"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/11/2019

Jurisprudência 2019 (111)


Pedido ilíquido;
valor da causa; fixação

I. O sumário de RE 16/5/2019 (1731/17.1T8ENT-A.E1) é o seguinte: 

1 – A não impugnação, pelo réu, do valor da causa indicado pelo autor, significa que ele aceita esse valor.

2 – Se o juiz, no despacho saneador, atribuir à causa o valor indicado pelo autor e aceite pelo réu, não poderá este último pôr em causa esse valor em momento processual posterior, nomeadamente com o objectivo de tornar admissível recurso por si interposto da sentença.


II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"O artigo 296.º do Código de Processo Civil (diploma ao qual pertencem todas as normas legais doravante referenciadas sem indicação da sua proveniência) estabelece que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido (n.º 1), e que se atende a esse valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal (n.º 2).

A primeira parte do n.º 1 do artigo 299.º consagra uma regra fundamental sobre o valor da causa, que é a de que, na determinação deste último, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta. Salvo quando haja reconvenção ou intervenção principal e, mesmo nessas hipóteses, se se verificar o condicionalismo previsto no n.º 2 do mesmo artigo, o valor da causa tem por referência o momento da propositura da acção, sendo irrelevantes alterações posteriores do pedido ou o simples avolumar do montante do crédito em consequência do decurso do tempo. Daí falar-se no princípio da “imutabilidade do valor da causa, fixado em atenção ao momento da propositura da acção” [ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, vol. 3.º, p. 649].

O processamento do incidente de verificação do valor da causa decorre dos artigos 552.º, n.º 1, al. f), 305.º e 306.º. O autor deve indicar o valor da causa na petição inicial [artigo 552.º, n.º 1, al. f)], sob pena de esta última ser recusada pela secretaria ao abrigo do disposto no artigo 558.º, al. e). O réu, por seu turno, pode, na contestação e sob pena de se considerar que aceita o valor indicado pelo autor, impugnar o valor da causa indicado na petição inicial, contanto que ofereça outro em substituição, podendo, nos articulados seguintes, as partes acordar em qualquer valor (artigo 305.º, n.ºs 1 e 4). Sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes, nos termos descritos, compete ao juiz fixar o valor da causa, o que este fará, em regra, no despacho saneador e, excepcionalmente, nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não houver lugar àquele despacho, na sentença (artigo 306.º, n.ºs 1 e 2). Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, este deve fixá-lo no despacho em que aprecia o requerimento de interposição (artigo 306.º, n.º 3).

Assentes estas ideias, debrucemo-nos sobre o caso sub judice.

O autor pediu a condenação dos réus no pagamento da quantia de € 3.408,86, correspondente ao custo da reparação do veículo, e de, pelo menos, € 50 diários pela privação do uso do veículo, tendo indicado, como valor da causa, € 3.408,86. Os réus não impugnaram este valor na contestação, conforme o n.º 1 do artigo 305.º do lhes permitia, pelo que, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo, o aceitaram. Tal aceitação significa que, a partir desse momento, os réus deixaram de poder questionar o valor proposto pelo autor. Não pode ser outro o sentido do n.º 4 do artigo 305.º.

É certo que, nos termos do n.º 1 do artigo 306.º, compete ao juiz fixar o valor da causa, podendo este último ser diverso daquele ou daqueles que as partes indicaram. Contudo, daí não resulta que a falta de impugnação, pelos réus, do valor que o autor indicou deixe de ter o significado que o n.º 4 do artigo 305.º lhe atribui, como é evidente. As duas referidas normas têm de se compatibilizar entre si nos termos expostos.

No despacho saneador, o tribunal a quo, em cumprimento do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º, fixou o valor da causa nos € 3.408,86 propostos pelo autor e aceites pelos réus. Tal decisão não foi objecto de recurso. Nem, aliás, podia sê-lo, dado que acolheu a posição de ambas as partes sobre a matéria e atento o disposto no n.º 1 do artigo 631.º. Formou-se, assim, caso julgado formal sobre a mesma decisão, tendo ficado definitivamente fixado o valor da causa.

Para sustentarem a tese da recorribilidade da sentença, os réus censuram, agora, o tribunal a quo por este, no despacho saneador, ter aceitado o valor indicado pelo autor e com o qual eles próprios se conformaram no momento processual em que podiam tê-lo impugnado. Esta conduta processual flagrantemente contraditória por parte dos réus é inadmissível. Como acabámos de referir, se queriam impugnar o referido valor, os réus tinham o ónus de o fazer na contestação, nos termos do n.º 1 do artigo 305.º. Não o tendo feito, aceitaram-no, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo. Não podem, pois, reabrir a questão em sede de recurso com vista a tornar este último admissível. A isso obstam, quer a referida circunstância de terem aceitado o valor em questão no momento processual em que podiam impugná-lo, quer o caso julgado formal decorrente do trânsito em julgado do despacho saneador. Não tem cabimento, neste momento processual, a discussão sobre se o valor da causa fixado pelo tribunal a quo foi o correcto. A oportunidade para tal discussão já passou. A argumentação desenvolvida pelos réus sobre essa questão na sua reclamação é extemporânea, estando prejudicada pela circunstância de o valor da causa constituir questão definitivamente resolvida.

Ao contrário daquilo que os réus agora afirmam, inexiste fundamento para concluir que o referido valor de € 3.408,86 tenha sido indicado pelo autor, por si aceite e fixado pelo tribunal a título meramente provisório e, consequentemente, se destinasse a ser posteriormente corrigido nos termos do n.º 4 do artigo 299.º e do n.º 2 do artigo 306.º. Trata-se de uma ideia só agora sustentada pelos réus, mas sem qualquer sustentação fáctica.

Também não há notícia de que, posteriormente à prolação do despacho saneador, os réus tenham apresentado algum requerimento no sentido de o referido valor ser alterado, nomeadamente em sede de sentença, sendo certo que, por tudo aquilo que anteriormente afirmámos, tal requerimento teria de ser indeferido.

Por tudo isto, inexistia fundamento para o tribunal a quo corrigir ou, sequer, reapreciar o valor da causa, fosse na sentença recorrida, fosse no despacho mediante o qual se pronunciou sobre o requerimento de interposição do recurso. O valor da causa era, repetimos, questão definitivamente resolvida no despacho saneador.

É artificioso o argumento de que a omissão da sentença recorrida sobre o valor da causa significa uma decisão sobre este último, no sentido da sua manutenção. Aquela omissão deveu-se à circunstância de se tratar de questão definitivamente decidida no saneador, não podendo ser considerada como uma decisão implícita confirmativa de uma decisão expressa anterior, construção esta que, à luz do direito processual, não faz sentido. Não tendo incidido sobre o valor da causa, a sentença recorrida não é recorrível nos termos do disposto na alínea b) do n.º 2 do artigo 629.º.

Por último e como acertadamente se considerou no despacho que não admitiu o recurso, ainda que a sentença recorrida fosse nula por omissão de pronúncia sobre o valor da causa – e, por aquilo que anteriormente afirmámos, não o é –, a forma processualmente adequada para os ora reclamantes invocarem tal nulidade era a reclamação perante o próprio tribunal a quo, dado tratar-se de decisão irrecorrível, como resulta do n.º 4 do artigo 615.º. Não se verificaria qualquer duplicação de meios processuais, pois não era admissível recurso."

[MTS]