"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/10/2019

Jurisprudência 2019 (104)


Usufruto; penhora;
terceiros para efeito de registo*


1. O sumário de RP 26/9/2019 (6062/12.0YYPRT-A.P1) é o seguinte:


I - O direito de usufruto é passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito de execução movida contra o usufrutuário.

II - O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, não tendo por isso natureza constitutiva.

III - Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

IV - O titular de um direito real de garantia registado sobre imóvel anteriormente vendido ao recorrido, mas sem o subsequente registo, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum.

V - No caso dos autos, o identificado acto voluntário dos executados de renúncia gratuita ao usufruto de que eram titulares sobre imóvel e que não foi registado antes da penhora, deve ser considerado ineficaz relativamente a esta, não podendo por isso ser por aqueles invocado contra o exequente.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Cumpre [...] apreciar e decidir a questão que tem a ver com a procedência da presente oposição à penhora.

Como ficou já visto nas suas alegações de recurso os opoente ora apelantes sustentam a tese da inadmissibilidade da penhora sobre o direito de usufruto, expondo os seus argumentos (de facto e de direito) nas conclusões 15ª a 33ª das suas alegações, cujo conteúdo aqui voltamos a transcrever para uma melhor entendimento das razões invocadas:

“[...] 21. Apesar da renúncia do usufruto apenas se ter efectivado em 2017, a verdade é que o aludido direito já não produzia os seus efeitos desde Junho de 2015, ou seja, dois anos antes do respectivo registo.

22. Tendo por referência a regra base de que o efeito do registo é de mera publicidade, dúvidas não restam que, na realidade, o direito de usufruto sobre o prédio a que vem sendo feita alusão já estava extinto desde Junho de 2015 e não apenas em 2017.

23. Foi em Junho de 2015 que o direito de usufruto se extinguiu, por renúncia, data a partir da qual iniciou a produção de efeitos, mas só em 2017 é que foi dada a publicidade à referida extinção.

24. É o facto subjacente que confere direitos, e não o registo.

25. Os aqui apelantes lograram ilidir a presunção mencionada no artigo 7.º, pois, demonstraram que, o direito de usufruto estava extinto desde a data de Junho de 2015, por renúncia, tal como comprova a escritura de renúncia junta aos presentes autos.

26. O artigo 5.º, n.º 1 do Código do Registo Predial estabelece que, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respectivo registo, contudo, dispõe o n.º 4 do mesmo preceito legal que, terceiros para efeitos de registo são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si, pelo que, a protecção disponibilizada pelo referido preceito legal, é vedada ou limitada aos terceiros.

27. É considerado como terceiro para efeitos de registo, os adquirentes de boa-fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.

28. O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 3/99 de 18 de maio de 1999 (uniformizador de jurisprudência), retomou a posição de Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica, consagrando um conceito restrito de terceiro, segundo o qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupunha que ambos os direitos tivessem advindo de um mesmo transmitente comum.

29. O exequente não é um terceiro para efeitos de registo, porquanto, não adquiriu nenhum direito do mesmo transmitente comum, pois, quem conferiu o direito dos ora apelantes foi a sociedade comercial agora proprietária do prédio aqui em apreço e, por sua vez, quem conferiu o direito do exequente foram os próprios apelantes, devido aquele direito de usufruto estar registado em nome deles.

30. No conceito restrito de terceiros, apenas se inclui os actos negociais, e nunca os actos de penhora ou venda executiva.

31. Nunca poderá o ora exequente ser considerado como terceiro para efeitos de registo, pelo que, a celebração da escritura de renúncia do usufruto produziu os seus efeitos logo em 2015 e, por isso, é manifestamente falso que a renúncia gratuita ao usufruto é ineficaz e não podia ser oponível à penhora registada a favor do exequente, pois, como já demonstrado, a realidade substantiva é a que prevalece perante a realidade registral, conjugado com o facto de o exequente não ser considerado terceiro para efeitos de registo e, como tal, nos termos do disposto no artigo 4.º e 5.º do Código de Registo Predial, os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados.

32. À data do registo da penhora, havia fundamentos da sua impenhorabilidade, pois, como já demonstrado, o direito já estava extinto.

33. Contrariamente ao referido pelo Senhor Doutor Juiz, a renúncia ao usufruto é oponível à penhora registada anteriormente a favor do exequente, pelo que, deverá este Tribunal revogar a sentença aqui sob censura e, consequentemente, proferir uma decisão que considere que a renúncia ao usufruto é oponível à penhora registada.”.

Cabe pois saber se têm ou não razão nesta sua alegação.

Para responder a tal questão chamaremos desde já à colação o acórdão do STJ de 18.12.2003, processo 03B2518, relatado pelo Conselheiro Santos Bernardino e dado a conhecer em www.dgsi.pt.

Assim:

“Em matéria de registo, vigora o princípio prior tempore potior jure (princípio da prioridade), com assento no art.6º/1: "o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data, pelo número de ordem das apresentações correspondentes".

Os factos sujeitos a registo podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros, mesmo que não registados (art.4º/1). Já no que tange à oponibilidade do registo predial a terceiros prescreve o art.5º/1 que "os factos sujeitos a registo só produzem efeitos em relação a terceiros depois da data do respectivo registo". Significa isto que, inter partes, os factos sujeitos a registo são plenamente eficazes, mesmo que não registados; para com terceiros interessados, a sua eficácia depende do registo.

Importa, todavia, ter presente que o registo predial se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário (art.1º), não tendo natureza constitutiva: entre nós, os actos existem fora do registo, sendo o efeito deste simplesmente declarativo, não conferindo, a não ser excepcionalmente, quaisquer direitos.

O conceito de terceiros deve reflectir, por isso, essa função declarativa do registo e ser entendido à luz das finalidades publicitárias deste.

Após longa e diversificada controvérsia doutrinal e jurisprudencial, o conceito de terceiros ganhou roupagem legal com o já acima aludido Dec-lei 533/99, de 11 de Dezembro, que aditou ao art.5º do Código o n.º 4, do teor seguinte:

Terceiros, para efeitos de registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

Esta formulação legal é tributária de uma das posições doutrinais que, acerca do conceito, se vinham digladiando desde há muito. O próprio legislador não deixou de o assinalar [...] no preâmbulo daquele diploma [...].

Do indicado normativo decorre que o ora recorrente, titular de um direito real de garantia registado sobre imóvel anteriormente vendido ao recorrido, mas sem o subsequente registo, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum.

O mesmo entendimento fora adoptado pelo acórdão deste Supremo Tribunal n.º 3/99, de 18.05.99, (uniformizador de jurisprudência) que, revendo a doutrina fixada pelo seu homólogo 15/97, de 20.05.97, retomou, na matéria, a posição de Manuel de Andrade (O citado acórdão 3/99 fixou a regra seguinte: Terceiros, para efeitos do disposto no artigo 5º do Código do Registo Predial, são os adquirentes, de boa fé, de um mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa), consagrando a orientação segundo a qual a inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo, pressupunha que ambos os direitos tivessem advindo de um mesmo transmitente comum, excluindo "os casos em que o direito em conflito com o direito em conflito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial" (Cf. Ac. de 07.07.99, deste Supremo Tribunal, na Col. Jur. (Acs. do STJ) VII, 2, 164.)”.

Regressando ao caso concreto não se pode questionar que o direito de usufruto é passível de ser penhorado e judicialmente vendido no âmbito da execução movida contra o usufrutuário (cf. a jurisprudência e a doutrina citadas na decisão recorrida e que aqui nos dispensamos de voltar a reproduzir). [...]

A ser assim valem pois os argumentos vertidos na decisão recorrida e que podem ser resumidos da seguinte forma:

Resulta dos elementos constantes dos autos de execução que na altura em que foi realizada a penhora que agora se questiona e perante o que constava do registo predial, o direito de usufruto dos executados sobre o imóvel em apreço podia ser penhorado nos termos e que teve lugar, inexistindo então e agora qualquer impedimento à sua penhorabilidade (cf., entre outros, os artigos 735º, 736º, 751º e 783º, todos do CPC e o artigo 1439º e seguintes do Cód. Civil).

Por outro lado, atentos os factos provados e a tese jurisprudencial antes exposta, impõe-se considerar que o identificado acto voluntário dos aqui executados/oponentes de renúncia gratuita ao usufruto de que eram titulares sobre imóvel e que não foi registado antes da penhora que aqui se discute, deveria ser sempre considerado ineficaz, não podendo ser por estes invocado contra o aqui exequente.

Ou seja, tal renúncia ao usufruto não pode ser oponível à penhora previamente registada a favor do exequente, D… S.A. (cf. os artigos 2º, n.º 1, alíneas a) e x), 5º, n.ºs 1 e 4, e 6º, todos do Código do Registo Predial e artigos 819º, 822º, n.º 1, e 824º, n.ºs 2 e 3, todos do Código Civil).

Tem pois razão o Tribunal “a quo” quando com estes fundamentos considerou não verificados no caso, os pressupostos previstos no art.º784º, nº1 do CPC e assim sendo julgou improcedente a presente oposição à penhora.