"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



12/11/2019

Jurisprudência 2019 (116)


Providência cautelar;
periculum in mora

 
1. O sumário de RG 9/5/2019 (70/18.5T8VRM.G1) é o seguinte:

I - No âmbito do procedimento cautelar, demonstrado um direito, consubstanciado na elementar probabilidade da sua efetiva existência, a demonstração do perigo da sua insatisfação, traduz-se no fundado receio que a demora natural da tramitação do pleito cause um prejuízo grave e de difícil reparação.

II - Não obstante tenha sido reposta a situação, nem assim se pode afirmar que a providência cautelar ficou destituída de qualquer utilidade, pois que existe a possibilidade e probabilidade da repetição do ato.

III – A não se entender assim, qualquer infrator, em situação análoga, que quisesse “salvar-se” da condenação, bastaria, enquanto estivesse pendente, a reposição da situação que previamente havia, reiteradamente, violado, colocando, desta forma, em crise os princípios da certeza e segurança jurídica.

IV – Não estando afastada a possibilidade de repetição do ato, tal possibilidade demanda a adoção de medidas tendentes a evitar o prejuízo, sendo o mecanismo para acautelar o direito a providencia cautelar requerida.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Entendeu o Tribunal a quo que, no caso, não se verificava o requisito do “periculum in mora” e, consequentemente, julgou improcedente o procedimento cautelar.

Fundamentou-se da seguinte forma:

“Tendo em consideração a factualidade indiciariamente provada acabada de expôr e atentos os requisitos previstos no artigo 366.º do NCPC, resulta à saciedade que os mesmos não se encontram preenchidos.

Na verdade, ainda que os requerentes tenham logrado provar - ainda que indiciariamente os direito de que se arrogam – direito de propriedade sobre os prédios em causa; direito de propriedade das águas e direito de servidão de aqueduto, o certo é que não lograram provar, desde logo, o periculum in mora.

Na verdade, os requerentes, através do presente procedimento cautelar pretendem uma tutela definitiva da sua situação. Veja-se, desde logo os pedidos formulados no petitório, próprios de uma típica acção declarativa. A este propósito veja-se o acórdão da Relação de Guimarães, de 21.09.2017, disponível em www.dgsi.pt “O procedimento cautelar não se confunde, quanto à sua natureza, regras e objecto, com a acção adequada a reconhecer um direito, a prevenir/reparar a sua violação ou a realizá-lo coercivamente. Naquele, não podem ser formulados, apreciados e decididos pedidos próprios de uma acção declarativa.”

Aliás, diga-se ainda que aquando da produção de prova testemunhal a situação estava já reposta e só mesmo a relutância dos requerentes impediu a obtenção de uma solução de consenso nos presentes autos, derivada do facto dos segundos requerentes não aceitarem o facto do requerido ter igualmente direito, no período de rega, a uma manhã ou tarde de água às sextas feiras, alternada com aqueles, adquirido, ainda que verbalmente, e que estes, actualmente colocam em dúvida.

Neste segmento deverá o presente procedimento cautelar ser julgado improcedente, ficando prejudicada a apreciação dos pedidos respeitantes à indemnização por danos e à fixação de sanção pecuniária compulsória.”

Vamos, então, deter-nos sobre este requisito do periculum in mora, já que em causa não está o direito dos Requerentes.

Demonstrado um direito, consubstanciado na elementar probabilidade da sua efetiva existência, a demonstração do perigo da sua insatisfação, traduz-se no fundado receio que a demora natural da tramitação do pleito cause um prejuízo grave e de difícil reparação. Não é, pois, qualquer consequência que previsivelmente ocorra antes de uma decisão definitiva que justifica o decretamento de uma medida provisória. Só lesões graves e dificilmente reparáveis têm essa virtualidade – neste sentido, Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. III, pag. 101.

Por outro lado, a situação de perigo deve apresentar-se como de ocorrência iminente ou em curso e, neste caso, desde que possam prevenir-se ainda novos danos ou o agravamento dos entretanto já ocorridos. Extrai-se daqui que estão fora do âmbito de proteção de um procedimento cautelar as lesões de direitos já inteiramente consumadas, ainda que se trate de lesões graves, porém, como adianta Abrantes Geraldes, “já nada obsta a que, relativamente a lesões continuadas ou repetidas, seja proferida decisão que previna a continuação ou a repetição de actos lesivos” – obra e local citado.

O cariz excecional de um procedimento cautelar, dada a sua natureza indiciária e provisoria, obriga a que seja usado apenas em situações de urgência e verdadeira necessidade, e só mesmo quando a ação de que é dependente não possa, atempadamente, apreciar e tutelar o pedido do interessado. Pretende-se, em suma, que a tutela cautelar, por natureza provisória e sumária e dotada de menores garantias de segurança quanto ao preenchimento dos requisitos de facto e de direito, fique reservada para situações em que se anuncie o perigo de ocorrência daquelas lesões decorrente da tramitação do processo principal.

Revertendo ao caso sub judice, ressalta da factualidade apurada que no dia de Carnaval (13.2.2018) a água deixou de correr para o prédio dos Requerentes, tendo estes constatado que o Requerido marido havia cortado a ligação e passagem de água; antes de tal situação, concretamente no dia 28.1.2018, o Requerido marido, retirou a ligação dos tubos junto à poça que conduziam a água para os prédios dos Requerentes, incluindo para a casa de habitação; confrontado sobre o sucedido, referiu que também ia retirar as mangueiras; foi ainda alertado de que a primeira Requerente tinha a caldeira de aquecimento ligada e que a falta de água podia “rebentar” a mesma, ao que o mesmo respondeu, dizendo, “meta outra” (factos 31 a 34).

Os Requerentes usam a água para fins domésticos e não têm outra forma de abastecimento de água para os seus prédios, uma vez que estes não têm ligação à rede pública de abastecimento de água. A atuação dos Requeridos, impediu o abastecimento e consumo de água, regular e habitual, nas casas de habitação dos Requerentes.

É certo que o Requerido repôs o equipamento mecânico permitindo que a água seguisse o seu curso, mas fê-lo quando a providência cautelar já se encontrava pendente e após ter tido conhecimento de que contra ele tinha sido instaurada.

Evidencia-se ainda que nada nos autos permite inferir que o ato não se venha a repetir. Desde logo, desconhece-se a razão por que o Requerido marido, afinal, resolveu repor o equipamento mecânico que confessadamente retirou da Poça, impedindo a passagem da água.

Não obstante tenha sido reposta a situação, nem assim se pode afirmar que a providência cautelar ficou destituída de qualquer utilidade, pois que existe a possibilidade e probabilidade da repetição do ato.

Apresenta-se, ressalvado o devido respeito, legitima a conclusão extraída pelos Recorrentes quando avançam que assim qualquer infrator, em situação análoga, que quisesse “salvar-se” da condenação, bastaria, enquanto estivesse pendente, a reposição da situação que previamente havia, reiteradamente, violado, colocando, desta forma, em crise os princípios da certeza e segurança jurídica. (…) O perigo da demora de uma decisão da ação principal existe e existirá sempre e enquanto o Requerido puder, impunemente, usar/cortar/desviar a água e enquanto não houver decisão judicial que o proíba.

Não está afastada a possibilidade de repetição do ato pelos Requeridos.

Tal possibilidade, demanda a adoção de medidas tendentes a evitar o prejuízo cujo conteúdo em face dos antecedentes verificados já se conhece.

Porque assim, a possibilidade de repetição do ato apresenta-se como suscetível de gerar novos danos ainda preveníveis, sendo o receio fundado, em termos sérios e objetivos, sendo o mecanismo para acautelar o direito dos Requerentes a providencia cautelar requerida sob o ponto VI do seu pedido.

Em conclusão, assiste aos Requerentes a faculdade de acautelarem o seu direito à água, pedindo a condenação dos Requeridos, até à decisão da ação principal, de se absterem de estorvar, desviar, cortar, tamponar e/ou de impedir, seja de que modo e para que fim for, a circulação da água para e/ou a favor dos prédios dos I e II Requerentes."

[MTS]