"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/10/2019

O conceito restrito de terceiros para efeitos de registo: um'A História Sem Fim?


1. a) Os problemas suscitados pelo conceito restrito de terceiros para efeitos de registo ameaçam tornar-se, lembrando o conhecido livro de M. Ende, um'A História Interminável. O pior é que -- pode ainda acrescentar-se -- não se pode assegurar nenhum happy end nest'A História Sem Fim (para recordar agora o nome do filme).
 
A RP foi recentemente chamada a pronunciar-se sobre o seguinte caso (RP 26/9/2019 (Jurisprudência 2019 (104)):

-- Em 2/10/2012 foi instaurada uma execução;

-- Em 24/8/2017 foi registada uma penhora sobre o usufruto de um imóvel;

-- Sucede que os executados tinham renunciado ao usufruto em 15/06/2015, embora esta renúncia só tenha sido registada (ou, pelo menos, conhecida) em 14/11/2017, portanto depois do registo da penhora.

A questão que a RP tinha de decidir era a de saber se a penhora do usufruto (com registo anterior) prevalece sobre a renúncia ao usufruto (realizada antes da penhora, mas com registo posterior).

b) Para fundamentação da sua decisão, a RP transcreve STJ 18/12/2003, onde se decidiu que o "titular de um direito real de garantia registado sobre imóvel anteriormente vendido ao recorrido, mas sem o subsequente registo, não é terceiro para efeitos de registo, uma vez que o seu direito e o do adquirente do imóvel não provêm de um autor comum". Esta orientação, apesar de ter pouco a ver com o caso concreto, passou a constar do sumário do acórdão (ponto IV.). Supõe-se que, no contexto o caso em análise, o "direito real de garantia" a que se refere o sumário do acórdão é a penhora (o que não é verdade, mas, neste momento, isso é irrelevante).

Esta orientação do STJ resulta do disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP, que consagra o chamado conceito restrito de terceiros para efeitos de registo. Estranhamente, deste preceito resulta que o registo (anterior) só prevalece sobre qualquer outro registo (posterior) se ambos os interessados tiverem adquirido o mesmo bem de um autor comum. É por isso se fala comummente de um conceito restrito de terceiros: o registo não é oponível a todo e qualquer terceiro, mas apenas a quem tenha adquirido o mesmo bem do mesmo alienante. Disto decorre que, entre as duas aquisições, prevalece aquela que seja registada primeiro, ainda que, em termos temporais, possa ser a segunda aquisição do bem

Desta orientação decorre, para o caso em análise, que, como o exequente e os executados não são terceiros para efeitos de registo, o registo da penhora do usufruto não é oponível aos executados que tinham renunciado a esse usufruto antes do registo da penhora, embora o registo da renúncia só tenha sido realizado depois do registo da penhora. Não se vê que outra coisa possa decorrer da afirmação da RP sumariada no ponto IV. 

Aliás, no acórdão do STJ transcrito pela RP afirma-se expressamente que o conceito de terceiros que se encontra consagrado no art. 5.º, n.º 4, CRegP exclui "os casos em que o direito em conflito com o direito em conflito deriva de uma diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial". Noutros termos: o credor exequente e penhorante e os executados não são, entre si, terceiros para efeitos de registo, pelo que a oponibilidade que resulta do disposto no art. 5.º, n.º 4, CRegP não lhes é aplicável.

Disto não pode deixar de decorrer que, se a penhora do usufruto não é oponível aos executados, então estes podem opor ao exequente a renúncia ao usufruto realizada antes da penhora, ainda que essa renúncia só tenha sido registada depois do registo da penhora. 

O problema é que, depois de afirmar que o exequente e os executados não são, entre si, terceiros para efeitos de registo (do que não pode deixar de decorrer que o registo da penhora do usufruto não é oponível aos executados), a RP afirma o seguinte:

"[...] atentos os factos provados e a tese jurisprudencial antes exposta, impõe-se considerar que o identificado acto voluntário dos aqui executados/oponentes de renúncia gratuita ao usufruto de que eram titulares sobre imóvel e que não foi registado antes da penhora que aqui se discute, deveria ser sempre considerado ineficaz, não podendo ser por estes invocado contra o aqui exequente.

Ou seja, tal renúncia ao usufruto não pode ser oponível à penhora previamente registada a favor do exequente, D… S.A. (cf. os artigos 2º, n.º 1, alíneas a) e x), 5º, n.ºs 1 e 4, e 6º, todos do Código do Registo Predial e artigos 819º, 822º, n.º 1, e 824º, n.ºs 2 e 3, todos do Código Civil)."

Sinceramente, salvaguardando todo o devido respeito, não se percebe. Depois de se afirmar que o exequente e o executado não são terceiros entre si para efeitos de registo -- e que, portanto, o registo da penhora do usufruto não é oponível aos executados --, como se pode concluir que, afinal, a "renúncia ao usufruto não pode ser oponível à penhora previamente registada a favor do exequente"? Então, o registo da penhora do usufruto não é oponível aos executados que renunciaram a esse usufruto (o que significa que a renúncia prevalece sobre a penhora), mas esta renúncia não é oponível ao exequente (o que significa que a penhora prevalece sobre a renúncia)? 


Como é evidente, desconhece-se o raciocínio que esteve subjacente à decisão da RP. A verdade é que, para chegar a uma diferente conclusão, bastaria ter atentado no seguinte:

-- O conceito restritivo de terceiros para efeitos de registo destina-se a obviar a que o primeiro adquirente que não registou a sua aquisição possa opor a sua aquisição ao segundo adquirente que registou a sua aquisição;

-- Logo, quando os interessados não possam ser considerados terceiros para efeitos de registo, nada pode impedir que uma situação não registada (in casu, a renúncia ao usufruto) possa ser oposta a uma situação registada (in casu, a penhora do usufruto).

2. a) Dir-se-á que a RP decidiu o que era razoável: se, no momento da penhora do usufruto, não havia nenhum registo incompatível com essa penhora, era perfeitamente razoável que a penhora fosse legal. O problema está em que o art. 5.º, n.º 4, CRegP obsta a esta solução razoável: como o exequente e os executados não são adquirentes de um autor comum, o exequente e os executados não são, entre si, terceiros para efeitos de registo e, por isso, o registo da penhora não é oponível ao executado. As alegações dos recorrentes dizem, com bastante clareza, isto mesmo.

É claro que tudo isto soa muito estranho. Um regime legal que permite concluir qualquer coisa como "o registo da penhora não é oponível ao executado que não tenha nenhum registo anterior" deveria, de imediato, fazer soar todos os "alertas vermelhos". E isto ainda não é tudo: é que do mesmo regime também resulta que o registo da penhora não é oponível a terceiros (isto é, a quem não seja parte na execução) e que, por isso, terceiros podem embargar de terceiro com base num direito adquirido antes da penhora, mas registado depois dela. 

Neste caso, há ainda a particularidade de o direito do terceiro que justifica os embargos ser um direito que, nos termos do art. 824.º, n.º 2, CC, se extingue com a venda executiva, porque é um direito sem registo anterior à penhora (ou ao arresto ou a uma garantia real). Quer dizer: o direito do terceiro não registado extingue-se com a venda executiva (isto é, é um dos direitos que o art. 824.º, n.º 2, CC impõe que não possa ser oposto à execução), mas esse mesmo direito constitui um possível fundamento de oposição à penhora realizada na execução. Não é lapso, é mesmo assim: uma inoponibilidade, por um lado, torna-se oponibilidade, por outro...

A pergunta impõe-se: qual é a coerência lógica de tudo isto? A resposta só pode ser: nenhuma! Perante isto, não pode efectivamente admirar que até os tribunais tenham dificuldade em se orientarem num regime que é intrinsecamente incoerente com outros regimes legais. O legislador obriga a trabalhar com um puzzle que é impossível completar, porque é impossível encaixar todas as peças. 

b) Note-se que, se vigorasse na ordem jurídica portuguesa, a regra de que o registo anterior prevalece sobre o registo posterior, a situação de dupla aquisição de um mesmo bem de um autor comum que é resolvida pelo art. 5.º, n.º 4, CRegP teria exactamente a mesma solução: das duas aquisições prevaleceria aquela que, independentemente de ser a primeira ou a segunda, fosse registada em primeiro lugar. Portanto, não é correcto o argumento de que é indispensável que esteja estabelecido um conceito restrito de terceiros para efeitos de registo para proteger o adquirente que tenha registado a sua aquisição em primeiro lugar.

O equívoco reside, pois, em ter erigido como única regra o que é apenas um dos casos possíveis, permitindo então a conclusão, através de um justificado raciocínio a contrario sensu, de que, fora da dupla aquisição do mesmo bem de um autor comum, o registo não é oponível a ninguém. O art. 5.º, n.º 4, CRegP constitui exemplo de uma regra parcial que fica aquém do que deveria ser regulado: o preceito regula uma espécie, quando deveria ter regulado todo um género. 

Ou, para ser mais, explícito: o que se deveria ter consagrado era, não um conceito restrito de terceiros para efeitos de registo, mas antes um "conceito normal". É realmente isto que está em causa, e não, como por vezes se refere, um "conceito alargado" de terceiros para efeitos de registo (expressão que logo apela a algo que parece exorbitante).

Enfim, cabe perguntar, para quando a revogação do art. 5.º, n.º 4, CRegP, permitindo que a oponibilidade das situações registadas decorra realmente da prioridade do registo (naturalmente, com a garantia da ilisão da presunção resultante do registo), e não da circunstância de ambos os interessados terem adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si?

MTS