrição e dos atos de registo em vigor respeitantes a determinado prédio, nos termos previstos nos artigos 104.º e 112.º, n.º 1, alínea a), do CRP.

V. Num caso, como o dos autos, em que a hipoteca sobre uma fração imobiliária constituída a favor da exequente, embora promovido o respetivo registo, não se encontrava de todo publicitada, a mesma é ineficaz quanto ao embargante, na qualidade de terceiro, não lhe sendo oponível em relação a um contrato de compra e venda daquela fração, livre de ónus e encargos, que este celebrou e registou, não prevalecendo, portanto, sobre essa compra, nos termos conjugados do artigo 687.º do CC e dos artigos 4.º, 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, do CRP.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] o objeto da presente revista excecional consiste em saber se a hipoteca constituída sobre a fração imobiliária [...] em garantia da obrigação exequenda, encontrando-se registada mas sem inscrição publicada no registo predial, prevalece sobre a compra da mesma fração livre de ónus ou encargos, realizada posteriormente.

As instâncias decidiram, de forma coincidente, no sentido de que aquela hipoteca não prevalecia, sendo ineficaz perante o posterior adquirente do imóvel, uma vez que não se encontrava publicada no registo em termos de ser normalmente disponível a terceiros.

No entanto, não obstante a ocorrência de dupla conforme, a revista foi admitia a título excecional por se afigurar que, tratando-se de uma situação invulgar, apresentava alguma similitude com o tipo de casos que estiveram na base do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2017, de 23/02/2016, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 22/02/2017.

Vejamos. [...]

Para proporcionar uma adequada e segura publicidade registal, o registo predial assenta em dois pilares fundamentais: por um lado, a descrição de cada prédio, através da qual este é identificado física, económica e fiscalmente (art.º 79.º, n.º 1, do CPC) com os respetivos averbamentos e anotações; por outro lado, as inscrições das diversas situações ou vicissitudes jurídicas dos prédios mediante o extrato dos factos a eles respeitantes (art.º 91.º, n.º 1, do CRP) feitas com referência às correspondentes descrições. [...]

Ora, no caso dos autos, está provado que o embargante, ao pretender comprar a fração imobiliária em causa, em 05/04/2001, requereu e obteve uma certidão emitida, nesse mesmo dia, pela 5.ª Conservatória do Registo Predial, que continha o teor da descrição predial dessa fração e da qual não constava a existência de qualquer ónus ou encargo sobre a mesma.

Nesse próprio dia (05/04/2001), o embargante requereu o registo provisório da aquisição daquela fração a seu favor e celebrou a escritura pública de compra e venda da mesma no dia 10/04/2001, tendo requerido depois a conversão do antecedente registo provisório em definitivo no dia 11/04/2001. Neste mesmo dia, obteve uma certidão emitida pela 5.ª Conservatória do Registo Predial, a atestar que o registo de aquisição se havia convertido em definitivo e que nenhuma outra inscrição se encontrava em vigor.

Sucede que a hipoteca que garantia a obrigação exequenda a favor da Caixa BB foi constituída por escritura pública outorgada em 15-11-2000, tendo aquela promovido o registo provisório da hipoteca em 13/09/2000, convertido em definitivo no dia 27/12/2000.

Porém, a inscrição do registo dessa hipoteca não se encontrava publicada nas inscrições em vigor respeitantes àquela fração autónoma no anterior sistema entre abril de 2001 até, pelo menos, 11 de março de 2012, falha essa a que o embargante era alheio.

Deste quadro factual resulta que o embargante fez o que estava ao seu alcance e lhe era exigível para obter a informação registal necessária a celebrar o seu negócio sobre a referida fração. E perante a informação que lhe foi prestada através das certidões emitidas pela Conservatória do Registo Predial, em que lhe era legítimo confiar, nada se revelava no sentido de o levar a suspeitar da anomalia existente e que justificasse requerer qualquer outra informação complementar constante do histórico do prédio.

Nessas circunstâncias, não pode deixar de se concluir que a hipoteca constituída sobre a fração imobiliária em causa a favor da exequente, embora promovido o respetivo registo, mas que não se encontrava de todo publicitado, é ineficaz quanto ao embargante, não lhe sendo oponível em relação ao contrato de compra e venda da mesma fração, livre de ónus e encargos, que este celebrou e registou, não prevalecendo, portanto, tal hipoteca sobre esta compra, nos termos conjugados do artigo 687.º do CC e dos artigos 4.º, 5.º, n.º 1, e 6.º, n.º 1, do CRP. [...]

A exequente terá, porventura, direito a ser ressarcida do prejuízo resultante da ineficácia da sua garantia real decorrente de uma anomalia a que, ao que parece, foi alheia, tendo promovido oportunamente o registo da hipoteca. Mas tal reparação não pode ser conseguida através do sacrifício do direito adquirido pelo embargante que, para tanto, atuou com base na confiança que lhe era proporcionada pelo sistema do registo predial, tendo ele atuado em conformidade com as regras e os procedimentos adequados à obtenção da informação disponível.

Aqui chegados, resta ponderar se a situação em causa apresenta similitudes com o tipo de caso de que se ocupou o AUJ n.º 1/2017, como, à primeira vista, podia parecer.

A orientação jurisprudencial ali uniformizada foi a seguinte:

Verificando-se uma dupla descrição, total ou parcial, do mesmo prédio, nenhum dos titulares registais poderá invocar a seu favor a presunção que resulta do artigo 7.º do Código do Registo Predial, devendo o conflito ser resolvido com a aplicação exclusiva dos princípios e das regras de direito substantivo, a não ser que se demonstre a fraude de quem invoca uma das presunções.

Sucede que a situação ali em apreço consistia em dupla descrição do mesmo prédio, tendo-se considerado que tal duplicação comprometia inelutavelmente a função dessa descrição, gerando “uma aparência contraditória” em que do registo resultava “simultaneamente uma afirmação e o seu contrário”, conduzindo a duas presunções de sentido oposto que se destruíam mutuamente.

Foi pois nesse quadro de contradição aparente da dupla descrição que se considerou não poder nenhum dos titulares inscritos prevalecer-se da presunção estabelecida no artigo 7.º do CRP, devendo o conflito ser então resolvido na base do direito substantivo.

Ora, do que acima se deixou exposto decorre que afinal tal especificidade não se verifica no caso aqui em apreço.

Com efeito, como foi referido, das certidões de registo obtidas pelo embargante junto da Conservatória do Registo Predial nada constava quanto ao registo da hipoteca constituída a favor da exequente. E mais se provou que esta hipoteca não se encontrava sequer publicada nas inscrições em vigor respeitantes àquela fração autónoma, no anterior sistema, entre abril de 2001 até pelo menos 11 de março de 2012.

Nessas circunstâncias, não se oferecia ao embargante qualquer aparência registal deficiente nem muito menos contraditória ou equívoca, que lhe pudesse incutir a suspeita da existência da hipoteca a favor da exequente. Pura e simplesmente o registo de tal hipoteca não se encontrava publicado.

Assim sendo, não poderá deixar de se considerar a referida hipoteca ineficaz e inoponível em relação ao embargante tal como acima ficou exposto e como bem decidiram as instâncias."

*3. [Comentário] a) O STJ decidiu bem. 

O que o acórdão talvez demonstre é que o STJ não esteve nada bem bem no proferimento do Ac. STJ 1/2017, de 22/2. A diferença entre a situação que conduziu ao Ac. STJ 1/2017 e a situação em análise no presente acórdão não é, realmente, muita: em ambos os casos, trata-se de um desconformidade registal da responsabilidade do Estado. Sendo assim, não é claro por que motivo, no caso da dupla descrição, ambas as partes perdem a presunção decorrente do registo e por que razão, no caso sub iudice, prevalece o registo do adquirente (em detrimento do registo não publicitado do primeiro credor hipotecário).

Repete-se, no entanto: o STJ decidiu bem, sendo claro que se deve dar prevalência ao registo do adquirente. Discutível é, realmente, o Ac. STJ 1/2017, tanto mais que, como demonstra o agora decidido, no primeiro caso com clara similitude com a situação que o originou, o STJ não aplicou a doutrina nele definida.

b) A latere, volta-se a um Lieblingsthema antigo. O art. 5.º, n.º 1, CRegP estabelece que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo". Mas esta oponibilidade a terceiros não é em relação a todo e qualquer terceiro. Como decorre do estabelecido no art. 5.º, n.º 4, CRegP, "terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si". Perante este regime, explicar como é que o registo do adquirente prevalece sobre o registo não publicitado do credor hipotecário, sendo certo que nenhum deles não adquiriu nada de um autor comum, permanece um mistério.  

MTS