"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/10/2019

Jurisprudência 2019 (99)


Execução; prestação de facto;
legitimidade

 
I. O sumário de RG 24/4/2019 (26/18.8T8PTL-C.G1) é o seguinte:

1- Sendo a causa de pedir na ação declarativa objeto de alegação fáctica (“a relação controvertida, tal como é alegada pelo autor” – v. art. 30º, do CPC), na ação executiva é objeto de representação formal no título executivo, já incontrovertida. Daí decorre que nesta ação a legitimidade ativa e passiva é restrita aos sujeitos que no título figuram como credor e devedor – nº1, do art. 53º, do CPC.

2- Surgindo, na ação executiva, como regra geral, o referido princípio da legitimidade formal ou da coincidência, são consagradas, em obediência ao princípio da economia processual, exceções ou desvios que permitem que a ação executiva seja intentada por alguém ou contra alguém que não figura no título executivo -
ultra titulum -, estendendo-se a legitimidade aos sucessores daqueles inter vivos ou mortis causa – cfr. nº1, do art. 54º, do CPC, e abrindo-se portas a uma regra mais ampla - partes da execução são o credor e o devedor determinados ou determináveis em face do título.

3- As obrigações que emergem dos títulos executivos podem ser pessoais (como acontece nas que emergem de responsabilidade civil), transmitindo-se, por morte, aos herdeiros, ou, por nascerem em função da coisa, qualificar-se como de reais ou
propter rem e, neste caso, ser ou não ambulatórias, sendo estas as que se transmitem automaticamente, mesmo constituídas e vencidas, com o direito real.

4- A obrigação imposta no título executivo, sentença condenatória, aos devedores (Réus) - retirarem as pedras que, abusiva e ilegitimamente, colocaram na entrada de acesso à via pública do prédio dos 2º AA. - é pessoal, pois decorre da prática, pelos Réus, de ato ilícito, culposo e causador de danos/limitações ao exercício direito de propriedade (art. 483º, do CC), a impor a obrigação de indemnizar, desde logo, por restauração natural (art. 562º, do CPC), e não
propter rem, pois que o respetivo devedor não se determina pela titularidade de um direito real. A obrigação imposta decorre da atuação ilícita e culposa dos Réus - colocar pedras na referida entrada dos Autores, não em coisa sua -, não sendo determinada pela coisa, pela titularidade do direito real, posteriormente transmitido a terceiro.

5- Tendo a obrigação de prestação de facto decorrente da sentença dada à execução nascido de uma conduta ilícita dos aí Réus (que nada tem que ver com a titularidade de direitos reais sobre prédio confinante), face ao óbito do Réu, o cumprimento de tal obrigação terá de ser exigido, para além da Ré, a todos os seus herdeiros do mesmo, e não apenas à Executada/herdeira adquirente do prédio.

6- Alegado o óbito do devedor marido (que figura no título executivo) e a sucessão e junta com o requerimento executivo a certidão de habilitação de herdeiros, demonstrada se encontra a legitimidade passiva dos herdeiros do falecido para a execução da referida obrigação de prestação de facto - retirar as pedras colocadas pelos Réus na entrada de acesso à via pública do prédio dos Autores.

7- A embargante, casada com filho do falecido (que faleceu sem deixar testamento) no regime de comunhão de adquiridos, não sendo herdeira do Réu falecido não é dotada de legitimidade passiva para a execução.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] verifica-se que o título executivo é uma sentença condenatória em que decidido foi “condenar os Réus a de imediato, retirarem todas as pedras que. abusiva e ilegitimamente, colocaram na entrada de acesso à via pública do prédio dos 2º AA. desta petição – nos termos que foram concretamente expostos nos artigos 32º, 33º,37º, e 38º da p.i e de modo a esse acesso (abertura) ficar assim totalmente desimpedida em toda a sua largura de cerca de oito metros e, assim, no preciso estado em que se encontrava antes dessas suas ilegítimas actuações” sendo Réus (…) e mulher (..) .
 
Tal sentença condenatória, com o referido dispositivo, constitui, desde logo, caso julgado contra as pessoas por ela condenadas – os Réus (…) e mulher (…).
 
E resulta feita nos autos de ação executiva, com o requerimento inicial, prova complementar da sucessão por morte de um dos que figuram no título como devedores - o referido António -, demonstrados estando os factos constitutivos da sucessão mortis causa, resultando, a legitimidade dos sucessores do devedor do nº1, do art. 54º, pois tendo havido sucessão por morte na titularidade da obrigação exequenda entre o momento da formação do título e o da propositura da ação executiva do lado passivo deviam tomar, desde logo, a posição de parte, como executados, todos os sucessores do falecido que, no título, figura como devedor.

E, na verdade, o que decorre do título é que os Réus figuram como obrigados, como devedores do aí determinado - tendo sido condenados a retirar as pedras que haviam colocado na entrada de acesso à via pública do prédio dos 2º AA., de modo a que esse acesso (abertura) fique totalmente desimpedido em toda a sua largura de cerca de oito metros (nada se mencionando com relação à obrigação do prédio dos Réus).
 
E tal obrigação foi imposta, pessoalmente, aos Réus e foi-o por terem sido autores de facto ilícito, não por serem titulares do prédio referido nos autos. A obrigação imposta, por sentença, pois, é independente do direito de propriedade dos Réus e não é, sequer, uma obrigação conexa ao estatuto real do seu prédio.

Na verdade, como consta da fundamentação da sentença, a condenação e a obrigação imposta aos Réus resultou de “ter sido violado o direito de propriedade dos AA., sob a sua forma de direito subjectivo absoluto, nos termos dos artigos 1311º e segs. do Código Civil” (negrito nosso). E acrescenta, ainda, o julgador que “foi violado o direito real de gozo (dos AA) consubstanciado numa servidão predial de passagem, no caso em apreço, constituída por usucapião e também por contrato – conforme o que resultou provado -, e nos termos do disposto nos artigos 1543.º, 1.544° e 1.548°, todos do Código Civil”.

Assim, a obrigação, imposta por sentença, tem, efetivamente, natureza pessoal nada tendo, tal como definido pela decisão, a ver com o prédio dos Réus, mas sim com direitos dos Autores, violados, ilícita e abusivamente, pelos Réus, que na entrada de acesso à via pública do prédio dos 2º AA colocaram pedras.

Decorre, na verdade, de ato ilícito praticado pelos Réus, violador de um direito subjetivo absoluto dos autores.

A ação declarativa de condenação em que foi proferida a sentença que constitui o título executivo, atento o pedido formulado pelos Autores, não tem carater real, mas sim pessoal, pois que a pretensão não decorre dum direito real mas sim da prática dum facto ilícito, causador de danos e que, por isso, gera um direito dos autores à sua reparação.

Não foram os Réus condenados a “executar a limpeza e desobstrução do caminho/servidão de passagem no prédio de que eram donos”, não se tratando de aplicação do “estatuto do direito”, mas sim a “retirarem todas as pedras que. abusiva e ilegitimamente, colocaram na entrada de acesso à via pública do prédio dos 2º AA. desta petição – nos termos que foram concretamente expostos nos artigos 32º, 33º,37º, e 38º da p.i e de modo a esse acesso (abertura) ficar assim totalmente desimpedida em toda a sua largura de cerca de oito metros e, assim, no preciso estado em que se encontrava antes dessas suas ilegítimas actuações”.

Na verdade, as obrigações propter rem são aquelas cujo devedor se determina pela titularidade do direito real. A obrigação real ou propter rem é uma obrigação (isto é, uma relação jurídica obrigacional) que impende sobre o titular de um direito real [...].
 
As obrigações propter rem “correspondem a obrigações em que o respectivo devedor é determinado pela titularidade de um direito real. Trata-se assim de obrigações cujo sujeito passivo é variável, correspondendo ao que for titular naquele momento de determinado direito real, o que justifica a sua qualificação como obrigações ambulatórias”[...]
 
A ambulatoriedade é a característica e capacidade de uma obrigação acompanhar automaticamente o direito real ao qual está funcionalmente ligada, aquando da transmissão deste para um novo titular.
 
Obrigação real ambulatória é uma obrigação que, mesmo constituída e vencida, se transmite automaticamente com o direito real [...]. [...]

No caso, ocorreu violação do direito de propriedade dos Autores mas tal violação não está direta e necessariamente ligada à coisa, propriedade dos Réus, pois que não resultou que as pedras foram colocadas no prédio dos Réus mas sim na entrada dos 2ºos Autores de acesso à via pública, estando, por isso, a violação ligada, tão só, à pessoa dos Réus. [...]

Ora, não se devem confundir com as obrigações propter rem os casos de responsabilidade civil atribuídos ao proprietário que exigem um facto ilícito e culposo para se poderem constituir. Não é assim obrigação propter rem a responsabilidade do proprietário do imóvel por vício de construção ou defeito de conservação, estabelecida no art. 492º, nem a responsabilidade resultante das escavações realizadas pelo proprietário, prevista no art. 1348º [...]. Também a não é a responsabilidade, por facto ilícito e culposo, resultante da colocação de pedras na entrada de acesso à via pública do prédio de outrem, o que nada tem a ver sequer com um direito real (tão só com a prática de um ato ilícito violador de direitos dos Autores, designadamente o de propriedade). [...]

Porém, essa prestação surge, determina-se pela titularidade do direito real. In casu, como vimos de nenhuma obrigação propter rem se trata. Estamos sim perante uma obrigação de indemnização, não decorrente da titularidade de direito real mas proveniente de responsabilidade civil extra contratual, de responsabilidade extraobrigacional subjetiva (art. 483º, do CC). E, por violação do direito dos Aurores, estando os Réus obrigados a reparar o dano que causaram, ao colocar as pedras, limitando o exercício do seu direito, impõe-se-lhes o dever de reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art. 562º, do CC)) – a restauração natural.

Esta obrigação de restauração natural, proveniente de responsabilidade civil extracontratual, decorre do ato ilícito praticado pelos Réus e não de situação determinada pela titularidade de direito real. Nada justifica, nem seria justa, a imposição à adquirente do prédio, enquanto tal, de retirar as pedras, colocadas por outrem, na entrada de acesso à via pública do prédio dos 2º AA., nada tendo tal a ver com o seu prédio, nem com obrigações que com ele se prendam. A obrigação de reparar o dano provocado nenhuma relação tem com a titularidade do direito real, antes vai buscar a sua justificação a violação ilícita e culposa do direito de outrem.

A obrigação não surgiu em função da coisa (propter rem), mantendo-se, assim, na esfera jurídica do seu causador, não se desloca em função da titularidade coisa. A obrigação de retirar as pedras colocadas pelos Réus não é uma obrigação propter rem, não é inerente à coisa em si, mas à própria pessoa dos Réus, que praticaram o ato ilícito, não se transmitindo, por isso, para a adquirente do direito real (uma dos herdeiros), mas sim, para além da Ré, aos herdeiros do Réu falecido (todos eles)."
 
[MTS]